Volume 1
Capítulo 13: Cemitério e Jardim
Não conseguia deixar de tremer. De repente, respirar supunha um grande esforço. Atordoado, engatinhei até os galhos próximos à beira da copa, ao lugar de onde o visitante tinha pulado. As pétalas coloridas das anêmonas me pareciam então tão ameaçadoras quanto facas. Por mais belas que fossem, não me causavam nada mais que repugnância. Enquanto engatinhava, tentei evitá-las ao máximo. Um calafrio percorria minha pele ao pensar sequer em tocá-las.
Minha mão escorregou. Bati o rosto contra a ramagem abaixo de mim. Uma dúvida medonha me acompanhou enquanto me incorporava.
Aquele teixo…
Todas aquelas planas…
O jardim…
Tudo aquilo que tinha cuidado desde que acordei no armazém de Po, todos os brotos que tinha protegido, regado…
Seriam todos eles capazes de algo assim? Seriam todos eles…
Uma imagem cruzou minha cabeça.
O rosto de um Solano inexistente, descuidado, aterrorizado, preso por algas no fundo do lago. Sentindo o peito arder por falta de ar até ser engolido pela escuridão.
Levantei a cabeça ao me aproximar da ponta do galho. Olhei para baixo. Uma mancha vermelha flutuava no lodo. Contudo, não pude enxergar corpo algum.
— Voltou ao seu reino — disse Po. — Onde muitas noites de vigília e dor o esperam.
Gelo inundou minhas veias. A criança estava a poucos passos de mim. Ainda sorria, suas feições pequenas delineadas por sombras. Em breve a noite ocuparia o céu. Por um instante, me perguntei se aquela sombra não estaria já ali em seu rosto. Escondida apenas pela luminosidade do dia. Agora que tinha sido exposta, conseguiria ocultar-se novamente?
A criança levantou os braços e se espreguiçou.
— Vamos. Pode dormir enquanto voltemo — bocejou. — Hoje foi mais chato do que esperava.
Sorriu.
Ele...sorriu.
Com uma nota aguda dançando em suas palavras:
— So-la-no...Tem alguém aí? — levou as mãos a ambos lados da boca. — Alguém?
Então senti. Algo viscoso e quente... Por quê não tinha percebido antes? Algo viscoso e quente escorria entre meus dedos. Uma gota de sangue desenhava uma curva em minha palma. Senti minha garganta fechar. O que estava acontecendo? Abri a boca para respirar. Nada. Mal conseguia encher meu peito…
Então, Po se agachou à minha frente.
— O que foi? O que foi? — perguntou despreocupado. — Além de não ouvir, não consegue mais falar?
— O que você fez? — murmurei ofegante.
— Hum? Eu não fiz nada — deu de ombros.
— Ele se machucou...Se machucou de verdade. — Suor frio descia por minha testa. — Você...você…
— O jardim. Eu não fiz nada. Dei a ele uma escolha. Ele só decidiu o que estava disposto a plantar.
Meu coração batia com força contra minha garganta. A qualquer momento sairia por minha boca. Não queria estar ali, não queria estar perto de Po. Não queria…
Nomes de flores inundaram minha mente. O odor de azaleias dançando ao vento inundou meu nariz. Era doce, suave e uma distração. Sabia que devia regá-las no dia seguinte quando… Cobri o nariz e sacudi a cabeça.
Aquilo não importava.
Estava em cima do teixo, com Po, onde instantes atrás um dos visitantes tinha perdido…
Uma náusea recorreu meu corpo. O menino deu um pulo atrás para evitar se sujar. Seus sapatos de fivela não temiam estarem a beirada de uma queda fatal.
Contive o líquido que minha barriga tentava expulsar de mim. Encarei Po.
— Você nunca tinha feito isso antes — balbuciei.
— Antes? O jardim faz isso sempre. Ainda não entendeu nada? — suspirou. — Nenhuma árvore cresce sem semente. Todos que chegam aqui possuem desejos. O jardim só faz com que eles floresçam. Porém não há desejo que cresça sem sacrifício. Todos nossos visitantes precisam nutrir a própria vida, tanto como o solo do jardim que pisam. Infelizmente, a ambição de alguns é grande o suficiente para o jardim permitir que entrem…
Engoli saliva.
— Espera — interrompi. — Quando você disse que as pessoas precisavam estar aqui… Não era por elas, mas pelo jardim?
— É uma relação de troca — bocejou.
— Qual foi a troca dele? — berrei, apontando para o pântano. — Nenhum dos visitantes anteriores…
— O horror que viveu, com certeza será suficiente como fonte de inspiração pelo resto de sua vida. Ganhou o talento em troca de sua visão. Seus olhos alimentarão o teixo quando as anêmonas que arrancou apodrecerem.
