Volume 1
Capítulo 15: Acordos e Trapaças
O líquido escuro e viscoso reluzia sob o azul do céu. O vermelho parecia gritar contra o verde que cobria, obrigando-o a desaparecer baixo ele. Estava disposto a devorar cada centímetro de grama.
Soltei a outra regadeira.
Meus calcanhares escorregaram. Senti um nó se formando em minha garganta, um grito abafado atemorizado demais para abandonar nunca minha boca. Tentei me distanciar das manchas, ir para o mais longe possível dali empurrando meu corpo com meus pés e meus cotovelos. A água da fonte me surpreendeu banhando a nuca do meu macacão. Me incorporei. Apalpei com ambas mãos minha roupa à procura de rastros vermelhos. Nada. Água empapava meus dedos. Quando voltei a olhar o gramado à minha frente já não havia mancha alguma de sangue.
Somente então percebi a força com a qual respirava. Ar inchava meu peito violentamente. Pisquei. A paisagem à minha frente continuava igual: gramado, duas regadeiras, charcos de água, Sol brilhante… Me encolhi, cobrindo o rosto com as mãos. Demorei alguns instantes para conseguir respirar normalmente. Olhei ao redor. Po não parecia estar por perto.
A lista de tarefas em minha mente pulsava contra minhas têmporas. Regar as macieiras, os girassóis, os lírios… Ir para o campo de pêssegos além das macieiras para cortar alguns galhos, talvez descansar um pouco antes do almoço se acabasse cedo. A cor rosada dos pêssegos era linda de se ver de manhã. Gostava também de tocá-los, de sentir a casca suave deslizando pelas gemas de meus dedos…
Sacudi a cabeça.
Também não era aquilo que queria pensar. Desejava apenas ter um tempo durante o qual descansar a mente, sem vozes, sem memórias repletas de sofrimento… Desejava conseguir ver, unicamente através de meus olhos, o jardim no qual trabalhava e vivia. Precisava daquele momento se quisesse poder pensar com lucidez sobre os últimos acontecimentos.
Em silêncio recolhi os recipientes vazios do chão e os enchi novamente. Me obriguei a encarar o líquido transparente enquanto carregava ambas as regadeiras de volta às macieiras. Desta vez, somente água jorrou dos orifícios metálicos.
Após regar todas as plantas da região enveredei para os campos de pêssego.
Deslizei meu olhar pela paisagem enquanto caminhava. Queria apreciar cada flor, cada árvore com a qual me cruzava. Tarefas e preocupações não podiam me levar para longe dali. Atravessei a plantação de peras. Árvores não muito mais altas que eu, cujas folhas têm forma de coração. Lembrei de quando Po me surpreendeu lá durante meus primeiros dias.
Tentei tirar a memória da minha cabeça.
Por quê por mais que tentasse não conseguia enxergar o presente? Sussurros do passado espreitavam em cada caule. Pior ainda, não se organizavam de forma clara. Apesar de ter estado ali por um bom tempo, não conseguia descobrir nada que não saísse da boca do menino. Minhas memórias, sensações e percepções nunca foram suficientes.
Dessa forma…
Como descobrir qualquer coisa sobre o jardim?
Tinha que me apressar para cortar os galhos das árvores de pêssego. Caso não o fizesse…
Bati o pé no chão.
O nó de terror que antes me engasgava se derretia em raiva em meu interior. Por quê era tão difícil pensar sobre qualquer coisa!? A força com a qual tinha que empurrar os pensamentos relacionados com jardinagem que brotavam em minha mente me esgotava antes de que pudesse sequer começar a pensar o que de fato me interessava.
Po tinha falado do jardim como se este fosse alguém, uma entidade ou pessoa com consciência própria. Caso isso fosse verdade, seria ele o responsável por meus pensamentos constantes em jardinagem?
Se fosse assim…
Como escapar de tal controle?
Desci com o carrinho de mão em direção a uma esplanada repleta de árvores. Eram maiores que as de pereira e de seus galhos penduravam frutos rosados. Empurrei as ferramentas para baixo da planta mais próxima. Peguei as tesouras e me dispus a cortar.
Não foi o ranger seco da madeira o qual reverberou entre as lâminas de minha ferramenta. Foi um som abafado, úmido, como se uma fruta de polpa suculenta acabasse de ser cortada pela metade.
Então o pequeno galho caiu.
E um dedo humano quicou na grama aos meus pés.
Pulei para trás esbarrando no carrinho e me precipitando contra os instrumentos que guardava. Senti a escada golpear meu rosto e o resto de água das regadeiras ser vertido sobre mim. Berrei.
Alguma coisa em mim já sabia que quando olhasse para o dedo…
Um galho repousava próximo ao tronco da planta.
Suspirei.
Meu coração pulava como louco de um lado ao outro de meu peito. Era aquilo o que me esperava dali em adiante? Impossível olhar e ver unicamente o que tinha ao meu redor. O passado imprime em fogo o presente em nossas pupilas. Sem o antes, não existe um agora e muito menos um depois.
