Volume 1
Capítulo 20: A Elfa, A Humana e O Jardineiro
Não conversamos durante todo o caminho até a saída. A respiração parecia aliviar toda a dor que pulsava em nossos corpos. Podia sentir meus cotovelos arder ao ser fincados na terra. O sol cálido do meio dia espetava minha nuca enquanto me esforçava para continuar avançando. Se me detivesse talvez não teria forças para me arrastar novamente.
Também não conversamos. Não me questionei o motivo de Margareth não ter utilizado nenhum outro feitiço para nos tirar rapidamente daquela situação. Ela estava tão repleta de feridas quanto eu. Parte delas causadas por fazê-la frear, de repente, enquanto corríamos a grande velocidade. Teria que me desculpar por aquilo depois.
Já era o final da tarde quando chegamos ao topo da colina. As espigas de milho desapareciam dando passo a árvores frondosas. Longas folhas esverdeadas pendiam dos galhos, agrupando-se ao redor de flores brancas de onde um fruto verde com forma de estrela se projetava. Um odor amadeirado pairava no ar.
Quando finalmente nos adentramos entre as árvores de anis-estrelado pude deitar de costas no chão. Respirei fundo, sentindo o ar preencher todo o meu corpo, como se fosse me tornar um balão prestes a sair voando. Suspirei, descansando a cabeça no chão. Conseguimos. Aquilo tinha sido mais intenso do que de costume. Po nunca tinha me submetido a nada tão perigoso quanto aquele campo de milho. Enquanto os espigões cortavam o ar em nossa direção, eles pareciam dispostos a nos ferir; a nos ferir muito. E, sabendo que ainda restava muito caminho pela frente até alcançarmos as mandrágoras, aquele era só o começo. Não chegaríamos em pelo menos três dias. Isso se continuássemos andando sem parar, tempo que provavelmente aumentou ao termos que trocar nossas pernas por nossos cotovelos.
Também não havia rastro de comida. Como a criança esperava que continuássemos vivos? Não podíamos arrancar nada das plantas ao redor.
—Solano — me surpreendeu a voz de Margareth se aproximando de mim.
Ela colocou a mão em meu peito e fechou os olhos. Era curioso como mesmo com madeixas de cabelo despontando de sua cabeça e terra sujando seu rosto, suas feições continuavam a capturar meu olhar. Margareth balbuciou alguma coisa e um formigamento percorreu meu corpo. Toda a dor que cobria meus membros desapareceu como se uma lufada de vento cálido a tivesse dissipado.
— Obrigado…
Mas ela não respondeu ou fez a mesma coisa consigo. Em lugar disso desmaiou.
***
Aninhei a garota em um leito de folhas secas que recolhi sob as árvores. Apoiei sua cabeça em um dos troncos, com cuidado, para que descansasse. Sua respiração balançava alguns fios de cabelo desunidos sobre seu ombro. Estava pálida. Comecei a me questionar se havia sido uma boa ideia enfrentar Po. Conseguiria levar aquela visitante ao seu destino? Caso não o fizesse…
Alguma coisa se moveu em minha barriga. Aquela sensação não me abandonava desde o encontro com a criança na estufa. Além do mais, aquela dor repentina que tinha alfinetado minhas entranhas parecia provir exatamente do lugar onde aquele incômodo pulsava em meu abdômen. Levei a mão à minha barriga. Fosse o que fosse não podia deixar que me detivesse. Por mais estranho que tudo aquilo fosse, cumpriria o acordo com Po. Aprenderia mais sobre o jardim.
Apoiei minhas costas contra a árvore ao lado de Margareth. Mesmo toda a dor tendo abandonado meu corpo graças a garota, ainda precisava descansar. Fechei os olhos e me entreguei ao sono, tentando ignorar minhas entranhas roncando de fome. O sono silenciaria a fome. Pelo menos por enquanto.
***
Estava enganado. Ao abrir os olhos a necessidade de comer continuava lá. Pelo menos já não me sentia tão cansado quanto antes. Me incorporei, piscando para espantar qualquer rastro de sono que se resistisse a partir. E então percebi: Margareth não estava onde a havia deixado.
Fiquei em pé de um pulo.
— Margareth? — chamei.
No lugar onde a havia deixado descansando, algumas folhas amassadas repousavam dispersas. A luz alaranjada do crepúsculo atravessava os galhos das árvores de anis-estrelado iluminando o lugar. A ambos lados do caminho, um bosque de árvores frondosas engolia a paisagem onde quer que olhasse. As plantas estavam bem espaçadas entre si, o suficiente como para uma pessoa se adentrar entre seus finos troncos escuros.
— Margareth! — tentei de novo, tentando transparecer preocupação em minha fala.
Teria se adentrado por engano no bosque ao nosso redor e se perdido? Ou a teria atacado alguma planta desconhecida, arrastando-a para o interior do jardim consigo? Eu teria como ajudá-la? Como ficaria o acordo com Po?
