Volume 1
Capítulo 11: Po e O Futuro
Sempre confiei em Po. Por mais que parecesse sombrio as vezes, suas intenções eram claras. Mudavam os trejeitos, as palavras, o tom com o qual pulsavam. Mesmo assim a boca da qual saiam era a mesma. Quando queria alguma coisa, fazia por onde conseguir ela. Se suas ordens não fossem obedecidas, haveria um castigo. Isso era tudo.
Ele não precisava mudar de personagem para obter o que queria, apenas trocar a máscara. Sabia também que por mais ambíguas que fossem algumas de suas respostas, eram sinceras. Talvez não fossem toda a verdade, mas continham pedaços dela. Pedaços importantes para fazer com que o sorriso do menino fosse apagado.
Uma aura de diversão quase indestrutível se aferrava ao garoto, como as garras de um animal faminto. A dificuldade de penetrar naquela barreira invisível cavava um fosso profundo entre o menino e qualquer pessoa que tentasse se aproximar. Aborrecimento era o máximo que alguém obteria ao pular em tal fosso. E no instante em que abri os olhos no primeiro dia, soube da força desse aborrecimento. Pouco importava que parecesse uma criança. No momento em que o vi soube que o devia obedecer.
Mesmo depois do incidente da pera, confiei no menino.
Não podia deixar de sentir desconforto quando o tinha por perto, mas me sentia seguro. E isso fazia tudo ser ainda mais estranho.
Talvez a vontade de ajudar os visitantes viesse da necessidade de acabar com tal inquietação. De tirar de minha pele o calafrio que corria por ela toda vez que Po aparecia. A final de contas, sabia que o jardim era meu lar e que Po…
O quê era?
Um chefe?
Um amigo?
Um familiar?
Quem era para mim aquela criança com roupas de marinheiro que vagava entre as plantas todos os dias?
Fosse o que fosse não parecia precisar de uma resposta. Nomes de plantas enterravam qualquer pensamento que tivesse sobre. Isso começou a ocorrer com menos frequência a partir do dia que esbarrei com Amélia. A história de Lars também tinha ajudado, assim como a transformação de Molar, mas…
Orquídea, bambu, lavanda, girassol, camélia, palmeira, azaleia, antúrio, calêndula, cravo, hortênsia, rosa, cacto… Não adiantava. Palavras como castelo, mundos e fada ecoavam distantes, estranhamente familiares. Como se sempre as tivesse conhecido mesmo sem nunca tê-las usado no jardim. Consegui desenhar um castelo repleto de torres e alamedas em minha mente enquanto Amélia o citou. Entendi a distância entre mundos que Lars mencionou. Uma pequena fada com asas dançou sobre meus ombros quando Molar se apresentou.
Todas essas palavras pulsavam uma vida que não sabia que possuíam.
Assim como o nadar. O mergulho no lago era o primeiro e único que conseguia lembrar.
Quantas coisas mais eu sabia?
Talvez soubesse quem era Po e onde estava aquele jardim. Talvez conseguisse entender porque me sentia tão desconfortável com o menino. Talvez entendesse tudo o que acontecia ali.
Talvez…
Tesoura, escada, alicate, carrinho de mão...
Por enquanto não podia fazer mais do que confiar em Po. Esperando com isso que ele confiasse em mim também. Isso era suficiente. Tudo o que eu podia fazer então era obedecer, demonstrar que era capaz de ajudar com os visitantes.
Por esse motivo, quando o terceiro visitante chegou, tentei ao máximo ser útil. Não tinha ajudado muito com a fada, mas compensaria o menino.
Quando deitei na cama do armazém aquela noite senti o feno sugar meu corpo para seu interior. Não tinha percebido quão esgotado estava até me deitar. Cuidar do jardim tinha sido um pouco mais exaustivo do que de costume. Isso ocorria normalmente quando trabalhava nas planícies ao leste. Era a zona do jardim com as plantas mais delicadas. Tinha que tomar cuidado inclusive ao regá-las. Qualquer jorro de água jogado com um pouco de força partiria facilmente as espigas roxas de sálvia. Tinha que estar concentrado a cada gota que derramava.
Fechei os olhos.
— Espero que Molar tenha chegado a tempo… — murmurei para o armazém vazio.
Não demorou para o sono me levar com ele. Aquela noite, seria mais profundo que nunca. A final de contas, seria a última vez que conseguiria dormir sem medo. Eu ainda não sabia, mas na noite seguinte, não deitaria naquela cama.
Ficaria encolhido próximo a porta, com os braços ao redor dos joelhos e a estridente voz da angustia gritando em meus ouvidos. Choraria até adormecer contra as tábuas de madeira, até o cansaço me fazer esquecer.
Aquela noite seria a última vez na qual dormiria confiando em Po. Só perceberia isso depois, mas talvez eu nunca tivesse entendido suas intenções de fato. Ele nunca mentiu, mas eu não pude entrever o que ocorria ali. Claridade demais, cega.
Suas intenções eram claras. Mudavam os trejeitos, as palavras, o tom com o qual pulsavam. Mesmo assim a boca da qual saiam era a mesma. Quando queria alguma coisa, fazia por onde conseguir ela. Se suas ordens não fossem obedecidas, haveria um castigo. Isso era tudo.
Pouco importava o que tivesse que ser feito.
Aquela seria a última noite na qual dormiria sem manchar os lençóis sobre o feno de sangue.