Volume 1
Capítulo 18: Início, Feitiço e Milho
Meus joelhos tremiam a cada passo que dava. Já tinha ido algumas vezes ao sul, regado alguns legumes e até arrancado ervas daninhas. Porém, nada disso havia ocorrido muito longe do armazém. O telhado esbranquiçado da construção sempre era visível, reluzindo sob os raios do Sol Um sentimento similar ao desconforto que sintia quando Po estava próximo borbulhava em mim quanto mais andava em direção ao sul. A criança nunca precisou de fato me proibir nada, mas minha intuição sabia que aquela era uma zona do jardim a qual deveria evitar.
E aquele sentimento de angustia só piorou quando cruzamos a pequena cerca de madeira que separava uma horta de batatas de um caminho de terra batida. Aquele era o lugar mais ao sul que alguma vez tinha chegado. Me detive instantes depois.
Margareth me imitou.
— Está tudo bem?
Não respondi. Tudo o que meus pés queriam fazer era dar meia volta e me levar ao armazém. Caso o fizesse Po ganharia e eu nunca mais poderia perguntar nada sobre o jardim. Ficaria fadado a passar o resto dos dias em silêncio. A mercê da vontade da criança.
— Eu posso ir sozinha se você quiser — sugeriu ela. — Não precisa se preocupar.
— Eu estou bem. É só… Um mal pressentimento.
A garota entrelaçou os dedos sobre o busto, preocupada. Então fechou os olhos.
— Anells vingueu i protegiu el chicot que us indico! — murmurou.
Um halo de luz envolveu a garota, flutuando no ar. Instantes depois a luz precipitou-se em minha direção. Levantei os braços em um primeiro momento, mas nada ocorreu. Um delicado lençol de calidez deitou em minha pele, cobrindo cada parte de meu corpo.
— Agora não vai ter do que ter medo — explicou ela abrindo os olhos. — Pelo menos por enquanto. Esse feitiço vai evitar que se machuque.
Agradeci com um gesto de cabeça. Era curioso como ela parecia se sentir a vontade no jardim mesmo sendo uma visistante vinda de outro mundo. Pela forma como ela falou quando nos conhecemos, o jardim não era o primeiro lugar que visitava fora de sua realide. Como funcionava aquilo?
— Podemos ir? — perguntou ela, fazendo um gesto para o caminho de terra batida que se internava por um campo de trigo dourado.
Continuei a andar. Mesmo algo dentro de mim me dizendo que aquilo era perigoso e que não era coincidência que Po me fizesse ir até o sul, a confiança de Margareth me tranquilizava. Enveredamos juntos em pelo caminho, ombro a ombro, ela admirando a paisagem que nos rodeava. O fascínio com que seus olhos engoliam cada parte daquele campo de trigo fez minhas bochechas esquentarem. Tive que virar a cabeça em outra direção para não ficar encarando as expressões de assombro que ela fazia enquanto continuávamos andando.
Por que tudo o que ela fazia era tão interessante?
— Qual é a sua história? — perguntei de repente.
— Minha história?
— Todo mundo tem uma história que o trouxe até aqui.
— Eu já disse o motivo.
— Mas não a história. Motivos e histórias são coisas diferentes — expliquei, tentando não parecer arrogante.
— Mmmmmm…
Então chegamos na plantação de milho. Espigas esverdeadas projetavam-se do chão, elevando-se por cima de nossas cabeças. As plantas estendiam-se pela planície a nossa frente, não deixando sequer entrever que outras plantas brotavam no horizonte além delas.
— O quê é isso? — perguntou Margareth distraindo-se, apontando para uma forma retangular que emergia a um lado do caminho.
A garota se agachou e deslizou a mão pela forma, limpando a terra que havia sobre ela. Espiei sobre seu ombro. Em uma placa de mármore uma frase tinha sido gravada:
Bem-aventurados aqueles que baixam a cabeça.
Medo alfinetou minhas entranhas. Nunca tinha esbarrado em nenhum cartaz ou aviso daquele tipo enquanto trabalhava no jardim. A vontade de abandonar o acordo pulsou novamente em minha cabeça. Contudo, Margareth não deu muita importância ao achado.
— Temos um feitiço de proteção ao nosso redor. Vai dar tudo certo — me assegurou antes de enveredar pelo caminho.
A segui.
Mal estávamos entre as espigas de milho quando suor começou a umedecer minha testa. No entanto, não era o medo que provocava aquilo. Sequer o Sol do meio-dia poderia me fazer suar tão de repente. Tinha alguma coisa, alguma outra coisa que emanava calor próxima a nós. As plantas repousavam silenciosas a ambos lados do caminho de terra batida. Comecei a me perguntar o motivo de não haver mármore ali. O jardim inteiro estava conectado através desse mineral então…
— Minha história não é tão bonita como eu gostaria que fosse — começou a garota. — Mesmo meu mundo sendo o mais belo de todas as centenas de outros mundos que já visitei, nosso povo sempre sofreu mais do que deveria para viver. Meus pais por exemplo, tiveram que manter sua relação em segredo devido ao preconceito que os humanos alimentavam contra os elfos…
Não conseguia me concentrar na fala de Margareth. E não era porque não tivesse interesse, mas…
— Ambos são de famílias nobres. E ambos possuíam responsabilidades maiores do que a maioria.
Alguma coisa estalou à minha direita. Encarei o muro de espigas. Mesmo silenciosas e imóveis, pareciam prestes a se abalançar sobre nós. Por algum motivo me sentia vigiado.
— Meu pai foi criado para proteger os elfos dos constantes ataques de exércitos humanos, dispostos a roubar recursos mágicos das Terras Élficas. Minha mãe, vigiava a fronteira entre o reino humano e o élfico. Sua tarefa era não permitir que nenhum elfo entrasse em terras…
Outro estalo à esquerda. A garota não demonstrava ter ouvido nada. Estava absorta demais contando sua história.
— Os humanos até cobravam impostos aos elfos por aquilo. Diziam que os estavam protegendo. Que o Extremo Oriente não era uma enorme cerca que os separava do resto do mundo, mas uma muralha. Era absurdo...
Cheiro de queimado.
— Se minha mãe e meu pai não tivessem…
Olhei para trás. Já não dava para ver a entrada à plantação de milho.
— O amor deles…
A voz de Margareth ecoava distante, abafada por minha preocupação.
— Eu sabia...
E então…
— Eles…
Uma explosão.