Volume 1

Capítulo 16: O Sacrifício

— Quase conseguiu, mas foi tolo. — Sr. Meros ia se aproximando em passos lentos, as mãos juntas nas costas.

O trio estava congelado no lugar. Loreley estava lançando olhares à Valentim, confusa. Já o ruivo estava submerso em um mar de memórias e pensamentos. Era claro que o sr. Meros, o velhinho boa pinta da recepção, era apenas uma máscara. O que o seu verdadeiro eu buscava era Juliette, que estava desacordada nos braços de Loreley.

— Pelo visto um inocente está atrás das grades — disse Valentim, dando um passo à frente.

— Ah, sim. — sr. Meros sorriu. — Uma coincidência e tanto, admito que graças a ele estou aqui agora, cumprindo com meu papel.

Parando para pensar, Clinton e o sr. Meros realmente tinham suspeitas em comum. Clinton ia de motocicleta ao trabalho, e o velhinho com a sua lambreta. E claro, para que o recruta pudesse ter acesso ao café, teve que passar pela recepção e pedir ao sr. Meros por uma garrafa. Mas, o velhinho tinha algo a mais. Algo que Valentim tinha deixado passar.

— A sua dor nas costas — O ruivo riu em uma forma de patetizar o fato. — Velhice uma ova, era efeito do símbolo que Symon te acertou por trás.

O sr. Meros riu.

— Doeu por dias. Redirecionar símbolos é algo difícil de se fazer, ainda mais vermelho como um tomate. Talvez eu tenha subestimado um pouco ele.

O vento balançou as folhas das árvores e as que estavam mortas no chão, e um silêncio se instaurou por poucos momentos. Loreley lentamente dava passos para trás.

— Podemos barganhar — disse repentinamente o sr. Meros. — Posso ajudá-los na sua fuga. Não me interessa a captura de vocês. Tudo que eu quero é a dúplice.

Loreley se engasgou de susto.

— Como ele sabe? Faísca, quem é ele?

— É o porteiro do meu trabalho

Sr. Meros riu uma segunda vez.

— Ele não está errado. E eu sempre soube. Juliette, uma dúplice. Uma criatura incrível que é facilmente rastreada por demônios.

Criatura? — Loreley soou indignada.

Demônios? — Valentim perguntou.

— Extremamente almejada por ter uma alma em dois corpos. O componente chave para o ritual de manifestação demoníaca.

Valentim nunca tinha ouvido falar de tal ritual, em instinto, ele virou a cabeça para Loreley, talvez ela soubesse de algo.

— …É verdade. Eles tiram a alma de um dos corpos, tornando-o uma casca vazia, e um demônio toma posse dessa casca, possuindo-a — disse Loreley. — Um ser humano normal morre instantaneamente ao ter a alma retirada, mas uma dúplice… 

— Sobrevive. A parte removida volta para o outro corpo. A casca continua viva, mas em um estado pior que o coma. É simplesmente… o nada. — disse o sr. Meros. — Precisamos dela.

Precisamos? — perguntou Loreley.

— Entendi. Você é só um mero escravo de um demônio, sr. Meros. Segue suas ordens cegamente. Há quanto tempo você trabalha no Departamento?

— Dez anos.

— E dez anos atrás Symon foi transferido para cá por causa do nascimento de Juliette e a morte da esposa.

— Venho preparando isso há muito tempo, sr. Schulze. No instante em que ela nasceu, o grande Baphomet já sabia de sua existência. Eu acompanhei sua trajetória desde sempre.

Valentim começou a ter dificuldades para olhar para o rosto do sr. Meros. Sentia a sensação mais pura de nojo. Era pior do que olhar para Clinton. Se tinha algo que o irritava mais do que aquele recruta, era escravos de demônios.

— E agora que ela alcançou uma idade em que suporta o ritual, podemos finalmente fazê-lo. O que me diz, sr. Schulze? Sua fuga pela garota. Logo Symon e os outros estarão aqui, e, convenhamos, vocês não têm a mínima chance.

— Se Juliette estivesse acordada… — Valentim olhou para o rosto dela. — Sabe o que ela diria, Loreley?

Ela sorriu.

Acaba com esse velho, AGORA!