Medo e dúvida nutriam como Po tinha me levado a enxergar o jardim. Por mais que tentasse, por mais que lutasse contra essa sensação de desconfiança plantada em mim ela estaria lá.
Aquelas cores vibrantes que pairavam ao meu redor já não eram mais acolhedoras. Seu único propósito consistia em distrair a todo aquele que atravessasse o jardim; em evitar com que considerasse sequer a possibilidade de uma flor tão bela ter raízes tão macabras. Vômito borbulhou em minha barriga.
Uma estranha urgência de me distanciar daquele lugar tinha se apoderado de mim. Contudo, sabia que não tinha para onde correr; que não devia correr. Aquele era meu mundo, aquele era meu lar. Por mais imperfeito que fosse, era tudo o que eu tinha. E por mais medo que tivesse de sequer pensar em reencontrar Po ele continuava sendo o único capaz de me dar respostas. Talvez não possa mudar as sementes já enterradas naquele solo, mas talvez possa evitar que a criança continue a cultivá-las.
Mostrar ao menino que há outras formas de ajudar as pessoas pode ser meu novo dever como jardineiro enquanto tento aprender mais sobre aquele mundo. Quanto mais informação obtiver sobre o jardim e seu dono, mais possibilidades de transformá-lo. E talvez, caso não consiga alcançar tal mudança, a informação pode ser minha única rota de fuga.
Ninguém foge do seu lar.
Essas palavras pulsaram com força em minha mente. Onde tinha ouvido aquilo? Sacudi a cabeça para esclarecer os pensamentos. Acontecesse o que acontecesse, não podia continuar ali sem fazer nada. Precisava aprender mais sobre o jardim o mais rápido possível. Po continuava sendo o único a me ensinar sobre o lugar e os visitantes o único motivo para me aproximar dele.
Me incorporei e espanei as roupas. Respirei fundo e voltei às minhas tarefas. Não importava quantos dedos acreditava ter cortado, quantas madeixas de cabelo pensava ter arrancado, quanto sangue jurava ter vertido…
Realizei todas minhas tarefas. Mesmo com a barriga vazia e o medo na pele, cumpri todas minhas obrigações do dia.
Já era de noite quando retornei ao armazém. Encostei o carrinho de mão contra uma das paredes de tábuas antes de cair de joelhos no chão. A fome se retorcia em meu interior. Não tive coragem de ir à procura de comida no armazém durante o dia. Uma parte de mim ainda temia esbarrar em Po. Contudo, aquilo teria que mudar. Uma fina camada de neblina deitou sobre o quarto ao meu redor. Devia comer o mais rápido possível. Engatinhei até a porta de entrada do lugar.
— Você é estranho — suspirou Po.
Devagar encarei a criança. Tive que forçar minhas pupilas a não desviar do rosto do menino.
— Está assim porque se negou a comer o dia todo.
— Estava trabalhando.
— Eu sei. Por isso chamei você de estranho.
Tentei forçar um sorriso. Não consegui. Minhas bochechas pareciam estar feitas de aço. A criança pôs os olhos em branco antes de apontar para uma das esquinas do armazém. Um prato repleto de comida fumegante me aguardava.
— Precisa comer para crescer saudável — declamou o menino.
Ainda sujo de suor e terra me arrastei em direção a comida e a aproximei de meu rosto. Batatas, banhadas por um molho branco, eram acompanhadas por um pedaço de carne suculenta. Mesmo com fome, somente comi batatas. Po logo me ofereceu um copo de água.
— Obrigado.
A neblina ao meu redor se dissipava a cada gole que dava. Devolvi copo e prato para o menino.
— É falta de educação não comer tudo.
— Acho que não vou comer carne durante um bom tempo.
— Deveria. O jardim não vai adaptar seu cardápio a você. Isso só vai significar menos comida com o tempo — bocejou se apoiando de costas no marco da porta.
— Tudo bem.
O uivar do vento entre as tábuas do armazém escondeu nosso silêncio. Havia tomado a decisão de voltar a ajudar a criança com os visitantes, mas por quê tinha tanta dificuldade em falar isso para ela?
— Po — tentei — Eu…
— Não vai mais se envolver com os visitantes? Isso eu já sabia.
— Não.
— Não?
— Eu vou continuar ajudando você, mas preciso saber que não estamos machucando ninguém. Deve haver outra forma…
— Chato — bufou o menino.
— Preciso saber mais sobre o jardim. Talvez possamos ajudar as pessoas sem que tenham que sofrer tanto antes. Eu…
As pupilas do menino recorreram velozes meu corpo. Piscou antes de alongar seu habitual sorriso.
— Quer saber mais sobre o jardim? — continuou.
