O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 14: Igual e Diferente

Tive um sonho aquela noite. Um sonho tão estranho quanto o dia que o antecedeu. Lembro de estar deitado no campo de dentes-de-leão. Ainda era de noite. O sussurrar do vento da noite afagava meus cabelos delicadamente. Senti o frio da escuridão lambendo meus dedos, estava descalço. Por que estava descalço?

Meu corpo pesava contra o solo a minhas costas, pronto para a fundar a qualquer instante. Uma necessidade macabra de ser engolido pela terra me mantinha preso ali. Mover alguma de minhas extremidades era todo um desafio. Minha pele mal conseguia se separar do chão. Tentei levantas os polegares. Em apenas alguns instantes voltaram a deitar entre as flores. Empurrei os calcanhares contra a terra, levantando o joelho em direção ao céu. Tinha que fazer aquilo. Por algum motivo sentia que era o correto a se fazer. Ou pelo menos…

Menos pior.

Meu corpo não concordava. Queria ficar ali, ser sepultado entre a vegetação do jardim. Parecia não me pertencer mais.

Foi então quando o vi.

Em pé, ao lado da coluna da cúpula central. Vestia um uniforme verde, pendurava uma arma em seu ombro e não tinha olhos.

Gritei.

Tinha que fugir dali, tinha que me livrar daquele desconhecido e daquele solo… O som dos passos de Po chegaram antes que eu pudesse ver sua silhueta junto a do desconhecido. Ele estava sorrindo, como sempre.

Então, devagar, levantou um braço e estalou os dedos.

As sementes esbranquiçadas das flores ao meu redor, rodopiaram pelo ar. Seus caules entortaram-se sobre mim. Se antes tinha dificuldade de me mover, naquele momento me era impossível. Sabia que as esporas me sufocariam, me arrastariam para o interior de uma tempestade macia onde me depararia com meu fim. Mesmo assim…

Uma mancha branca bloqueou minha visão. Sacudi a cabeça. Não estava disposta a me abandonar. Meu olho latejava de dor, enquanto o calor líquido do sangue escorria por minha orelha. Uma alfinetada atravessou minha coxa. Outra, meu braço. Meu pé. Meu pescoço. Uma nuvem branca se precipitou sobre mim. Senti cada uma das esporas espetarem meu corpo, cada caule afundar em minha pele, meu corpo fundindo-se com o frio da terra.

Gritei.

Gritei e chutei o ar tanto quanto pude.

Mesmo já não conseguindo emitir nenhum som, mesmo sem ter um objetivo claro, mesmo sem ver nada além de um lençol esbranquiçado me envolvendo.

Gritei porque sabia que o solo daquele lugar abafaria minha voz.

 

***

 

— Solano! — berrou Po.

Acordei.

A primeira coisa que meus olhos fizeram, foi procurar o menino no cômodo.

Sentado sobre um carrinho de mão, a criança bocejava aborrecida.

— O dia mal começou e já está me dando dor de cabeça — reclamou.

Ainda podia sentir as alfinetadas penetrando na minha pele. Não lembrava ter tido nenhum pesadelo como aquele antes. As imagens se misturavam em minha cabeça: o céu escuro, o campo de dentes-de-leão, o garoto de uniforme esverdeado, a cúpula, Po, o redemoinho de esporas…

— Não está me ouvindo? — Po se inclinou sobre o mim.

Instintivamente joguei meu corpo contra a parede de madeira a minha esquerda. Uma farpa espetou minha nuca. Só então reparei que estava deitado na cama de feno. Como tinha chegado até ali?

A criança me encarou em silêncio.

— Por que está agindo assim? — inquiriu.

Um nó na garganta abafou qualquer explicação que estivesse disposto a oferecer ao menino. Por sorte, ele não insistiu.

— O visitante de hoje chegará em breve, próximo ao campo de amapolas — disse ele.

— Eu não vou — interrompi.

As duas pedras escarlates em seu rosto viraram em minha direção. Aquilo lhes parecia interessante.

— Você pediu para me ajudar com os visitantes.

— Eu sei — respondi, desviando o olhar do menino.

— Então? — O menino se aproximou ainda mais de mim, talvez mais do que já tivesse feito nunca.

— Acho… Acho que isso não é pra mim — balbuciei. — Depois de ontem, eu…

Uma gargalhada implodiu no peito da criança. Se distanciou, levando uma mão para um dos olhos de onde escorria uma lágrima.

— Essa foi boa — apontou para mim. — Talvez se eu tivesse te chamado para conhecer o visitante que veio alguns dias atrás, teríamos nos poupado perder tempo. Quer que eu diga o que ele plantou?

Depois de tudo o ocorrido ele estava rindo de mim? Me ridicularizando como se tudo o que tivesse feito até lá não passasse de uma piada da qual ele já conhecia o final? Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, o menino disse:

— Tudo bem. Pode voltar as tarefas de sempre — levou o dedo à própria testa. — Sabia que não devia ter saído de lá.

A criança pulou do carrinho de mão e saiu do armazém.