Um lampejo de luz vermelha atravessou a mata, sendo redirecionado para o céu assim que se aproximou do sr. Meros.  

—  Péssima escolha, sr. Schulze.

Símbolos atrás de símbolos começaram a ser lançados um na direção do outro, alguns se chocavam no ar, outros mudavam de direção graças aos Kinisi dos duelistas. Valentim sentiu a diferença, estava mais fraco e mais lento. Lançou dois ou três símbolos que poderiam ter ido mais rapidamente se estivesse recuperado.

Loreley se agachou para deixar Juliette no chão para ajudar o ruivo no combate.

— Não! — Valentim notou a ação de Loreley. — Se ela ficar imóvel, vai ser um alvo fácil. Fique atrás de alguma árvore, Loreley!

E assim ela o fez. Procurou um tronco largo e encostou suas costas nele com Juliette em seus braços.

Um dos símbolos acertou em cheio o braço do sr. Meros, e o seu membro ficou imóvel, como se estivesse congelado. Valentim sorriu e começou a lançar uma chuva de Apodynamonos.

Por mais que fosse velho e gordinho, o sr. Meros não era um alvo fácil. Movimentava-se rapidamente entre os troncos, ziguezagueando pela mata, impossibilitando Valentim de acertar um símbolo sequer.

— Ficar atrás desse tronco para sempre não vai adiantar, sr. Meros!

O ruivo ia se aproximando lentamente, quebrando os galhos no chão com suas pesadas botas. O velho tinha se escondido atrás de uma árvore velha, quase cinza. O perseguidor preparou um símbolo e rapidamente avançou, apenas para encontrar nada onde supostamente estaria o sr. Meros.

Valentim olhou da esquerda para a direita e não encontrou o homem. Um instante depois, ele ouviu sua voz.

Thanatos.

O ruivo se virou e a única coisa que viu foi o símbolo da morte vindo na sua direção, perto demais para tentar qualquer algo. Valentim apenas fechou os olhos.

E aconteceu o som de algo batendo na terra.

Ao espiar, ele encontrou uma parede de terra maciça bem à sua frente. Algumas raízes e vinhas subiram junto com ela.

— O que foi isso?

Symon, tão cinza como nunca, estava a poucos metros de Valentim. Ele já tinha um símbolo desenhado, Apodynamono, pronto para lançar no ruivo caso desse qualquer passo em falso.

— Aquilo foi realmente um Thanatos? E o que diabos está fazendo aqui, sr. Meros?

O francês olhou para o outro lado da barreira que separava os dois duelistas. O velho estava tão próximo, mas ao mesmo tempo distante de Valentim.

— Pombo, você tem que me escutar. — O ruivo aproveitou que o sr. Meros não respondeu Symon.

— Você não tem nada para explicar, Valentim. Todos já sabem.

— Não é isso. — Ele deu um passo à frente.

O símbolo que flutuava bem na frente do dedo indicador de Symon brilhou por um instante.

— Não se mova.

— Certo, mas, escute. Clinton não é o sequestrador. Foi um erro. É ele. — Valentim apontou para o outro lado da barreira — Sr. Meros, por mais ridículo que soe, é o encapuzado.

Symon piscou algumas vezes.

— Você não está fazendo sentido.

— Estou. A moto que passava na sua rua era a lambreta dele. O café; a máquina ficava bem  na recepção. A frequente dor nas costas era efeito do seu símbolo.
— Ele está louco, Symon. Enlouqueceu depois de tentar roubar o Medalhão. Vim aqui para ajudar vocês a detê-lo.

— Mentira. Escute, Pombo, a sua filha é muito especial. Mais do que você imagina. Ele quer sequestrá-la e usá-la num ritual demoníaco.

— Como eu disse, louco. Lance o símbolo de uma vez, Symon.

O acinzentado hesitou por alguns segundos. Engolindo em seco, o símbolo em sua mão voltou a brilhar, apontando para Valentim.

— É verdade, papai.

Juliette estava de pé, com o vestido mais branco do que nunca. Loreley estava logo atrás.

— Sou uma dúplice.

Ela esticou o braço e graciosamente a segunda Juliette deslizou a partir dela, ficando bem ao seu lado.

