Volume 1

Capítulo 3: A Visita

Valentim tinha os olhos miúdos, repletos de olheiras. Suas costas doíam de leve. Bocejando, ele estacionou o carro e saiu. Era uma noite limpa, com a lua minguante brilhando nas alturas. A residência do ruivo ficava num local meio deslocado, onde só haviam casas enormes, todas milionárias. A de Valentim não era exceção, a mansão dos Schulze era uma das maiores, de uma família extremamente respeitada, tanto no mundo comum quanto no simbolista. Tratavam-se de pessoas com poderes políticos e influentes em ambos os universos.

Por mais que a casa parecesse interminável, não havia ninguém lá. Valentim morava sozinho há anos, desde que seu pai faleceu. Ele tentava não pensar muito sobre isso, pois fazia construir um ódio dentro de si. Seus outros parentes preferiram deixar o local após isso, e deixaram a casa à Valentim.

Atravessando o jardim, desenhou um símbolo quadrático na frente da porta, que a fez abrir. Ao dar o primeiro passo na sala de entrada, o lustre de cristal acendeu-se, iluminando tudo. O local era repleto de móveis luxuosos, poltronas confortáveis, sofás, estantes com bebidas e uma grande lareira. Havia também uma escada em caracol, que dava para os andares superiores.

Assim que a porta se fechou, imediatamente um som de batidas veio dela. Três poderosas batidas.

Valentim paralisou. Não teve tempo o suficiente de alguém aparecer, e não havia ninguém lá. Alguém provavelmente estava escondido, esperando pelo momento certo. O Governo?

 Ele se virou, ajeitou os cabelos, coçou os olhos e instintivamente colocou o braço num local que impossibilitaria a passagem. Enfim, abriu a porta.

Ali, à sua frente, jazia uma mulher um pouco mais nova que ele. Tinha um cabelo liso, azul-noite, todo desajeitado, que ia um pouco abaixo do ombro. Era pálida e tinha olhos desleixados, parecia estar anos sem descansar.

Ela imediatamente se convidou — passou por baixo do antebraço de Valentim e entrou no salão, olhando à sua volta.

— Não mudou muito — murmurou para si mesma, com uma voz doce.

Valentim não compreendeu nada. A única coisa que passava pela sua cabeça era que a garota tinha péssimos modos. Com uma veia saltada na testa, ele perguntou:

— Posso saber quem você é? 

— Não — respondeu ela imediatamente, observando o enorme lustre de cristal no teto, com as mãos nas costas.

— Então saia — ordenou Valentim, abrindo espaço para a porta aberta.

Ainda com a cabeça levantada, a mulher o olhou de canto de rosto e sorriu.

— Não seja tão rude, Faísca — falou ela.

Valentim arregalou os olhos. Faísca. Um apelido que ele não ouvia há muitos anos. A última vez, pensou ele, foi na formatura da escola de símbolos, quando tinha dezessete, quinze anos atrás. A garota riu baixo ao ver a expressão do rosto dele.

Observando-a com outros olhos, agora era óbvio. O cabelo de cor única, as vestes desleixadas e a pequena bolsinha na cintura esclareceram tudo.

— Loreley — disse Valentim enquanto a porta se fechava. — Ou melhor, Caeruleum.

A moça grunhiu envergonhada.

— Não me chame assim. — Ela fechou os olhos em repulsa. — Éramos adolescentes com ideias idiotas.

— Então era o Governo na minha porta. — Valentim cruzou os braços — Fiquei sabendo que você se tornou vice-líder da tropa de proteção e segurança.

— Como sempre muito bem informado, sr. Detetive Sênior.

Os dois se sentaram à frente de uma lareira, em poltronas vermelhas e confortáveis. Valentim ateou fogo com um símbolo e pegou uma garrafa de vinho e duas taças da estante que se erguia ao lado das chamas.

— Obrigada, mas eu não bebo — comentou Loreley, ajeitando-se na cadeira pela centésima vez, como se nunca tivesse se sentado numa.

— Então — comentou, e com um símbolo, Valentim fez a garrafa pairar no ar e despejar o vinho sobre sua taça —, a que devo a honra, Loreley?

— Você visitou Tressmol uma única vez desde que se formou, Faísca? — perguntou ela, aquietando-se na poltrona e encarando o homem.

— Não. Soube que muitos professores foram demitidos nos últimos anos. A reputação da escola caiu muito.

— Deveria visitá-la. Tenho certeza que muitas memórias do nosso grupo vão aparecer nessa sua cabeça oca.

