O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 12: O Teixo e O Pintor

O campo de amapolas se curvava quando sai do armazém. Era um dia como qualquer outro no jardim. O céu azul, o Sol brilhante, o aroma das flores… Tudo costurado em uma bela paisagem colorida. Sem nenhum som, além do da folhagem dançando com o vento.

Tomei o café da manhã como sempre: frutas eram acompanhadas por um copo de água. Enquanto isso, tentava organizar em minha cabeça o caminho que deveria seguir para realizar as tarefas do dia. Quais ferramentas levaria, quais atalhos tomaria. Escolher os caminhos adequados era tão importante quanto realizar as tarefas. Não queria que a distância entre as diferentes plantas me fizesse atrasar para o almoço.

Enquanto pensava sobre as diferentes rotas que poderia trilhar, Po atravessou o campo de amapolas. A criança andava em minha direção, com o habitual olhar de diversão. Então levantou uma mão e fez um gesto:

— Vamos nos atrasar, Solano — avisou. — O visitante já chegou e está muito longe daqui.

Engoli um pedaço de  maçã e segui o menino.

 

***

 

Passamos perto do lago onde encontrei narciso alguns dias atrás. A zona do jardim para a qual nos dirigíamos era a região mais pantanosa do norte. Onde mangues e juncos mergulhavam suas raízes em águas escuras e lamacentas.

Po não abriu a boca durante todo o trajeto. Se limitou a cantarolar a mesma música do dia anterior. Quando perguntei onde a tinha aprendido, o menino deu de ombros e disse não lembrar. Provavelmente algum dos visitantes teria ensinado. De todas formas não era importante.

O caminho de mármore pelo qual enveredamos afundou numa poça de lodo. Já não havia caminho ou terra adiante, apenas lamaçal. Contudo, Po não iria se sujar.

— Me carregue — ordenou, cruzando os braços.

— E se eu soltar você quando a gente estiver no fundo?

— Você quer mesmo saber?

Justo. Continuava sendo seu assistente a final de contas. Coloquei-o sentado sobre meus ombros e afundei minhas botas na água. Mal chegava a molhar meus joelhos. Contudo, a quantidade de lodo do fundo tornava cada passo mais pesado que o anterior. Uma enorme mão viscosa parecia puxar meu calçado para o interior da terra. Por sorte, não perdi nenhuma bota.

Po apontava para onde devia avançar. A alguma distância era capaz de enxergar um enorme teixo, a copa da árvore oculta pela grande altura que a separava do chão. Do tronco grosso, raízes enormes estendiam-se como veias afundando na água. A folhagem, acompanhada por eventuais frutos vermelhos, era frondosa mas não o suficiente para cobrir por inteiro os galhos que a sustentavam.

O menino pulou para cima de uma das raízes enquanto nos aproximamos. Seus sapatos de fivela não demonstraram medo algum de escorregar. Minhas botas, ao contrário, me fizeram cair após dar alguns passos. Decidi que seria melhor levá-las em uma mão. Meus dedos agarravam-se com força a áspera raiz.

Po pulou de uma raiz à outra. O segui, tentando ser tão hábil quanto. Demos a volta na árvore. A medida que nos aproximávamos do lado oposto pude ouvir o berrar de uma voz.

— Corvo! — chamava. — Corvo!

Minha garganta doeu ao perceber a força com que aqueles gritos eram proferidos. A própria voz já estava calejada pelo esforço com a qual seu dono a projetava. Como se a estivesse empurrando para longe de si, decidido a arrancá-la de seu peito.

— Corvo! — berrou mais uma vez.

— Aqui estou! — respondeu Po.

A pessoa emudeceu. Peguei impulso antes de pular para a raiz seguinte. Uma vez nela, pude ver quem estava gritando com tanta força.

Um rapaz de cabelos castanhos olhava atônito para os galhos mais altos. Vestia uma estranha blusa cuja gola estava repleta de babados e suas calças eram muito volumosas. Uma longa meia suja de lodo mantinha presa a calça ao joelho do garoto e delimitava suas pernas tão magras quanto seus braços.

— Corvo! — gritou para o teixo. — Levo esperando mais de um dia. Vem e concede meu desejo, eu te suplico!

— Mas só se parar de me chamar de corvo — bocejou Po, pulando frente o rapaz.