— Sim. Nós, nós poderíamos fazer um acordo…
A criança cobriu a boca com ambas as mãos. Mesmo tentando manter a compostura, não demorou para o menino deixar escapar suas gargalhadas.
— Acordo? Que tipo de acordo?
— Eu...Eu preciso que você me responda uma pergunta. Uma única pergunta…
— E o que eu ganharia com isso? — o menino cruzou de braços.
— Meu silêncio. Nunca mais vou perguntar nada. Só vou realizar minhas tarefas e…
— E se eu não quiser tal acordo? — me interrompeu.
Engoli saliva. O que eu podia tomar do menino que o forçasse a aceitar?
— Eu não vou trabalhar nunca mais.
Os dedos do menino envolveram meu pescoço antes que eu pudesse dizer mais nada.
— Hã? Solano? — murmurou — Você está aí? Solanooo?
Não conseguia puxar ar para meus pulmões. Mesmo pequena, sua mão tinha força o suficiente para espremer minha traqueia. Tentei segurar seu braço. O membro do menino era tão firme quanto o titânio.
— Nunca pensei que precisaria dizer algo tão óbvio — a criança aproximou meu ouvido de sua boca — Você é meu ajudante. Não me dá ordens, você as obedece.
Gemi. Por quê estava me dispondo a passar por aquilo? Por quê precisava saber mais e mais sobre o lugar onde estava de repente? Se não tivesse me envolvido com os visitantes, tudo seria como antes. Flores coloridas, pradeiras esverdeadas, dias longos e tranquilos…Rotina. Vida.
Por quê aquilo não parecia nunca suficiente?
Empurrei o pouco ar que me restava para fora de meus pulmões.
— Eu não consigo — articulei, envolvendo o pulso do menino — Eu não consigo entender. Por que não posso perguntar, por que não posso entender…
A imagem de Po sentado sobre o casulo de dentes atravessou como um relâmpago no céu noturno minha memória. As vozes de todos os visitantes a acompanharam como um trovão. Suas histórias, desejos e anelos…
Por quê tudo aquilo me importava tanto?
— Pode voltar às tarefas de sempre e…
— Do quê tem tanto medo?
Surpresa levantou as sobrancelhas de Po. Ele me soltou.
Comecei a tossir violentamente. Por quê tinha falado aquilo? Po tinha demonstrado medo em algum momento? Não que eu lembrasse. Talvez melancolia, mas não medo. E de onde ela vinha? De todas formas tinha sido suficiente para que me soltasse. E para que entendesse o porque daquela necessidade repentina de obter respostas.
Com os joelhos trêmulos fiquei em pé.
Precisava saber se a vida que levava no jardim, merecia a pena ser vivida. Precisava saber que não estava causando sofrimento a outros. Precisava saber se aquilo me fazia feliz. Precisava saber se Po era feliz.
A criança abaixou a cabeça.
— Não tenho medo de nada — disse seriamente. Me encarou sorrindo antes de continuar. — Mas você deveria ter. Talvez precise de uma lição. Tudo bem. Não seria meu ajudante se eu realmente não precisasse de alguém. Mas já que decidiu começar com acordos, vamos fazer um acordo.
Os pelos em minha nuca eriçaram. O teria convencido? Alguma coisa me fazia desconfiar, tinha a impressão que não era aquilo o que tinha acontecido. Parecia fácil demais. Que nem quando aceitou que o ajudasse com os visitantes. Sempre havia algo por trás do que a criança falava.
— Como sei que vai cumprir sua parte e que não é nenhum truque? — insisti, tentando disfarçar o medo em minha voz.
Po suspirou.
— É assim como você me vê? Acha mesmo que não dou minha palavra?
Apenas o encarei.
— Tem razão. Não dou minha palavra pelas palavras de ninguém. Solano, eu preciso de um ajudante, mas não necessariamente de você.
Aquilo era uma ameaça?
A criança juntou as mãos em um gesto de diversão.
— Vai ter que fazer algo mais por mim se quiser que responda a pergunta. Essa é minha última e única oferta.
Concordei com a cabeça. Alguma coisa me dizia que aquilo era o máximo que ele cederia.
— Vai me ajudar com a próxima visitante. Não como tem feito com os últimos. Dessa vez não vou intervir. Disse que quer encontrar uma forma de ajudar as pessoas no jardim sem machucá-las, essa é uma ótima oportunidade — explicou, balançando o indicador de um lado para o outro — Se conseguir ajudar a garota vou responder sua pergunta, sem esconder nada. Senão…
— Vou obedecer e nunca mais perguntar nada — completei.
Po aplaudiu satisfeito.
— Bravo! — depois acrescentou — E para que nenhum dos dois faça trapaça…
Trapaça?
— O jardim vai entrar no acordo também!
Um arrepio percorreu minha pele.
— O que você quer dizer?
— Hã? — uma expressão sombria deitou sobre o sorriso da criança — Quero dizer que agora as coisas vão ficar mais divertidas.