Volume 1
Capítulo 22: Cinza, Branco e Vermelho
Um teto de cimento me fitava quando abri os olhos. O encarei por alguns instantes. Olhei ao redor, percebendo que não estava mais sentado. Lençóis brancos cobriam meu corpo enquanto minha cabeça repousava sobre um travesseiro de cheiro adocicado. Deslizei as pupilas pelo espaço: um quarto de paredes cinzentas, onde uma cadeira de madeira era o único móvel além da cama na qual estava deitado. A luz do dia nublado se infiltrava no quarto através de um buraco em uma das paredes. No extremo oposto à cama, o marco de uma porta conectava o cômodo a outro espaço do qual conseguia ver apenas um muro.
Margareth e o bosque tinham desaparecido sem deixar rastro.
Me incorporei, empurrando os lençóis de cima e levando os pés ao chão. O frio do concreto penetrou em meus pés descalços. Reparei em minhas roupas: uma blusa cinza e uma calça azul surrada. Um ruído desconhecido escorreu para o interior do lugar, vindo do outro cômodo.
Me levantei e andei em direção à abertura da parede com cuidado. Do lado exterior à construção em que me encontrava, uma planície de terra escura se estendia até o horizonte. E aquilo me fez querer chorar. Não por me sentir só, pequeno ou perdido. Era um sentimento diferente, quase como de falta.
Era saudade?
— Não deveria estar em pé! — me repreendeu uma voz feminina próxima a porta.
No entanto, não foi nenhum rosto conhecido o que encontrei quando encarei a dona da voz. Um arrepio percorreu minha nuca.
Uma figura humanoide esbranquiçada estava bem na minha frente. Não vestia roupas, não tinha sexo, ou sequer feições. Seu rosto era uma enorme boca de lábios carnosos.
— O quê está olhando? — Questionou cruzando os braços enquanto girava a boca em direção à paisagem do outro lado da abertura na parede.
Não disse mais nada. Se limitou a ficar ali, quieta. Braços cruzados e lábios desenhando um sorriso. Como se criaturas como ela olhando paisagens desoladas fossem completamente comuns; como se aquilo fosse cotidiano. Abri a boca para perguntar à criatura onde estávamos e quem era ela. Nada. Nenhum som saía de meus lábios. Conseguia empurrar o ar para fora de meus pulmões, articular as frases, mas…
Dei um passo atrás, colocando distância entre aquela entidade e eu. Voltei a tentar me comunicar. Movi os braços, gesticulando. Ela continuava estática, observando a paisagem. Não virou sequer para me encarar. Tentei emitir som mais uma vez. E outra. E outra. E outra. Tinha que perguntar a ela. Tinha que perguntar a ela o que estava acontecendo. Tinha que dizer a ela que não era ali onde eu deveria estar. Que na verdade, talvez nem estivesse lá. Tinha que dizer a ela que eu não era aquela pessoa. Eu não sentia saudades de um lugar como aquele. Não a conhecia.
Não eu.
Eu.
Eu não.
Eu não era aquele.
Eu não deveria estar ali.
Eu na verdade me chamava…
—SOLANO !
A voz de Margareth reverberou pelo lugar. Me inclinei sentindo a acidez de minhas entranhas subir por meu esôfago. Vomitei. Um jato vermelho se precipitou de minha boca espalhando-se pelo chão cinza. Ele arranhava minha garganta. Cortava minhas gengivas enquanto se derramava pelo chão do lugar. Uma enorme mancha vermelha formou-se ao meu redor. Não parecia ter fim. Jorraria de mim até a última gota de meu sangue secar. Acabaria com qualquer rastro de Solano que pudesse existir.
Ou isso acreditava eu.
De repente, tal como havia começado, o vômito parou.
Caí de joelhos no chão e afundei minhas mãos na poça vermelha. Encarei meu reflexo carmesí de feições desesperadas. Puxava ar para dentro de mim. Precisava de tanto quanto possível. Meu corpo estava prestes a ruir e o único que eu podia fazer naquele momento era respirar.
— Solano!
A mão de Margareth em meu ombro me obrigou a levantar a cabeça. Tudo havia sumido: não havia casa, cama, criatura ou planícies… A garota me encarava preocupada enquanto apoiava uma mão em mim. Saber que ela estava ali por mim fazia com que o desespero se dissolvesse aos poucos. Era estranha a velocidade com que isso ocorria.
— Você está bem. Deu certo — sussurrou. — Tive que usar um feitiço para te trazer de volta. Você colapsou assim que engoliu a semente. Cuspí a minha enquanto percebi isso. Fico feliz por ter funcionado, por ter ajudado…
Ainda atordoado, tentei esboçar um sorriso. Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Por quê? Aquilo não deveria estar acontecendo. Eu não deveria me sentir daquela forma: nostálgico, melancólico. Como se algo importante tivesse sido tirado de mim. Nunca deveria ter provado aquela fruta.
— Você não ajudou — espetou uma voz. — Eu ajudei. Achava que as regras do jardim tinham ficado claras.
Margareth se incorporou, suas mãos levantadas para uma figura apoiada em uma árvore próxima ao caminho. A quanto tempo estava ali?
— Não pensou em como seria injusto? — protestou a pequena figura, avançando em nossa direção. — Você morrer sem cumprir o que prometeu… Não gosto disso.
— Veste’n! — bramou Margareth, de repente. Porém, nada aconteceu.
Tinha já esgotado sua magia? Ou talvez…
Um grito arranhou a garganta da garota. Levou as mãos à cabeça, agachando-se. Tentou falar alguma coisa, mas o que quer que estivesse sentindo piorou. Aqueles gemidos histéricos pareciam prestes a dilacerá-la por dentro. Os joelhos de Margareth afundaram no chão. A criança se deteve frente a visitante. Uma expressão de nojo desenhava-se em seu rosto enquanto observava o sofrimento da garota.
Então agarrou o cabelo castanho da menina e o puxou obrigando-a a me encarar.
— As coisas que faço por você — suspirou Po aborrecido.
E então golpeou o rosto de Margareth contra o chão.