O susto causado pelo menino fez o garoto cair na água. Pulei para a raiz mais próxima com tal de ajudar.

— Pode segurar. — estendi uma mão para o desconhecido, enquanto me segurava com a outra na planta.

Ele não duvidou.

— Não sabia que o corvo tinha um ajudante — murmurou ao sair do lodo.

— Nem eu que era um corvo — sorriu a criança.

— Por favor, espíritos do bosque, cumpram meu desejo — pediu o visitante inclinando a cabeça aos meus pés. — Estou desesperado.

Devagar, Po se aproximou de nós.

— Quem dera todo visitante fosse assim — suspirou. — Tudo bem, moço. O quê você deseja?

O desconhecido não respondeu. A comoção de nos ter a sua frente e sermos capazes de realizar seu desejo, qualquer que fosse, lavrou um sorriso torcido em seus lábios. Sorriso que se transformou na única porta pela qual entrava ar no seu corpo. Uma mistura de alegria e desespero contorcia suas feições. Esperei Po falar alguma coisa mais, insistir sobre a necessidade de uma resposta clara. Nada. A final de contas, era óbvio que a respostava estava a caminho, perdida entre o arfar do desconhecido e o suor que escorria de sua testa.

Quando finalmente falou, as palavras vieram arranhadas por uma rouquidão.

— Paz. — O rapaz encolheu de ombros. — A oportunidade de encontrar a paz, acho. — Engoliu saliva. — Sou pintor. Bem, sou aprendiz ainda. Aprendiz a três anos e tudo o que se me permitiu fazer foi misturar a resina aos pigmentos. Como vou aprender a pintar assim? Apenas pude segurar um pincel. E as poucas fezes que o fiz, meu mestre torceu a boca para tudo o que pintei e me mandou de volta aos pigmentos… Minha família sempre foi das mais pobres da aldeia. Não tenho dinheiro para comprar tinta ou lenços… O mestre provavelmente não me daria nenhuma para praticar. Já tentei.

“Você não tem talento. Seria um desperdício.”

Toda vez que ele olha para mim, posso ouvi-lo dizer isso. Me acusar. — Lágrimas encheram os olhos do rapaz. — Não sou ninguém. Mesmo a minha idade não tenho nenhum trabalho que mostrar. Poucos senhores investem em alguém assim. A paciência não é mais minha amiga. Porém, se tivesse talento. Se fosse capaz de pintar um único quadro que agradasse meu mestre, teria alguma oportunidade. Ele me deixaria utilizar seu ateliê e senhores importantes me convocariam. Conseguiria viver em paz de meus quadros.

Por isso enquanto ouvi os rumores sobre o corvo na floresta, não duvidei. Era só encontrar o teixo, não me afastar muito dos caminhos das carruagens até chegar ao pântano. Muitos na aldeia dizem que esta parte da mata está amaldiçoada. Que o corvo é próprio mal. Não me importa. Minha família e eu precisamos de minha arte. Darei o que for preciso. — Em um gesto trêmulo o desconhecido levantou as palmas das mãos. — Posso ver que não são humanos. Por favor, me ajudem.

Deveria ter percebido como, pela primeira vez, o sorriso de Po havia sumido frente a um visitante. Uma apatia surda pendurava de seus íris avermelhados. Não havia rastro algum de um esforço por aparentar nada. Tanto sua postura quanto sua atitude, exalavam desprezo. Contudo, a criança não o jogava sobre o visitante; não era uma agressão. Apenas como se sentia. Pela primeira vez podia entrever o contorno da máscara que Po levava a tanto tempo em sua face, mas, naquele momento, não prestei muita atenção.

A única coisa na qual pensava era no sofrimento do visitante. Comparando-o com os demais, seu sofrimento era pequeno. Porém, o desespero que emanava sua expressão era mais forte que o demonstrado por Lars ou Molar. Fiquei me perguntando sobre tal desespero, sobre a dor que o causou. Poderia ela de fato ser posta ao lado dos dilemas do rei de Alfriz ou da urgência da fada? Era justo fazer tal comparação?

O rapaz engatinhou até Po.

— Vou fazer o que for preciso. Por favor… Não quero mais me sentir assim — soluçou.

A criança continuou a olhar para o visitante, apática. Acaso estava sopesando o desejo? Mas se o visitante tinha chegado até lá, não significava que realmente precisava daquilo?