— Estou aqui — disse a garota descendo entre os galhos da árvore onde a havia deixado descansar.
Um pouco de cor parecia ter voltado a sua face. Mesmo assim, as marcas do enfrentamento no campo de milho não haviam sumido. Ela balançou os pés de cima do galho antes de pular. A saia de seu vestido se inchou permitindo que aterrizasse com delicadeza no chão.
— Você está melhor? — perguntou ela.
— Eu deveria perguntar isso à você.
Margareth balançou a cabeça, pedindo para não me preocupar.
— Sou meio elfa. Funcionamos diferente. Está tudo bem.
Não entendia muito de anatomia de seres não-humanos, mas não me parecia que discutir com ela fosse servir de ajuda.
— De todas formas, acho melhor descansarmos aqui esta noite — declarei, tentando não soar autoritário.
Só estava preocupado com o estado no qual ela se encontrava. Depois do ocorrido com as espigas de milho, comecei a me questionar quais tipos de planta encontraríamos ao longo de nosso caminho. Era melhor que ela estivesse nas melhores condições possíveis.
— Tudo bem — concordou ela sentando-se próxima da árvore.
Com cuidado começou a recolher as folhas que eu tinha usado para acomodá-la. Fazia um pequeno monte com elas e as colocava sobre o caminho de terra.
— Pode buscar algumas pedras para mim? — pediu.
Concordei com a cabeça. Poucos instantes depois procurava pedras próximo aos pés de anis-estrelado. Encontrei algumas e as enfiei nos bolsos do meu macacão antes de levá-las à Margareth.
— Precisamos de mais.
Voltei à procura enquanto ela organizava as pedras em um círculo no chão, empilhando as folhas secas dentro dele.
— Você não terminou de me contar sua história — disse de repente. Por quê aquilo parecia tão importante?
Ouvi um riso escorrer de seus lábios. Ela respirou fundo.
— Não tem muito mais do que aquilo. Humanos se aproveitavam dos elfos, faziam o que sempre fazem com aquilo que é diferente. Aprisionar, controlar e, caso nada disso dê certo, matar.
Me limitei a escutar. Não havia amargura em sua voz, apenas constatação. Aquilo era um fato para ela, assim como o céu ser azul.
— Mas então minha mãe assumiu o dever de vigiar a parte do muro oriental, próximo às terras onde meu pai morava. Ele era um nobre, Guardião das Terras Élficas então assumiu toda a diplomacia entre elfos e humanos. E minha mãe, bom. O mesmo só que pelos humanos. Se apaixonaram…
Carreguei mais algumas pedras até a garota.
— E o resto é história. Minha mãe engravidou. Teve minha irmã Kamitria. A primeira híbrida dentro da nobreza élfica e da nobreza humana. Muitos não gostaram no começo. Houve até motins, mas meus pais eram espertos. Quem escolhe o amor antes do ódio, tende a ser. Eles viram tudo como uma questão diplomática. Minha mãe quase perdeu o título de Bruxa do Extremo Oriente, mas eles conseguiram. Eles conseguiram demonstrar como aquela diplomacia pacífica era melhor para ambas as raças. Os elfos passaram a ajudar nos cultivos humanos, os humanos lhes permitiram entrar em seu território. Ainda há conflitos e muito preconceito, mas as coisas melhoraram. Até ocorrer a guerra. Orcs e trasgos atacaram nossas terras, queimaram e mataram muitos. Humanos e elfos teriam perdido por separado, mas graças aos meus pais ambos exércitos lutaram unidos. Vencemos. Kamitria, minha irmã, se tornou o símbolo da união de nossos povos. Eu nasci — Margareth completou o círculo que estava construindo. — Foc! — Uma chama esverdeada emergiu da fogueira improvisada, consumindo a folhagem seca. Sentei frente a ela. — Mas sempre há aqueles dispostos a odiar. E infelizmente, por vezes, vencem. Meus pais morreram, Kamitria adoeceu. E sem ninguém para liderar nosso povo à procura de paz, a era em que humanos odiavam elfos voltará. Voltaremos a ser perseguidos, aprisionados e mortos.
Fiquei em silêncio encarando o rosto de Margareth, iluminado pela fogueira esverdeada que acabava de acender. Ela fitava as chamas, suas feições nunca curvando-se a nenhum sinal de tristeza.
— Vou conseguir essa mandrágora e curar Kamitria. Custe o que custar…
A convicção com a qual a garota proferia aquelas palavras penetrou em mim. Já não a ajudaria somente pelo acordo que tinha com Po, mas porque agora de fato precisava fazê-lo. Margareth salvaria seu mundo.
Então, como se o destino gargalhasse de nossa determinação, Margareth enfiou a mão em um bolso do vestido.
— Pensei que podíamos dividir — disse alongando uma fruta estrelada em minha direção.