Nunca passou pela mente de Valentim visitar o lugar onde aprendeu a desenhar os símbolos. Desde que saiu, suas pesquisas estavam focadas nos símbolos proibidos. 

— Você tem falado com alguém? — perguntou Loreley. — Madame, Circular, Mármore? Algum deles?

— Não precisa chamá-los pelos apelidos. — Valentim deu um gole no vinho. — Na época, eu disse que não queria continuar a amizade.

— O Circular morreu — comentou ela bruscamente, estendendo o braço, pegando a taça de Valentim e dando um gole. Quando terminou, fechou os olhos com força e limpou os lábios com a manga da blusa. — Nojento.

— O quê? Circular?

— É — respondeu ela, devolvendo a taça —, e eu acho que sei quem matou.

Uma longa pausa acompanhada pelo som do fogo ao fundo aconteceu.

— Você, Faísca.

Valentim sentiu uma enorme tensão em seus ombros, como se o ar tivesse ficado infinitamente mais pesado. Estava com a boca entreaberta e um olhar inexpressivo fixo no chão. Por um breve momento, a visita de sua velha amiga ofuscou a realidade.

— Antes que você vá continuar sua chacina — Ela mostrou a palma da mão esquerda, onde havia um símbolo brilhando em azul-claro colado à sua pele —, se o meu coração parar de bater, você vai ser pego em menos de dez minutos.

Ele começou a suar levemente. Puxando a gola de sua camisa para se acalmar, uma veia na sua testa saltou. Antes de pensar numa resposta, Valentim lembrou que Loreley odiava o fato de a cor de seus símbolos ser azul-claro, e não azul-escuro.

— Loreley? Não estou entendendo, onde quer chegar?

— Não se faça de idiota, Faísca. Você sempre foi muito bom em mentir, já fui sua melhor amiga. Louis Wacotta, reconhece esse nome? É o atual nome do Circular, ou melhor, era...

Valentim quase mordeu sua própria língua.

— Então, a escrita na parede...

— É, fui eu. Você deve ter se perguntado: “Como é possível alguém ter escrito isso enquanto eu ainda estava aqui?” Na verdade, você não é idiota. Deve saber que alguém alterou o horário em que aquilo foi escrito utilizando um símbolo antigo.

— Pois é. A idiota Loreley Gantz da época de escola não existe mais, Faísca — continuou ela.

O homem cruzou as pernas e começou a balançar o pé ansiosamente. Muitas coisas o incomodavam. No fundo, estava de certa forma surpreso pela amiga ter melhorado muito na arte dos símbolos, antigamente, era uma completa pateta. Lembrou do momento em que recebeu a notícia de que ela havia se tornado a vice-líder da tropa e de como estranhou aquele fato. Casos perdidos nem sempre estão de fato perdidos, pensou.

— Me surpreendeu, Loreley — disse ele, totalmente polido. — Então você está dizendo que Circular mudou seu nome, rosto e até altura nos últimos anos?

— Isso mesmo. Você sabe bem, ele nunca gostou de ir para Tressmol. Mesmo conosco tentando consolá-lo, ele cedeu. Deixou todo o passado para trás para se tornar a pessoa que sempre quis ser. — As costas de Loreley bateram forte contra a poltrona. — Não é muito diferente do que você fez.

— E como você descobriu a identidade dele?

— Isso não vem ao caso, Faísca. Você o matou, está completamente cego por causa do Medalhão.

Valentim travou por um momento. Ela até sabia o que ele procurava. Sentiu uma enorme vontade de descobrir como.

— Então me responda uma única pergunta, e você vai poder falar o que bem desejar. — Valentim cerrou seus punhos. — Como você descobriu isso tudo?

— No dia em que você o matou, havia uma névoa. Não era uma névoa comum, era mágica. Símbolo antigo, se o desenhista não tiver poder o suficiente, o símbolo sai do controle. — Ela sorriu. — Calculei mal e a névoa acabou tomando o bairro inteiro. Você deve saber o que ela faz...

Tritiomichlimation. Você andou estudando umas coisas obscuras, Loreley. É a névoa do terceiro olho, o conjurador consegue notar e ouvir tudo, desde que esteja na área do nevoeiro. Símbolo antigo, e proibido. 

— Só saí impune porque a névoa só pode ser identificada por símbolos de detecção muito poderosos. E que pelo visto você não conhece.

— Então, fui pego por puro azar.

— Você não faz ideia do que eu ouvi naquela noite. — Ela fechou os olhos com força. — Aqueles dois podiam pelo menos comprar uma cama que não rangia... 