— Solano — chamou Po. — Vamos ver a determinação dele. — Sem virar, o menino apontou para o teixo a nossas costas. — Vou realizar seu desejo se alcançar a copa da árvore. Meu ajudante vai ir com você. Recomendo pensar bem no assunto a caminho do topo. Vão ter tempo para isso. Vocês tem até o pôr do Sol. — A criança me encarou. — Não deixe que se machuque. Se tiver que arrastá-lo de volta para o chão, faça isso sem duvidar. — Suas palavras foram secas, ásperas. A criança não havia abandonado a expressão de desprezo.

Assenti com a cabeça, sem entender.

O desconhecido estremeceu ao olhar para o enorme teixo. Estava mais nervoso do que instantes atrás. Respirou fundo e encarou Po. O menino não reagiu. O rapaz se levantou e, tentando não escorregar, se aproximou do tronco. Abraçou a árvore. Estava disposto a fazer o que fosse preciso. O segui, dando as costas à criança. Mesmo tremendo de medo sua determinação era firme.

Deixei minhas botas no chão.

Eu não lembrava ter escalado nunca uma árvore como aquela, mas alguma coisa me dizia que o melhor seria começar nos mantendo perto do tronco principal.

— Eu vou te levantar. — disse, ao rapaz.

Ele me fitou surpreendido. Pouco depois concordou.

Levou as mãos ao galho mais baixo, a apenas alguns dedos sobre sua cabeça. O envolveu e, apoiando os pés no tronco, elevou o corpo. Para ajudá-lo empurrei suas costas até ele passar uma de suas pernas sobre o galho e conseguir se sentar nele. Olhei para trás, a procura de Po. Como sempre, tinha sumido.

O jovem pintor estendeu a mão para mim. A aceitei, sentindo meus músculos se contraindo ao me puxar para cima. Mal tinha acabado de me equilibrar sobre a planta quando o desconhecido partiu para o galho seguinte. Estava com pressa. Esse tinha sido o motivo pelo qual a criança tinha me pedido para subir com ele. Não demoraria para que essa pressa se transformasse em imprudência.

Tentei acompanhá-lo.

Havia pouca folhagem nos galhos mais baixos, então ver onde poderíamos nos apoiar era mais fácil. Somente na ramagem as pontas, cresciam folhas. Senti o pedaço de árvore no qual me apoiava balançar quando o garoto pulou para a rama acima.

— Acho melhor ter cuidado — adverti para as solas de suas meias sujas.

— O teixo é mais alto do que parece — replicou ele. — E já é quase meio dia. Não temos tanto tempo. Além do mais é uma árvore robusta…

Poucos instantes depois, o rapaz já estava a uma boa distância de mim. Seus dedos não pareciam duvidar nem um pouco enquanto escalava a planta. Sabia que Po não deixaria que nada muito grave acontecesse conosco caso algum de nós caísse. Mas mesmo assim…

Um galho gemeu sobe minha cabeça. Alguma coisa golpeou meu torso. Tive que me segurar ao tronco para não cair. Uma das ramas acima de mim, pendurava meio morta da árvore. Tinha sido partida. Se não tivesse me segurado instintivamente ao tronco, teria me empurrado da árvore. Uma chuva de folhas rodopiou ao meu redor.

O desconhecido não somente não tomava cuidado nenhum consigo mesmo, senão que ignorava por completo a planta. Em pouco tempo, uma trilha de galhos partidos balançaria ao vento.

Po odiava que machucassem suas plantas…

Me incorporei e tentei me aproximar da madeira bem acima de minha cabeça. Enquanto tive oportunidade, alonguei um braço e subi. Mesmo a distância aumentando cada vez mais entre nós, preferia ter cuidado.

Até ele desaparecer entre um emaranhado de folhas nos galhos próximos a copa. Uma nuvem verde escura impedia que visse qualquer coisa entre elas. Mal conseguia ouvir o chacoalhar da escalada do rapaz.

— Moço! — chamei.

Ninguém respondeu.

— Senhor pintor!

Nada.

Foi esse silêncio o responsável por me puxar para o topo. Um estranho sentimento de preocupação crescia em meu peito. Não duvidei. Alcancei o muro de folhas em menos tempo do que imaginava. O atravessei. Senti a ramagem arranhar meus braços e meu pescoço. A aspereza da planta estava decidida a cortar minha pele. Tive que sacudir o cabelo para não ficar preso. Contudo, algumas madeixas castanhas preferiram a madeira a minha cabeça.