— Mamãe deve ter feito algo muito ruim para que isso acontecesse. — As duas se sentaram de pernas cruzadas.

Symon estava de queixo caído. Tão estupefato que nem notou a barreira atrás de si se desfazendo. Valentim e o sr. Meros se encararam.

— O que você está fazendo aqui, Juliette?

— Não tenho tempo para explicar. Tudo que o Valentim disse é verdade. Ele estava me protegendo contra o velho.

A expressão do sr. Meros mudou de velhinho confiável para um olhar assassino. Ele lançou um Thanatos na direção do acinzentado.

Mas Valentim estava esperto. Rapidamente desenhou um símbolo de bloqueio e o combinou com um de perseguição. Ele voou pelo ar e acertou o símbolo da morte com sucesso, transformando-o em uma explosão de purpurina.

Droga!

— Apodynamono!

O lampejo de Valentim voou numa velocidade acima do normal, e pegou o sr. Meros de surpresa. Acertou bem no peito, o impulso o fez voar para trás e bater as costas numa árvore, consequentemente indo ao chão, inconsciente.

Symon agora trocava olhares entre a explosão e Juliette. A confusão era tanta que o símbolo em suas mãos tinha se apagado.

— Juliette está conosco desde que você me disse para cuidar dela. Não a arrastei para isso, ela que quis fazer parte.

— Isso é verdade também. Foi muito legal enquanto durou. E não, eu não me machuquei, papai.

— Então era isso. Você tinha se tornado… duas. Por que nunca me contou?

— Não via motivos para te contar. Quando eu virei uma dúplice, imaginei que você poderia saber o que a mamãe fez.

— Por que você soa como se já soubesse de algo, amigo? — Loreley se intrometeu.

Todos se entreolharam.

— Você não ia sobreviver o parto, Juliette. Por incrível que pareça, você era grande demais. O médico nos disse que parto normal era impossível, e cesariana tinha apenas uma chance.

Ele olhou para o chão, cabisbaixo.

— Sua mãe era uma ótima cantora e atriz. Conheceu muita gente. Inclusive, gente que mexia com magia negra. Tínhamos uma chance de você sobreviver. Ela fez um pacto, não podia me dizer o quê, nem como. Apenas disse que era a única chance de você sobreviver.

— Faz sentido — disse Valentim. — Dúplices são originados de algo divino, logo, o nascimento é garantido.

— Ela não me disse que não ia sobreviver. Ela deu a vida dela por duas suas.

Juliette estava muda, o rosto afundado nos joelhos.

— Bem, agora…

A postura de Symon mudou repentinamente. Ele estalou o pescoço, desenhou um símbolo no ar e virou na direção de Valentim, logo o símbolo estava indo na direção do ruivo em alta velocidade.

Valentim forçou os dentes e redirecionou o Apodynamono para longe.

— Não vai ser tão fácil, vai?

— Você arrastou Juliette para isso, cometeu assassinatos e traiu a minha confiança. Tudo isso por uma porcaria de Medalhão.

Symon começou uma sequência de símbolos, lançando-os enquanto andava para frente. O ruivo habilidoso redirecionava cada um deles para o céu, os troncos e o chão. 

— Papai! Não! — Ambas as Juliettes se levantaram, e Loreley as segurou pelos braços para não se intrometerem.

O último símbolo da sequência do acinzentado foi redirecionado para terra bem ao pé de Valentim, e um leve tremor aconteceu, derrubando o ruivo.

— O Valentim que eu conheço teria reconhecido o símbolo enquanto era lançado e teria o redirecionado para qualquer outro lugar.

— O Pombo que eu conheço saberia que me derrubar não seria o suficiente para me derrotar.

Mesmo caído, Valentim tomou seu turno e começou uma sequência ele mesmo. Enquanto lançava símbolos atordoantes que Symon aparava meio ar com os próprios, ele tentava se levantar, mas era impossível. O braço realmente fez falta, ele não conseguia se erguer apenas com as forças das pernas enquanto lançava símbolos com a única mão.

— Ruivo! Ele é meu pai, droga!

As Juliettes puxavam, quase se jogavam e gritavam, mas Loreley mantinha o punho firme para não deixá-las escapar.

