O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 23: Medo, Acordos e Trapaças

Os músculos do meu corpo congelaram. Margareth estava deitada de bruços no chão, inconsciente. Um fio de sangue deslizava por sua testa. Queria ajudá-la, queria que soubesse que estava ali e que não deixaria que Po… O que Po faria? O menino atravessou o caminho agachando-se do outro lado da fogueira improvisada que a garota e eu tínhamos feito. Estava procurando alguma coisa. Quando encontrou o que queria, enfiou em um dos bolsos e se ergueu para vir até mim.

Tentei engatinhar em direção à visitante, mas meu corpo continuava sem responder. Era como se, de repente, tivesse lembrado de quanto temia a Po. Finalmente, a criança enfiou os dedos na poça de sangue que eu acabava de vomitar. Minha barriga ainda gemia de náusea e fome.

— Por que você faria uma coisa dessas? — reclamou ele, com cara de desgosto. — Estou decepcionado.

Po retirou uma semente de anis-estrelado da poça no chão e a colocou frente a um olho. Suas pupilas moveram-se cuidadosamente, analisando o resto vegetal que acabara de recolher. 

— Um pouco mais e não estaria aqui — suspirou.

— Um pouco mais e não estarei aqui de todas formas — consegui articular. —  Não sabia que morrer de fome fazia parte de nosso acordo. 

Po deu de ombros.  

— Você só aceitou porque sabia que ia ganhar.

— Que bobo aceitaria uma aposta na qual corre o risco de perder? — disse sorridente.

Não conseguia me mover. O medo me paralisava por inteiro, porém… Não fazia o mesmo com minha língua. Ela continuava sendo minha única arma contra a criança.

— Alguém que confia nas próprias habilidades, que sabe que é capaz de vencer sem precisar recorrer a truques — balbuciei.

O sorriso desapareceu dos lábios de Po. Uma expressão gélida cobria suas feições decidida a me petrificar. Contudo, minha língua não deixava de se mover.

— Bons jogadores não precisam de trapaças.

— Solano… Você quer morrer?

Desviei o olhar em direção a Margareth. Ela ainda respirava. Po não tinha vindo decidido a nos machucar. Ele só queria a vitória dele, saber que o acordo tinha sido encerrado tal como ele queria. Se a criança pudesse simplesmente me matar, não teria feito isso já? Só era preciso fazer o menino escorregar em suas palavras.

— Ela precisa do jardim e o jardim precisa dela. Você disse que cabia a mim dar conta disso. Que não seria fácil, mas que era minha responsabilidade.

— E você falhou. A aposta terminou. A partir de agora você não vai mais…

— Nem eu nem ela estamos mortos e eu não disse que ia desistir — declarei, sentindo meus membros começarem a tremer. — Se você não nos ajudar com a comida, morreremos de todas formas. Você ganhará nossa aposta. O que tem a perder?

— Você infringiu uma das regras do jardim…

— Mas não do acordo. É por isso que não me deixou morrer? — o interrompi. 

Aquilo tinha sido a coisa mais ousada que tinha feito desde que acordara no jardim. Mais ousada até do que obrigá-lo a aceitar o acordo. Sobre quais condições ele estava disposto que eu morresse e sobre quais não? Por quê?

O menino ficou em pé antes de levar ambos os braços às suas costas.  Um gesto infantil o suficientemente inofensivo para enganar qualquer um que não o conhecesse; para projetar vulnerabilidade onde ela não existia.

— Você quer morrer? Pode morrer — começou. — Só não arraste o jardim consigo. Já não tem nada para dar…

— Só o suficiente para fazer você aceitar um acordo.

A criança inclinou a cabeça sobre um ombro. 

— Não esqueça de quem é o jardim Solano.

— De alguém tão poderoso que precisa fazer outros passar fome para conseguir alguma coisa. Infringimos as regras por sua causa. O jardim deveria castigar você, não nós — respondi, sentindo meu coração batendo com força em meus ouvidos.

Uma expressão de surpresa arqueou as sobrancelhas de Po. Nos encaramos em silêncio por alguns instantes. Teria ido longe demais? Minhas conclusões sobre o comportamento de Po estavam enganadas? E então…

— Não entendeu nada mesmo — murmurou, fechando os olhos e balançando a cabeça. — Então quer mesmo morrer. Tudo bem. Talvez é disso que você precisa. A dor é uma ótima professora. Espero que aprenda muito com ela. 

Po pousou o olhar sobre a visitante desmaiada. 

—Se é disso que você precisa…Tudo bem. Só espero que não se arrependa da decisão que acabou de tomar. Há dois pratos de comida atrás daquela árvore — disse, apontando para um tronco à minha direita. — Dois pratos de comida serão entregues todo dia até que encontrem a planta. Isso é tudo que posso fazer.

Cheiro de comida suculenta preencheu o bosque. Minha barriga rugiu faminta. Tinha conseguido fazer com que a criança escorregasse. Mas o que queria dizer com dor? 

— Não se engane Solano. Não é de você de quem tenho medo.

Uma lufada de ar carregada de pó, soprou em nossa direção. Fechei os olhos instintivamente. Quando os voltei a abrir Po já não estava lá.  

 



Comentários