Volume 1
Capítulo 24: Caminhos, Cerejeiras e Venenos
Margareth acordou atordoada, reclamando da dor que pulsava em suas têmporas. A ajudei a ficar sentada apoiando-a ao tronco de uma das árvores próximas ao caminho. Seus olhos se iluminaram ao ver o prato de comida (purê de batata,arroz e um pedaço de carne fumegante) que coloquei à sua frente. A fome tinha se apoderado dela com tanta intensidade, que a garota sequer questionava a origem da refeição. Só estava interessada em comer. Jantamos em silêncio, o ruído úmido de nosso mastigar sendo o único som a flutuar pelo bosque.
— Quem era aquela criança? — perguntou ela, após devorar o prato.
Terminei de mastigar antes de responder. Como explicar a relação que tinha com Po?
— Meu chefe.
Margareth franziu as sobrancelhas.
— Não deve ser fácil trabalhar para alguém como ele.
— Não muito…
— Temos problemas? Fiz alguma coisa que…
— Não. Tá tudo bem. Ele só veio se certificar de algumas coisas… Escuta, não podemos pegar nenhuma das plantas do jardim. Elas são especiais…
— E por isso ele trouxe comida…
Acenei com a cabeça.
— Até encontrarmos a mandrágora, não teremos que nos preocupar mais com isso. Ele não vai nos deixar morrer de fome.
Uma expressão de frustração espetou as feições da visitante.
— A culpa foi minha…
— Não, claro que não — me apressei a responder. — Eu sabia sobre as regras, mas mesmo assim as infringi. Eu devia ter posto limites, não você. Desculpa…
— A culpa foi de ambos.
— Quê?
— Essa é minha última oferta. Aceita ou não?
Sorri. Gostava daquilo; daqueles pequenos gestos em que ela demonstrava me ver como outra pessoa. Não um inimigo, não um instrumento, mas alguém. A dor em meu corpo se desvaneceu ao entrever o esboço de um sorriso nos lábios da garota. Era como se aquele dia não tivesse ocorrido, como se nada do que tivéssemos passado em tão pouco tempo tivesse peso.
Margareth recolheu algumas folhas caídas e as amontoou em duas pequenas pilhas.
— Uma para você e outra para mim — declarou.
Agradeci e arrastei a pilha mais próxima em minha direção. Constrangimento golpeava minhas bochechas quando pensava em dormir próximo a garota. Por quê? Margareth acenou para mim antes de deitar a cabeça na folhagem. Devolvi o gesto antes de mergulhar no mundo dos sonhos.
***
A escuridão se estendia ao meu redor. Onde quer que olhasse, não havia nada além de penumbra. Contudo, conseguia sentir o olhar de alguém deslizando por minha pele: estava sendo vigiado. Suor frio escorria em minha frente.
— Quando você vai voltar? — perguntou uma voz desconhecida às minhas costas.
Devagar, olhei por cima do ombro.
Uma criatura humanoide de lábios vermelhos sorria para mim.
***
Acordei de um sobressalto, minha testa batendo contra a de Margareth. A visitante estava inclinada sobre mim, provavelmente tentando me acordar. Gemimos.
— Desculpa — me apressei a falar, o coração batendo acelerado.
— Eu não devia ter me aproximado tanto…
Nós nos incorporamos devagar, ambos desconfortáveis com o que acabava de acontecer. Aquele incidente, pelo menos, serviu para distrair meus pensamentos. O constrangimento tinha escondido o medo que borbulhava dentro de mim. Me levantei e sacudi a sujeira grudada ao macacão. Margareth fez a mesma coisa: uma camada de areia parecia ter devorado toda a cor que alguma vez tivera seu vestido.
— Temos que continuar — disse, apontando o caminho através das árvores.
***
A manhã foi menos dura do que esperava. Mesmo com o corpo doído, avançar não foi tão difícil devido a proteção contra o sol que as árvores de anís-estrelado davam. A sombra nos acompanhou durante boa parte do dia.
O rosto de Margareth se iluminou quando saímos do bosque de anis e nos adentramos em um campo repleto de cerejeiras de pétalas rosadas. Dedos de luz atravessavam os galhos esparsos das plantas, afundando no chão como colunas brilhantes. Uma brisa suave soprava entre os troncos de madeira delicada.
— São lindas — murmurou a visitante.
Puxei a gola da blusa sobre meu nariz.
— São…Assim distraem suas presas. As pétalas são pequenas para caber no nariz de pessoas desavisadas.
— Venenosas?
— Não matariam ninguém por conta própria, mas com certeza o adormeceriam. Pessoas dormindo não se alimentam, não bebem… O tempo faz o resto.
Como eu sabia disso? Não parecia ter todo aquele conhecimento das plantas do sul quando atravessamos o campo de milho. Era como se, de repente, alguém tivesse achado melhor me informar de todos os perigos que podia encontrar naquela zona do jardim.
A garota cobriu o nariz com a palma da mão. Uma lufada de ar sacudiu alguns galhos sobre nossas cabeças. Como penas cor de rosa, as pétalas rodopiavam ao nosso redor. Era quase como se estivessem dançando; não tinham pressa alguma em encontrar a terra. Algumas acariciaram minhas bochechas, suavemente, espreitando por orifícios pelos quais poder entrar.
Andamos sob a neve rosada do campo de cerejeiras até emergirmos em uma planície onde folhas escuras de caule roxo nos aguardavam. Margareth reconheceu as cicutas enquanto as viu. Podíamos respirar tranquilos, mas devíamos evitar tocá-las. Quanto mais ao sul do jardim, mais perigosas as plantas. Tinha certeza daquilo mesmo sem lembrar de ter ido nunca lá.
Dois pratos de comida, repletos de fruta, nos esperavam no meio do caminho de terra batida. Devia ser pouco mais de meio dia. A luz solar beijava nossa pele nos lembrando que já não teríamos árvores para nos proteger. Margareth e eu mal trocamos palavras enquanto comíamos sentados no chão: estávamos esgotados. Além do mais, teríamos o resto do dia para conversar sobre o que quiséssemos.
No entanto, o silêncio fez com que as palavras que a criatura proferira voltassem à minha cabeça. Tentei empurrá-las para longe, enterrá-las até sob preocupações relacionadas à jardinagem. Pela primeira vez, porém, plantas não foram suficientes para calar meus pensamentos. E aquilo foi assustador.
Olhei ao redor, tentando manter minha atenção no caminho de terra no qual estávamos. Tinha que me concentrar na nossa jornada. Afinal de contas, um longo trajeto nos aguardava. Ou isso eu achava. Até um garotinho de pele pálida e olhos castanhos emergir das cicutas atrás de Margareth; até sentir o tato frio de outra criança em meu próprio ombro.