Então, finalmente cruzei a mata…e não havia copa nenhuma do outro lado.

O mesmo tronco erigia-se robusto com galhos projetando-se ao seu redor. Os mais próximos apenas tinham folhagem nas pontas, mas no topo outra nuvem verde escura engolia a madeira. Me sentei sobre uma rama a minha direita, apoiando as costas contra o tronco central. Meus ombros ardiam de cansaço. Era igual ao trecho anterior, a única diferença era a falta de galhos quebrados.

Nada do visitante.

Teria finalmente conseguido escalar sem quebrar a árvore? Um ruido seco balançou as folhas próximas a mim. A cabeça do desconhecido emergiu entre a mata. Estava suado e respirava com dificuldade.

— Porque!? — protestou ele.

— Achava que estivesse à minha frente — disse, tentando entender o que estava acontecendo.

Estendi a mão e o ajudei a se equilibrar ao meu lado. Exausto, o rapaz abraçou o galho deitando de barriga.

— Sabia que este teixo era mais alto do que parecia — bufou, ofegante.

— Não acho que seja só altura — apontei. — Você estava bem acima da minha cabeça. Tenho certeza.

— Magia? — perguntou ele.

Por algum motivo, aquela palavra quase me fez rir.

— Não sei, mas não parece que a solução seja escalar.

— O menino disse que era o único jeito — reclamou ele, incorporando-se. — Os espíritos não mentem.

— Ele disse para alcançarmos a copa. Não para subir na árvore — murmurei.

— Não temos tempo para isso! Já passei um dia inteiro fora do ateliê. Se demorar mais e chegar sem nada….

A pele do garoto estava prestes a pular de seu corpo e deslizar para a folhagem acima. Não era difícil perceber o nervosismo que o fazia tremer.

— Deve ter um jeito. Po, não nos faria subir aqui se não…

— Não importa — me interrompeu ele. — Vou subir.

Não consegui convencê-lo do contrário. Acompanhado pelo estalar de diferentes galhos baixo seus pés, o desconhecido deslizou para o topo. Mergulhou novamente na folhagem. Com um rangido seco, os pedaços de madeira partidos se erigiram. Os galhos se fundiram contra o tronco, costurando suas farpas no lugar ao qual pertenciam antes. Foi um movimento rápido, firme. A casca da árvore engoliu quaisquer fissuras que delatassem que a planta teria sofrido qualquer dano.

O rapaz emergiu baixo meus pés. O suor mantinha uma folha grudada contra sua testa.

— Acho que devíamos…

Ele me ignorou e voltou a pular de um galho ao outro. Desapareceu entre a ramagem mais alta. Emergiu. Escalou. Desapareceu. Emergiu. Escalou. Desapareceu. Emergiu. De novo e de novo. Por mais que eu o tentasse impedir, por mais que seu rosto estivesse vermelho, por mais que seus braços tremessem. Ele continuava a tentar.

Decidi fazer o contrário. Tateando a planta abaixo de mim firmei ambos pés entre a ramagem. Me apoiei e desci.

Do outro lado, consegui ver o tronco afundando no lodo. Então descer levava às raízes e subir não levava à copa.. Como escalar o teixo então? Voltei para o galho onde antes descansava. O rapaz já estava a suficiente distância como para que eu visse seu rosto. Sabia que chamá-lo não serviria de nada.

Contudo, não precisei.

Ele não pulou com suficiente velocidade para o galho seguinte e seus dedos escorregaram. A mão invisível da terra o arrastou para baixo, decidida a estatelar seu corpo contras as raízes da árvore. Tentei agarrá-lo. Enquanto meus dedos se fecharam no pescoço de sua blusa, seu peso me levou consigo. Envolvi com um braço uma rama próxima. Senti um chicote de dor percorrer meu antebraço.

O tecido gemeu, mas ele não caiu.

— Sabia que não era boa ideia — reclamei entre dentes.

A dor que irradiava para meu ombro naquele momento me fez querer soltar o desconhecido. Tinha certeza de que não morreríamos ao cair. Contudo, não soltei. Devia ajudá-lo a chegar na copa da árvore como Po pediu.