Um breve silêncio aconteceu, e Valentim não pôde senão sorrir, por mais que tenha tentado resistir.

O homem ajeitou a postura e descruzou as pernas, parecia mais calmo. De uma coisa ele tinha certeza: ela não estava lá para prendê-lo. Se fosse o caso, a garota não perderia seu tempo. O ruivo estava contendo a enorme vontade de perguntar sobre os tais símbolos que Loreley aprendeu, mas ele tinha de manter o controle da situação. Ele tinha de descobrir a razão da visita.

— Estou esperando, Loreley. Vai me entregar?

A mulher colocou a mão no queixo e olhou para a fogueira.

— Se eu ir embora, esquecer de tudo, você vai parar de buscar o maldito Medalhão?

— Não.

— Então. — Loreley tinha um sorriso triste em seu rosto. — Um acordo.

— Nunca fomos “os certinhos” — continuou ela —, mas não gosto do fato de você ter tirado a vida de três pessoas. Ainda mais uma delas sendo um velho amigo seu.

— Você afrouxou muito, Loreley. Em Tressmol, era você quem mais ria quando usávamos maldições menores nos primeiranistas. 

— Não afrouxei — respondeu, brava. — Me entristeci quando vi o corpo do Circular no chão, mesmo que não nos falássemos há muito tempo. Eu sou humana, ao contrário de você.

Mesmo com as palavras de Loreley, Valentim não sentia um pingo de remorso. Achava que a morte de seu antigo conhecido não fora em vão, já que ele ganhou uma preciosa informação.

— Faísca, por que está atrás do Medalhão de Alícia? — perguntou.

Valentim explicou a história por cima, sem detalhes. Disse que era o herdeiro do item. 

— Você é o descendente de Alícia? — Ela explodiu em gargalhadas. — Em Tressmol, achávamos que era só uma lenda, você se lembra? Só uma história para as crianças dormirem.

— Depois que você estuda os símbolos mais a fundo, você descobre que a existência do Medalhão é muito provável. Há símbolos que exigem uma energia absurda, que chegaria a matar a pessoa que tentasse desenhá-lo. Por isso existe o Medalhão. 

— É, eu sei disso. Você não foi o único que vasculhou o mundo atrás de símbolos proibidos.

— Mas então, Loreley, o que você veio falar comigo?

— Você já descobriu onde o Medalhão está, não descobriu?

— Na Torre de Babel — respondeu Valentim. — O Governo foi incompetente o bastante para deixar o item mais poderoso no local mais óbvio.

— De fato, o Medalhão está lá. — Loreley tossiu, como se estivesse se preparando para dizer algo. — Sabe o que mais está lá? O Necronomicon.

— Não. — Valentim se levantou bruscamente, sabia o que Loreley estava querendo dizer. — Me recuso a te ajudar a roubar o grimório maldito.

A garota ergueu a mão com o símbolo desenhado na palma, ainda estava resplandecente.

— Posso avisá-los apenas ao toque, se desejar.

— Desgraçada.

— Eu sei que você me ama, Faísca — disse ela, sorrindo. — Relaxe. Temos um objetivo em comum: invadir os mais altos andares da Torre. Vamos nos ajudar.

— Você pelo menos sabe o que é o Necronomicon, Loreley?

— Claro. Toda meia-noite, o próprio livro apaga uma página enquanto escreve outra com o conhecimento dos mortos. Fascinante, não?

— E em troca de todo esse conhecimento, aquele que ler será amaldiçoado.

— Sei muito bem dos riscos. Estou disposta a dar meus dois braços pelo livro.

Valentim voltou a sentar-se, quieto. Alguns segundos se passaram enquanto ele encarava a fogueira seriamente.

— Certo — bufou ele. — Mas caso conseguirmos, seguiremos caminhos completamente opostos.

— Que chato. Não vai querer um pouco do conhecimento do grimório maldito?

O silêncio voltou a tomar conta do local.

— Não — disse, depois de uma pausa. — Tenho meus limites. Não quero ser amaldiçoado.

— Uma pena. — Ela se levantou. — Enfim, fico feliz de ter vindo visitar você depois de todos esses anos, Faísca. 

— Não sei se posso dizer o mesmo — respondeu Valentim, bebendo o pouco do vinho que restara.

— No domingo seguinte, vamos até um lugar bem especial. Lá nós daremos início ao nosso plano. — Ela se espreguiçou enquanto andava até a porta. — Ah, e mais uma coisa. Nada de assassinatos. 

A garota saiu antes que Valentim pudesse respondê-la.



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