O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 19: Explosões, Feitiços e Sangue

Meu queixo levantou uma nuvem de pó ao deslizar pela terra. Margareth havia aterrissado com o rosto sobre o antebraço. A cauda de seu vestido ainda se contorcia quando olhei para trás. Um ruído baixo, quase inaudível, pairava a ambos lados do caminho espreitando através da nuvem de pó. Era um som áspero, mas agudo. Baixo, mas penetrante. E não parecia vir de um único lugar. Eram sibilos, como se uma horda de serpentes nos tivesse rodeado.

— Você está bem? — perguntei à garota.

— Você está? 

Fiz uma careta em resposta. Estava inteiro, mas alguma coisa me dizia que em breve não estaria se continuássemos ali. Fiquei em pé e a ajudei a se levantar. 

— Acho que o melhor é voltarmos…

De repente alguma coisa evitou com que terminasse a frase. Não conseguia falar. O ar dentro de mim havia decidido que não era aquilo que eu devia fazer. Insisti. Uma alfinetada espetou minhas entranhas. A dor recorreu meu abdômen. Berrei. Margareth deu um passo atrás, assustada.

Tossi.

Pequenos círculos vermelhos se desenharam no chão à minha frente. O calor líquido do sangue deslizava em meu queixo. O quê estava acontecendo? 

O sibilo aumentou à minha esquerda. Aquelas cobras invisíveis se precipitarião sobre nós a qualquer momento.  Alguma coisa estalou. Pude sentir a temperatura aumentar rapidamente. Margareth empurrou meu ombro. Cai de joelhos no chão. A nuvem de pó se dissipou. Um espigão de milho refulgiu frente à garota. 

— Veste’n! — declamou ela alongando a mão. 

Uma explosão de grãos sacudiu o cabelo da elfa. Ferroadas de calor ricochetearam contra minha pele.  Círculos rosados marcaram meu corpo onde os grãos impactaram. Então pude ver: espigas de milho se contorciam como cobras, apontando suas línguas amarelas em nossa direção. Fios de fumaça emanavam das plantas. 

Fiquei em pé, com as mãos ainda na barriga. O quê podiamos fazer? Dei um passo em direção à entrada por onde viemos. Outra alfinetada fez eu me dobrar. Definitivamente retornar não era uma opção. Mas como atravessar toda aquela plantação? 

Uma planta à minha direita cuspiu um espigão. Levantei o braço para me proteger. Margareth apareceu diante de mim. 

— Veste’n!

Outra explosão. Porém…

A garota me puxou pelo braço, arrastando-me em sua direção. O calor de outro espigão roçou meu macacão. De repente, dezenas de cobras de fumaça cortavam o ar ao nosso redor.  Margareth me jogou para um lado.

— Veste’n!

Explosão.

Pulou por um rastro de fumaça.

— Veste’n!

Grãos queimando minhas costas.

— Veste’n!

Um gemido feminino. 

— Cuidado!

A cor amarelada de um espigão despontou em minha direção.  O corpo da garota emergiu à minha frente, como se surgisse da própria terra. 

—Ves–!

A explosão a jogou para trás. Sua cabeça golpeou meu nariz. Minhas costas impactaram violentamente contra o chão. Senti o peso de Margareth afundando em minhas costelas. Línguas incandescentes lamberam minhas bochechas. Gritei. A dor parecia ter engolido meu corpo por completo. 

Tentei virar o pescoço para ver se ainda éramos alvos dos ataques. Estremeci. A ambos lados do caminho, espigas sibilavam para nós.

— Margareth? 

— Temos problemas maiores do que imaginei — balbuciou ela.

— Tem algum feitiço que ajude a correr?

Um espigão sibilou até nós.

— Veste’n!

Fechei os olhos para me proteger de toda a sujeira que o feitiço da garota causaria. Margareth ergueu o torso com dificuldade, antes de levar as mãos para os pés.

— Fuig!

Um leve brilho envolveu os seus membros. 

— A entrada está mais próxima — sugeriu virando-se para me encarar.

— Mas não é viável, tem uma armadilha instalada — menti. Não sabia se de fato havia alguma coisa no caminho por onde viemos, mas sabia que qualquer tentativa de retorno faria meu interior se contorcer.

Ela respirou fundo.

— Então é melhor irmos depressa.

Em um movimento ágil, Margareth se levantou e afundou os dedos na gola de minha camisa. Me incorporei à força, sentindo cada centímetro do meu corpo gritar de dor. Ela correu arrastando-me consigo. Espigões de milho vociferavam as nossas costas, esculpindo buracos na terra batida atrás de nós. 

Minhas botas mal conseguiam usar o chão para me impulsionar. Minhas pernas unicamente serviam para me manter em equilíbrio. Fios de calor arranhavam minha nuca a cada estalo que deixávamos atrás. Margareth não parecia se importar muito com aquilo, suas pernas se limitavam a levar-nos para o fim da plantação e seu rosto estava firme à nossa frente. Estava alerta caso alguma das plantas adiante nos atacasse. Mas isso não aconteceu. Elas só começavam a se mover quando…

—Margareth! — bramei ofegante.

Ela não me ouviu. Estava concentrada demais em evitar um ataque surpresa. 

— Margareth! — tentei de novo. — Margareth! Margareth!

E então, deslizei a cabeça e os braços para dentro da blusa na qual os dedos da garota se agarravam. O tecido branco escorregou para fora do meu corpo, deixando-me coberto apenas pelo macacão. Cai de bruços no chão, meus dedos cerrando-se na cauda do vestido da garota. Margareth perdeu o equilíbrio. Um espigão cortou o ar sobre nossas cabeças. Rodamos pelo chão. Somente parando instantes depois. 

Queria permanecer imóvel no chão, dar um tempo para as feridas pararem de latejar. Mover o corpo doía. Respirar doía. Tudo. No entanto, não podia me permitir descansar. Deslizei as pupilas pelo caminho à procura de Margareth. 

— O quê está acontecendo? — perguntou ela, tentando se incorporar à minha frente.

— Espera! — pedi. — Desculpa ter feito a gente cair, mas lembra do aviso da entrada?

— Bem-aventurados aqueles que baixam a cabeça? — relembrou ela ainda atordoada pela queda.

— Olha — apontei para as espigas atrás de nós. Sibilavam em nossa direção, mas nenhuma das que nos flanqueavam naquele trecho onde estávamos caídos se movia. 

Com um brilho nos olhos, ela acenou para mim.

— Vine! — recitou, fazendo com que meu corpo deslizasse pela terra até ela.

Seus dedos se entrelaçaram aos meus.

— Se continuarmos assim, não nos atacarão.

Ela sorriu.

— Se tivesse sabido que acabaríamos assim, não teria vindo com este vestido — brincou.

De novo, aquilo fez meu rosto esquentar. Por alguns instantes pude esquecer parte da dor que pulsava em meus membros. Comecei a me perguntar se não haveria algum feitiço também naquelas palavras. 

Tentei esboçar um sorriso, os lábios ainda sujos de sangue. 

— Só espero que a saída não esteja muito longe — suspirou ela.

Afundando os cotovelos na terra batida sobre a qual nos deitamos, continuamos o caminho pela estranha plantação de milho. 



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