Aquilo poderia ter sido evitado se ele me escutasse. Aquilo…

A blusa rasgou.

A mão dele se fechou em meu calcanhar. Ambos balançamos violentamente de um lado para o outro. Tive então vontade de chutar seu rosto até que caísse. Mesmo assim…

— Acha que pode se segurar em algum galho próximo? — empurrei o ar para fora de mim.

— Não sei se consigo alcançar — murmurou ele, atemorizado.

— Eu vou balançar meu corpo e quando disser já, você solta e se segura em algum…

Meu ombro rangeu.

Não aguentaria muito mais.

— Tudo bem! — concordou.

Com o auxílio do meu outro braço, empurrando o tronco da árvore a minha frente, balancei o corpo. Era tudo que podia fazer. Sabia que não alcançaria o galho com a outra mão caso tentasse. Minha pele escorregava a cada sacudida do tato áspero ao qual se segurava.

Porém, o rapaz foi rápido.

Se soltou enquanto pôde e abraçou um galho. Justo a tempo para que eu não caísse. Deslizei meus pés para o lugar onde antes me apoiava. Subi na planta, o braço inteiro ardendo de dor. Descansei o rosto contra o tronco a minha frente. Suspirei.

— Obrigado — agradeceu ele. — Agora podemos…

— Não — interrompi. — Agora você vai me escutar. Se não tivesse sido tão descuidado não teria caído. Precisa deixar de ter tanta pressa e reparar ao seu redor. Onde apoia os pés, onde se sustenta. — Não percebi a força com a qual projetei aquelas palavras até ver a expressão em seu rosto. Estava surpreso. Porém, parecia finalmente disposto a ouvir. — Esta árvore é diferente de outras que você deve ter escalado. Levantar o corpo não tem porque te levar pra cima. Você nunca vai alcançar o céu se acreditar que isso é suficiente.

O rapaz baixou a cabeça.

— A partir de agora, você vai fazer exatamente o que eu fizer.

Ele concordou com a cabeça. O susto parecia tê-lo feito acordar para a situação na qual estávamos.

Com um gesto pedi para que me seguisse. Não tive pressa enquanto me aproximava da folhagem superior da árvore e ele também não. Mesmo assim, seus pés pisavam com força demais para se firmar na árvore. Alguns estalos ocorreram, deixando pedaços da planta balançando ao vento.

Quando finalmente atravessamos o muro de folhas sobre nossas cabeças reaparecemos vários galhos abaixo, novamente. Por quê? Procurei por respostas ao redor, em cada galho sobre nós. Por isso lembrei. Tanto de Po pedindo à macieira para que deixasse Amélia no chão, como de narciso me avisando sobre como minhas botas machucavam as vitórias-régias no lago. Todas as plantas no jardim sentiam.

— Vamos subir de novo — avisei. — Mas dessa vez você vai ter cuidado para não quebrar nenhum dos galhos. Você está machucando o teixo.

Uma careta de confusão atravessou o rosto do visitante.

Mesmo assim, obedeceu. Suas meias pisaram delicadamente cada uma das ramas pelas quais antes enveredei. Contudo, quando estávamos próximos a folhagem do topo um galho afundou sob seu calcanhar. Tivemos que refazer o caminho novamente.

Meus braços tremiam de cansaço. Em pouco tempo, talvez, terminariam por me soltar.

Mergulhamos entre as folhas novamente.

Os raios alaranjados do pôr do Sol nos receberam do outro lado. O céu envolvia o mundo até desaparecer no horizonte, atrás de algumas árvores esguias como dedos.

Ao nosso redor, um frondoso tapete de folhas formava a copa do teixo. Contudo, a folhagem não estava sozinha. Flores de diferentes cores salpicavam o espaço, projetando-se da ramagem quebrando com a monotonia verde-escura do lugar. Eram flores grandes, agrupadas em conjuntos de não mais de cinco brotos. Um anel escuro se desenhava entre as pétalas, escorrendo como uma mancha para o caule. Vistas de longe, algumas delas pareciam fitar a seus observadores. Olhos azuis, brancos, vermelhos e amarelos vigiavam o mundo desda copa do enorme teixo.

— Achava que não iam chegar a tempo — bufou Po, deitado entre algumas flores. — Apostei com as anêmonas que vocês não conseguiriam.