— Eu…
— Ele decidiu isso por conta própria. Podia ter pedido qualquer coisa. Até paciência. Em lugar disso queria um fruto pelo qual não trabalhou. Dei até uma chance para que pensasse mais sobre o assunto quando pedi que escalassem a árvore. Podia ter pedido só para você escalá-la e descer a flor… Mas ele insistiu. No momento em que contou sua história percebi… O pior tipo de pessoa que poderia existir.
— A pior?
— Aquela que não está disposta a sacrificar nada. — declarou, encarando a enorme lua prateada que agora nos banhava com sua luz azulada.
— Mas, os outros — murmurei. - Os outros visitantes, eles não…
— Sacrificaram nada? — completou Po, segurando o riso. — Você é muito bobo.
— Então…
— Lars nunca mais vai segurar uma espada. Perdeu o polegar lembra? Molar… Perdeu toooda a infância. Anos de vida que não vai recuperar nunca. Até aquela garota que você viu nas macieiras…
— Amélia?
— Aham. Você lembra da última vez que se viram? — se divertiu o menino.
A silhueta da garota subindo a colina das macieiras a passos largos se desenhou em minha memória. Acenei para ela, então…
— Queria saber sobre um segredo de guerra de seu marido, um tal Duque… A maçã que mordeu lhe revelou o segredo, mas perdeu a voz em troca. Não poderá contar nunca a ninguém o que sabe — explicou a criança, dando pouca importância ao que acabava de dizer.
As maçãs que sumiram, o dedo e a espada, os dentes enterrados… Tudo aquilo sendo plantado com o único propósito de alimentar o jardim. De quem teria vindo o teixo no qual estávamos subidos? E as anêmonas? E as demais plantas? Se cada uma daquelas plantas dependia do sacrifício de uma pessoa diferente… Cada raiz, cada caule, cada pétala…
Aquilo não era um jardim, mas um cemitério.
Em silêncio fiquei em pé.
Estava atordoado, minha visão aos poucos sendo engolida pelo medo e pela noite. Por alguns instantes observei a paisagem que se estendia ao meu redor. Campos e mais campos de pedaços deixados atrás por outros.
Mas...
— Vai ficar aí a noite inteira? — chamou Po.
— Essas pessoas — comecei. — Esses visitantes eles...Todas essas plantas, quero dizer, são desejos concedidos? Todas de alguma forma ajudaram alguém?
O menino fez uma careta. Como se aquela pergunta fosse completamente dispensável.
— O que você acha?
Tive que me conter para não responder à criança de forma grosseira. Depois de tudo o que havia acontecido, depois de tudo o que tinha precisado me contar…
— São o que eles pediram. Se isso corresponde totalmente a seus desejos ou não… Já não importa ao jardim. Desejos mudam com o tempo. Alguns florescem na primavera, outros dormem no inverno. Alguns dão até frutos! Germinam… Se não são desejos, essas plantas pelo menos são uma lição.
Não soube o que responder. Em lugar disso continuei em silêncio ao lado do menino.
E assim me mantive enquanto descemos da árvore e enveredamos de volta para o centro do jardim.
Po também não disse mais nada. Se limitou a me encarar eventualmente, com o sorriso de sempre, para se certificar que o estava acompanhando. Contudo, não era preocupação o que fazia com que tomasse tal cuidado. Era simples e pura diversão. Estava interessado em ver como reagiria a tudo aquilo. Provavelmente, minha resposta ao ocorrido com o desconhecido o pegara de surpresa. Fiquei me perguntando se Po teria a capacidade de pensar na dor de outros. A forma como o tinha visto falar com outros visitantes, me fez acreditar em sua capacidade de compreender as pessoas, mas… De fato compreendia se não reagia a seu sofrimento?
Sequer lembrei de me despedir quando chegamos ao armazém.
Empurrei a porta, tirei minhas botas e mergulhei no feno.
Po não entrou. Se limitou a me observar apoiado na porta de madeira. Sua sombra esticava-se próxima a minha cama, mergulhada na luz azul. Media muito mais que a criança. Deitava seu torso por todo o armazém, dobrando a cabeça ao encontrar a parede oposta a mim. Não pude tirar de minha cabeça aquela sombra. Com seu torso triangular, seus braços e pernas esguios e sua cabeça torta aquela imagem seria a que veria toda vez que olhasse à criança de farda de marinheiro para a qual trabalhava. Talvez ela tivesse sido sempre assim.
A sombra se manteve em pé, silenciosa, até o cansaço fechar minhas pálpebras por primeira vez. O que aconteceu rapidamente, mas não resultou em sono. A sombra de Po havia sumido em pouco tempo, no entanto meu medo não. Me levantei e empurrei a porta do armazém para trancá-la. Uma mancha de sangue vermelha riscou a madeira clara a qual empurrava.
Me agachei e me sentei de costas contra a porta.
Queria bloqueá-la, para caso o menino tentasse entrar.
Estava quase amanhecendo quando finalmente consegui dormir.