Não pude evitar suspirar aliviado ao vê-la saindo do lugar. A sensação de alerta que deitava sobre minha pele se desvaneceu. Fiquei me perguntando se algum dia voltaria a conseguir ficar perto de Po sem me sentir em perigo. Naquele momento, tudo o que sentia ao olhar para o menino era desconfiança. Quanto tempo demoraria para que ele me deixasse cego se assim o desejasse? Ou para que me quebrasse um braço? Ou uma perna?

Quando finalmente me levantei do feno reparei que não havia nenhum prato frente a porta. Talvez fosse melhor assim. De todas formas, minha barriga ainda não estava preparada para uma refeição. Depois de tudo o ocorrido na noite anterior, parecia mais disposta a jogar coisas para fora de si do que retê-las. Não havia rastro algum da fome que normalmente sentia ao acordar.

Tateei meu macacão: limpo. Minhas botas: limpas também. Qualquer rastro do lodo do pântano tinha sido eliminado, assim como a mancha de sangue em meu abdômen, resultado de minha tentativa desesperada de tirar a substância de meus dedos. Era como se nada daquilo tivesse ocorrido.

Decidi não pensar no assunto. Empurrar quaisquer imagens do sofrimento do último visitante para longe de mim. Ficar um tempo longe do menino deveria me ajudar a descansar a mente, a organiza o que sabia sobre ele e sobre aquele lugar. De repente, outro sentimento medonho me surpreendeu: O quê eu sabia realmente sobre o jardim? Por mais que conhecesse cada uma de suas flores, sua geografia e os cuidados que exigia… Por que tinha a sensação de não saber nada sobre o lugar em si?

O vento trouxe consigo o aroma da colina das macieiras quando sai do armazém. Devia regar as árvores que cresciam ali antes do meio dia. Por quê?

Se alguns instantes atrás tinha dúvidas sobre a natureza do jardim…

Aproveitaria a rota às macieiras para descer pelo outro lado da colina e regar também os girassóis. Depois poderia conferir se os lírios…

Berrei.

O quê estava acontecendo? Tinha muitas outras coisas sobre as quais me preocupar, mas aqueles pensamentos de jardinagem eram extremamente recorrentes. Como terra disposta a sepultar o que estivesse sob ela. Procurei ao redor. Po não estava por ali. Que bom. Não me vira berrar para o vento.

Sacudi a cabeça.

Já tinha decidido não pensar mais no assunto. Era só acatar minha própria decisão.

Enveredei em direção a colina, empurrando o carrinho de mão à minha frente. O som metálico dos instrumentos chacoalhando em seu interior me lembrando das tarefas que precisava realizar. O Sol brilhava com a mesma intensidade de sempre. Assim como a brisa balançava as plantas ao horizonte suavemente. Tudo continuava igual.

Respirei fundo.

Só teria que me ocupar de minhas tarefas. Isso era tudo.

 

***

 

Deixei o carrinho de mão sob a sombra da macieira. Suas amplas folhas esverdeadas evitavam que qualquer raio do Sol trouxesse calor consigo ao gramado. Levantei as regadeiras do carrinho e… percebi que estavam vazias. Revirei os olhos. Sequer pensei em enchê-las durante todo o caminho à colina. Teria que voltar ao armazém e puxar água da fonte que borbulhava atrás dele. Decidi que seria melhor deixar o resto das ferramentas ali. Seria mais rápido assim.

Com as duas regadeiras vazias pendurando de minhas mãos corri de volta ao armazém. A corrida foi tão rápida quanto o mármore permitiu, terminando junto a lateral de madeira da construção. Ofegante atravessei um campo de grama em direção a uma pequena saliência de pedra. A fonte se contorcia para fora do solo, como um galho de calcário, jorrando um pequeno fluxo de água cristalina. Pedras angulosas encaixavam-se umas as outras, formando um empilhado de cores claras por onde a água escorria antes de desaparecer no gramado.

Como de costume, me deitei próximo a saliência e deixei uma regadeira repousando a um lado. Inclinei o orifício do instrumento para que o líquido preenche-se seu interior. Um suave borbulhar metálico reverberou pelo espaço. Tudo continuava igual.

Meu pulso dobrava lentamente a medida que o peso do instrumento aumentava. Puxei a regadeira para fora assim que senti o líquido no interior esguichar os nós de meus dedos. Com cuidado, repeti a mesma ação com a outra. Uma vez cheia a retirei da fonte.

Me levantei.

Sacudi a grama de meu macacão.

Senti o frio das alças penetrar em minha pele.

E então percebi: não conseguia ver a água dentro da regadeira. Normalmente, refletiria o brilho amarelado da luz do Sol. Aproximei o rosto para enxergar melhor. Ainda muito escuro. Levantei um dos recipientes e apoiei o nariz a borda metálica…

Uma náusea recorreu meu corpo.

Não era água o que enchia a regadeira. Não era o seu frio líquido que condensava gotículas na alça do instrumento.

Sangue esguichou o gramado quando soltei o recipiente. 



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