Volume 1
Capítulo 10: A Menina e A Mulher
Não pude deixar de olhar para o casulo enquanto terminava de podar a folhagem da zona. Por mais que tentasse pensar em outras coisas, tanto minhas pupilas como meus pensamentos eram atraídos à pedra. Po tinha escalado o objeto e sentado sobre ele. Balançava suas pernas enquanto encarava o céu cantarolando.
Comecei a sentir fome pouco depois de regar as orquídeas. Mesmo assim decidi voltar ao bosque de bambus.
— Não vai comer? — gemeu o menino de cima da pedra.
Neguei com a cabeça.
— Depois não vale reclamar — bufou.
— Ela está bem?
— O quê você acha?
Dei de ombros. Ele sempre fazia isso. Respondia minhas poucas perguntas com mais perguntas, evitando qualquer resposta clara. Como se eu já tivesse que saber tudo o que acontecia naquele jardim; como se fosse óbvio. Assim como todas as demais tarefas nas quais trabalhava.
— O que está acontecendo? — repeti.
Ele se jogou de costas sobre o casulo, incomodado. Fiquei me peguntando se a superfície repleta de saliências não o machucava.
— Está germinando — explicou finalmente. — Alguns visitantes precisam disso. Passar um tempo aqui. Depende do desejo.
— Então o jardim cumpre desejos? Qualquer desejo?
A silhueta das pernas de Po tremia sob os raios do Sol ao meio-dia.
— Isso depende.
— Depende?
— Do quanto estejam dispostos a dar —complementou. — Nada cresce onde não há sementes. Ou uma coisa assim…
— Lars disse que esse não era o mundo dele. O que ele quis dizer?
Po parou de balançar as pernas. Levantou a mão, abrindo a palma para o céu.
— Chato.
A palavra pairou no ar, azeda. Foi a primeira vez que vi aquilo em Po. A sombra de uma melancolia forte o suficiente para evitar que ele se refugiasse em um sorriso. Ás vezes, enquanto trabalhava no jardim, ficava pensando no menino. No quê ele tanto fazia o dia inteiro. Mesmo com os visitantes chegando eventualmente, haveria momentos como aquele. Nos quais nada o ocuparia. Fiquei curioso em saber o que pensava. Em como a obviedade do mundo ao nosso redor se costurava em sua mente.
Era estranho, mas, por algum motivo, meus pensamentos sempre paravam ali. Não havia espaço para mais nada além de jardinagem na minha cabeça. Ferramentas, árvores, folhas, raízes…
Molar tinha dito que Po não era uma criança humana. Alguma coisa em mim já sabia disso, mas…
— O jardim é um lugar distante de todos os outros — me interrompeu o menino. — Mas ao mesmo tempo próximo. Está em todos os lugares. Ao mesmo tempo. Sem importar a distância, quem precisar vai nos encontrar — recitou. — Mas nada disso faz a menor diferença. Nunca.
Sentei no chão, apoiando as costas em um caule próximo. Conseguia ver somente suas pernas penduradas, mas tinha certeza de que não sorria. Seus sapatos de fivela escuros estavam prestes a escorregar de seus pés. Lembrei de Amélia, da bota que ela perdeu e da outra prestes a cair.
— Este jardim é seu? — continuei.
Não sabia durante quanto tempo ele estaria disposto a conversar. Não queria perder a oportunidade. Po não respondeu. Em lugar disso, se incorporou levantando um prato com comida e um copo de suco rosado.
— É melhor ocupar a boca — suspirou.
Aceitei a refeição. Lentilhas. Não me agradavam especialmente. Mesmo assim comi. Pressionar o garoto não serviria de nada. Não conversamos mais. O menino voltou a cantarolar uma melodia. Deixei o prato e o copo vazios sobre as pedras e encarei o céu. Sempre azul, flutuava silencioso sobre nossas cabeças.
Lars tinha chamado o Sol de Olho. Comecei a entender o motivo. A sensação de ser vigiado pelo disco de fogo me surpreendeu. A facilidade com que sua luz penetrava no jardim me fez pensar que não havia lugar fora de seu domínio. Agora, eu tentava fitar ele novamente.
Novamente, pisquei e desisti da ideia.
As poucas respostas que tinha recebido do menino borbulhavam em meus ouvidos. O que ele queria dizer com tudo aquilo? Se o jardim era um lugar distante e ao mesmo tempo próximo de todo aquele que precisasse entrar nele… Também o seria para quem quisesse sair? Nós poderíamos sair?
Po pulou de cima da pedra.
— Não vai demorar muito — bocejou Po. — Solano, pode pegar a pá de novo. Vai ter que limpar em breve. Quanto antes começar, antes vai acabar.
Antes que pudesse sequer me incorporar, uma rachadura atravessou a superfície do casulo. Como teias de aranha, fissuras se desenharam no esmalte. Pedaços de dente rodaram pelo chão. A textura firme e sólida na qual Po se apoiava instantes atrás se partiu em vários pedaços. Alguns blocos maiores que outros.
Uma pequena nuvem de pó se levantou ao redor dos restos. E, do meio dela, uma silhueta esguia emergiu. Era mais alta que eu e vestia um delicado vestido escuro. As pontas de seu cabelo longo, balançavam junto a sua cintura.
Aquela mulher tinha olhos sagazes, lábios curvos e elegância em sua postura. Experiência e autoridade emanava de seu corpo. Contudo, também emanava uma aura protetora, segura. Disposta a envolver e cuidar a todo aquele que precisasse.
Ela se aproximou de Po.
Tinha certeza de cada passo que dava.
— Molar agradece — disse em tom grave, curvando a cabeça e levantando a ponta da saia. — O que você fez por ela nunca será esquecido.
Aquela era Molar!?
Po a abraçou. Se não os conhecesse pensaria que eram mãe e filho. Não havia rastro algum além do íris roxo da criança que me atacara aquela manhã. Uma pessoa completamente diferente estava na minha frente.
A fada se aproximou de mim.
— Molar sente muito o ocorrido — se desculpou, inclinando-se.
Então propiciou um beijo em minha testa. Tão cálido e doce quanto o cheiro de jasmim.
— Na-não foi nada — gaguejei sem jeito.
Então, em uma lufada de vento, a fada desapareceu. Fiquei imóvel.
— Para onde ela foi? — perguntei finalmente.
— Com a menina. — disse o garoto. — Por isso veio até aqui — bocejou. — Pode continuar trabalhando. Terminou por hoje.
Como conseguia esquecer as coisas tão rápido? Ainda havia pilhas de dentes ao nosso redor, mas ele agia como se Molar já pertencesse ao passado. Então…
— Solano — me chamou o menino, parado de costas para mim. — Você não precisa saber tudo. Ninguém precisa. Brincar sem saber como vai terminar é mais divertido. Eu cuido desse jardim, então sim. Ele é meu. Isso é tudo?
— Eu…
— Deveria voltar a regar as orquídeas antes de ir para as cerejeiras. Ainda estão um pouco secas.
O menino se internou entre os caules até desaparecer. Quando olhei à minha volta reparei que o prato e o copo também tinham sumido. Contudo, no lugar onde o enorme casulo tinha se partido um pequeno pé de bambu brotava do chão.