— Obrigado pela confiança — respondi, me deixando cair de bruços sobre a folhagem. A ramagem estava tão entrelaçada quanto uma rede de pesca. Seria difícil cair dali.

Espera.

O que é uma rede de pesca?

— Realizamos o desafio espírito do bosque! — se precipitou o visitante.

Se aproximou de Po engatinhando. O menino não lhe prestou muita atenção. Alguma coisa me dizia que desprezo, era tudo o que a criança tinha para oferecer esta vez.

— Por favor — insistiu o rapaz. — Por favor, por favor, me torne um grande pintor.

— Por quê? — bocejou o menino, sequer encarava o desconhecido.

— Porque eu mereço! — declarou rapidamente. — Levo muito tempo trabalhando duro. Por favor, por favor…

Po não reagiu.

— Vou fazer o que for preciso — suplicou o rapaz.

Então a criança virou o rosto em sua direção, ainda seria.

— Tem certeza? — disse.

Engoli saliva.

Uma ameaça pulsava naquelas palavras.

O visitante concordou com a cabeça. Estava realmente desesperado. Fiquei me perguntando se não quebraria alguns galhos por isso; se não seria arremessado para as profundezas do pântano por tal desespero.

Já ele não se importava.

— Tanta certeza quanto folhas há nesta árvore — recitou.

Po se incorporou.

— Não pode voltar atrás — suspirou a criança.

O desconhecido engoliu em seco.

— Peça para as anêmonas — disse o menino apontando para algumas flores. — Fique de joelhos e diga o que quer.

Com o vento cobre do pôr do Sol, o rapaz se inclinou sobre alguns brotos a nossa frente. Podia ver o suor pingar de sua testa sobre um conjunto de pétalas esbranquiçadas. Não pude evitar ficar nervoso ao ver sua expressão. Era como se uma sede infinita por algo distante, contorcesse suas feições em uma careta de súplica. Só então percebi, que ainda não sabia seu nome. Porém, não tive tempo de perguntar.

Sua sede, envolveu cada uma das palavras que proferiu:

— Por favor, espíritos do bosque. Me deem o talento preciso para pintar. Me transformem no melhor artista que a aldeia já viu…

Po voltou a se acomodar entre a folhagem. Aquilo não lhe interessava.

— Por favor — continuou murmurando o rapaz. — Por favor…

Duas flores de cores claras ergueram-se entre as demais. Seus caules esticavam-se lentamente enquanto suas pétalas abriam-se delicadamente. Em uma dança meticulosa ambas plantas se enroscaram…

E então pularam para o rosto do visitante.

Suas pétalas grudaram nas pálpebras do rapaz e seus pistilos escuros…

Um grito arranhou a garganta do visitante. Ele jogou o corpo para trás, seus dedos envolvendo os caules das flores partindo-os. Suas pernas contorceram-se sobre a folhagem.

— O que é isso!? — bramou.

Contraiu o torso. Gritou. Rolou a um lado. Manchas brancas nasceram em seus dedos, fruto da força com a qual tentava tirar aquela planta de sua face. Gemeu.

— Socorro! — berrou. — Socorro!

A dor em suas palavras atravessou minha pele. Tentei ir em sua ajuda, mas minha cabeça esbarrou contra uma criança. O menino estava de braços cruzados me encarando.

— Ele tomou a decisão por conta própria. — cuspiu Po. — Só deve arcar com ela.

— Mas…

Um berro de dor me interrompeu. O desconhecido havia começado a bater a cabeça contra a ramagem sob nossos pés. Se levantou. O imitei. Seu corpo tremia tomado pela cegueira momentânea, se não tomasse cuidado cairia.

— Po! — indaguei, empurrando o menino a um lado.

A garra da criança segurou meu braço. Podia sentir a força com a qual me surpreendeu tempo atrás, pulsando entre seus dedos. Não duvidaria em me machucar novamente.

A passos cegos, enquanto lutava por arrancar aqueles pistilos de seus olhos, o rapaz se precipitou em direção a borda da árvore. Segurei o fôlego. Já não estava tão seguro de se Po o ajudaria a evitar se machucar. A final de contas…

Um caule cedeu.

Sangue tingiu a folhagem.

Contive uma náusea. O quê estava acontecendo?

