O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 17: Solano, Margareth e O Sul

Não consegui fechar os olhos durante toda a noite. Um sentimento de angústia havia começado a pulsar em minhas entranhas toda vez que pensava no acordo que acabava de fazer com Po. Ele não teria tomado todas aquelas precauções se não as achasse necessárias. Alguma coisa se escondia detrás do estranho ritual que acabávamos de realizar.

Algo que eu não seria capaz de descobrir a não ser que quebrasse nosso acordo. Seria capaz de fazer algo assim? A imagem do pintor berrando sobre o teixo calou minhas dúvidas. Fosse o que fosse que acontecesse, eu não deveria querer descobrir. Cumpriria o acordo com a criança e entenderia finalmente aquele jardim. Ele e o papel que Po vinha a desempenhar.

Me levantei da cama de feno e me encolhi de costas contra aporta do armazém. A angustia não ia embora, mas deixava de sussurrar a meus ouvidos. Ela continuava ali, mas calada. Encolhida em algum lugar entre minhas costelas e meu abdômen. Encarei as tábuas claras que cobriam o poço no armazém, até fios de luz se infiltrarem para o interior da construção. Minhas pálpebras pesavam, mas não permitiria que ousassem se fechar. Devia ficar acordado, alerta ao que aquele dia e o desafio de Po trariam consigo.

Sequer conseguia me concentrar na lista interminável de tarefas que aparecia toda manhã em minha mente. Naquele dia não passavam de palavras difusas. O foco era o acordo com a criança.

Suspirei ao descobrir um plato repleto de frutas frescas em uma esquina do lugar. Meu café da manhã. Pelo menos comer me ajudaria a recobrar um pouco as forças que tinha negado ao sono.

Me arrastei até o prato e encarei as fatias reluzentes de pêssego cortado, reluzindo entre algumas uvas e uma pequena laranja. Minha boca salivou ao sentir o cheiro adocicado do alimento. Comi devagar, tentando saborear cada fatia. Provavelmente aquela seria minha única fonte de energia durante boa parte do dia.

Estava mastigando a última uva quando alguém bateu à porta da construção. Foram três golpes secos, apressados. Após uma pausa, vieram mais três. Levantei rapidamente. Sabia que não era Po. Ele nunca batia à porta, apenas aparecia onde quer que quisesse.

Mais três golpes.

Com cuidado me dispus a abrir, a madeira rangendo ao ser puxada para dentro do armazém. Vi a sombra desenhando-se aos meus és antes de reparar na pessoa diante de mim.

Uma garota de vestido azul estava em pé fora do armazém. Uma tiara branca evitava que seu longo cabelo castanho lhe cobrisse o rosto de feições pequenas. Seus olhos, seu nariz e sua boca se encaixavam como peças de um quebra-cabeça de porcelana meticulosamente esculpido. Um sinal repousava sob seu olho esquerdo, solitário. E suas orelhas…

— Você é o cuidador do jardim? — perguntou ela, a voz aguda e delicada flutuando até meus ouvidos.

Não pude evitar encarar suas orelhas. Ela percebeu, deslizando uma madeixa castanha sobre cada uma delas. Mesmo assim, não conseguia ocultar as pontas afiadas que se projetavam fora do seu cabelo.

— Você é o cuidador do jardim? — insistiu. Não falou com hostilidade, apenas envergonhada.

Decidi parar de encará-la. Levei as pupilas para o pedaço de chão entre nós.

— Mais ou menos — me esforcei em dizer.

A garota mordeu o lábio inferior e olhou ao redor.

— O que isso quer dizer?

— Eu não sou o dono do jardim — esclareci. — Mas ajudo a todos aqueles que passam por aqui.

A desconhecida se agachou, aproximando seu rosto ao meu. Aquela resposta tinha lhe agradado.

— Ajuda mesmo?

Sentir minhas bochechas esquentar. Confirmei com a cabeça. O que estava acontecendo?

— Fiquei com medo do feitiço ter me levado ao lugar errado, mas parece que não foi assim — suspirou aliviada. Depois, inclinando-se em um gesto grandiloquente, quase exagerado — Margareth Di Antewode. Filha do nobre Elizandre, Guardião das Terras Élficas. Filha de Zafira, Bruxa do Extremo Oriente.

Élficas? Élfico? Elfa!?

— Você — articulei. — Você é uma elfa?

— Somente por parte de pai. Espero que isso não seja um impedimento para que trabalhemos juntos — explicou se incorporando.

Neguei com a cabeça.

— O que você precisa? — perguntei finalmente.

A luz que instantes atrás inundou seu rosto sumiu.

— Evitar uma guerra.

Aquelas palavras atravessaram minha barriga como adagas. Po não escatimaria esforços em me pôr sob pressão. Não importava. Fosse qual fosse o pedido da visitante, alguma planta no jardim ajudaria a solucionar o problema.

— E como pode fazer isso? — prossegui, tentando não deixar entrever o nervosismo que aquelas palavras tinham me causado.

— Tem um feitiço que pode ajudar. Mas os ingredientes são quase impossíveis de encontrar.

— Por isso você está aqui.

Margareth esboçou um sorriso. Aquilo me deixou ainda mais nervoso. Por quê?

— Uma bruxa do Aquelarre me disse que somente poderia encontrar alguns dos ingredientes em outros mundos, atravessando o tecido mágico. Mesmo assim, tem sido praticamente impossível encontrar tudo o que preciso. A magia está morrendo em todos os mundos. Escoando… E o tempo está terminando. Somente preciso de uma planta, uma única raiz. E sei que só vou conseguir colher ela com ajuda.

— Qual planta você precisa?

Por que ela estava me contando tudo aquilo? Era quase como se quisesse justificar algo horrível que estava prestes a pedir. No entanto, não pude deixar de pensar como a ajudaria sem importar seu pedido. Ela só tinha que falar e…

— Mandrágora. Preciso de uma mandrágora.

Um calafrio percorreu meu corpo. Sabia onde encontrá-las, onde colhê-las. Havia uma planície inteira dessas plantas em algum lugar ao sul do jardim. No entanto…

— Po me enganou — murmurei para mim mesmo.

Me agachei antes de cair sentado no chão.

— Está tudo bem? — se preocupou ela.

Eu conhecia todo o jardim. Sabia onde encontrar praticamente todas as plantas. Como cuidá-las. Sabia que qualquer vegetal no qual alguém pudesse pensar brotava naquele solo. No entanto…

Sabia que não devia ir ao sul.

Mesmo conhecendo os caminhos, mesmo conhecendo as plantas que ali cresciam…

Não podíamos chegar lá. Simplesmente não podíamos.

Porque o sul….

— O sul é proibido — expliquei. — O sul é o único lugar do jardim onde não tenho permitido ir.



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