O grito do rapaz ecoou pelo pântano. Já não era somente uma voz a que sofria, senão várias. Um coro macabro vibrando entre as árvores.

Estremeci.

À minha frente uma imagem grotesca cambaleava contra o horizonte. Contraindo o corpo envolto em dor, o rapaz exibia um enorme buraco carmesi onde antes estava seu olho. Da janela de carne viscosa, um fio esbranquiçado balançava roçando a bochecha coberta de sangue. Um avental vermelho escorria sobre as roupagens do visitante, grudando o tecido a sua pele. Em sua mão, uma anêmona escarlate, cerrava com força suas pétalas. Porém, não pareciam estar imóveis. Em um movimento suave, as pétalas subiam e desciam envolvendo…

— Po, aquilo…

Cobri a boca.

— Nenhuma árvore cresce sem semente — recitou o menino. Ao contrário de mim, estava envolto em serenidade.

Então outro estalo reverberou pelo espaço.

A segunda anêmona acabava de afundar suas pétalas no outro olho. Sugou até o pequeno fio esbranquiçado que a outra flor deixara para trás antes do rapaz conseguir puxá-la para fora. Lágrimas vermelhas deslizaram por sua face. Suas mãos, desesperadas, espremendo os brotos que ainda segurava. Duas concavidades escuras procuravam pelo espaço por aquilo que antes as preenchia.

Arregalou a boca. Não tinha mais fôlego com o qual gritar.

Foi apenas um gesto de desespero extremo, uma tentativa de mitigar toda a dor que sentia.

— Seus quadros serão os mais bonitos de todo seu reino. Todos vão se emocionar tão somente olhando para ele — declarou a criança, apática. — Mas você nunca vai ver nenhum dos lenços. Nenhuma cor. Nenhum sorriso de admiração.

— Demônio! — bramou o rapaz, cuspindo baba em nossa direção.

E então Po sorriu. Pela primeira vez desde que recebemos o visitante, ele sorriu.

— Quem não tem tempo para apreciar o pôr do Sol, não merece ele.

Soluçando, o desconhecido caiu de joelhos entre a ramagem. Abraçou as anêmonas, pondo ambas contra seu peito. Se contorceu, escondendo os dois orifícios viscosos que pulsavam em seu rosto.

Olhei à criança a minha frente. Sua postura e sua expressão gostavam daquilo. Estava satisfeita com o ocorrido. O Po cujos dedos quase quebraram meu pulso tinha voltado. Ou talvez não, talvez esse outro fosse ainda pior. Não havia prazer em seu rosto enquanto me machucava, mas com o rapaz…

Era diferente.

Por isso quando o menino cambaleou até o visitante não me movi. O senso de urgência que antes tinha me empurrado a ajudar tinha se transformado em medo. Nenhum dos meus músculos estava disposto a parar a criança.

Pensei então nos últimos dias, nos pedidos que Po tinha feito. Procurar o narciso, plantar o bambu, escalar o teixo… Sempre tive certeza de que o menino me socorreria caso estivesse em risco, mas talvez não fosse assim. Talvez sempre estive em perigo.

— Em pé — ordenou Po ao desconhecido.

Não obteve resposta.

— Em pé! — levantou a voz.

Dessa vez ganhou um gemido.

— Já obteve o que veio buscar. Agora precisa abandonar o jardim — explicou a criança.

— Não obtive nada! — articulou o rapaz, levantando-se. — Nada… Você, vocês! Tomaram tudo de mim! Me enganaram!

Envolto em raiva o rapaz se precipitou contra Po. Ou contra o que ele achava que era Po. O menino evitou sua investida com apenas um passo à sua esquerda.

— Precisa ir — insistiu o menino.

Um bramido furioso sacudiu a árvore. O rapaz tinha jogado as anêmonas com tal de livrar as mãos para poder agarrar Po. Seus dedos arranharam o ar algumas vezes, sem conseguir alcançar o que procuravam. Não importava quanta dor estivesse sentindo, a raiva era muito maior. Po andou para a borda da copa, folhas rangendo sob seus passos. O visitante o ouviu e antes que eu pudesse sequer pensar em avisá-lo se jogou contra o menino.

Po desapareceu.

E envolto pelos últimos raios do dia o visitante mergulhou contra o horizonte.

Gritei.

O eco do corpo do rapaz golpeando a água do pântano me respondeu logo após.



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