Merda… me solta, Loreley! — As palavras saíram muito ofegantes.

— Você ainda não se recuperou do portal. É uma criança e está cansada só de tentar se soltar. Quando eu tinha sua idade, corria estádios e não me cansava.

— Eu sou… sedentária! Só isso!

Loreley não conseguiu conter o riso.

Valentim, que notou que estava ficando mais lento na formação dos símbolos, optou por terminar a sequência em um encantamento.

Aorato!

Symon ergueu as sobrancelhas e assim que redirecionou o último símbolo, rapidamente lançou um na direção de Valentim, mas o ruivo havia desaparecido dali.

— Invisibilidade é canalhice, ladrão.

O ar ficou tenso, num silêncio que mais parecia um zumbido para os ouvidos de todos ali. Symon buscava o ruivo com os olhos, indo de árvore em árvore, de arbusto em arbusto.

Quando notou, um lampejo vermelho rasteiro já estava na metade do caminho, o acinzentado ergueu o braço para redirecioná-lo, mas não foi rápido o bastante. Sua canela foi atingida e imediatamente congelou, assim como o braço do sr. Meros.

— Esse símbolo é bem rápido, não é? — disse Valentim, saindo da invisibilidade, revelando estar a alguns metros à esquerda de Symon. As Juliettes e Loreley pareciam uma plateia, tendo plena visão do duelo por estarem próximas ao centro. — É um dos meus melhores.

— Uma perna a menos não vai me parar de colocar você atrás das grades.

— Se é tão bom quanto diz, me mostre.

Símbolos vermelhos e cinzas explodiam no ar como fogos de artifício. Valentim conseguia acompanhar os movimentos de Symon e vice-versa. Contudo, estavam se desgastando. O ruivo já tinha enfrentado o velho antes, e toda a revelação realmente perturbou Symon. Periodicamente, os fogos de artifícios iam se explodindo com menos frequência.

Juliette estava chorando. Tinha parado de tentar se soltar e apenas via a cena com certo glamour e tristeza. Não queria que isso acontecesse, sabia que alguém ia sair realmente machucado dali. Por mais que negasse mentalmente, tinha estabelecido um carinho por Valentim e algo a dizia que o mesmo valia para ele. Já o outro era seu próprio pai, seu pai que a cuidou desde sempre, a levou para audições de canto, a ensinou a ler…

Tirando os pensamentos da cabeça, ela olhou para Loreley. A adulta parecia uma criança olhando para as luzes estourando, magnificada. Era sua chance.

Em um impulso da sua última força restante, Juliette se soltou e começou a correr para o centro, já estava decidida.

O braço de Valentim estava doendo, e o mesmo podia se dizer do de Symon. Sua visão estava começando a embaçar, o que o deixou sem escolhas. Juntando o resto de força que lhe restava, lançou um Apodynamono com mais força que o normal, esperando que o símbolo sobrepusesse o de Symon, assim, ao invés de explodir, o atravessaria e atingiria o parceiro.

Mas ele calculou mal. Ao invés deles sequer se chocarem, o símbolo rubro de Valentim passou por cima do Apodynamono cinza de Symon. Estava claro que nenhum dos dois iria conseguir redirecionar ou se esquivar do símbolo que vinha na direção de cada um. Valentim fechou os olhos, e Symon forçou os dentes.

Mas não houve choque.

O clarão das explosões deixava difícil de ver o que havia acontecido, mas assim que as visões se acostumaram, notaram uma Juliette na frente de cada um.

Elas só não foram ao chão porque tanto Symon quanto Valentim as seguraram.

— Juliette! — gritaram ambos, e também Loreley, agora ajoelhada.

Ela tinha um sorriso melancólico no rosto, e claramente tinha dificuldade para manter os olhos abertos.

— Sabe, eu não me arrependo de ter me metido nessa com vocês — disse a Juliette de Valentim. — Foi mais divertido do que cantar.

— Papai, não chore — disse a Juliette de Symon, a voz saindo fina e fraca. — Eu disse para vocês pararem.

Valentim olhou para Symon e Symon olhou para Valentim. Ambos tinham fios de lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Você tem que entender que o que fez não foi aplaudível, ruivo — disse a Juliette de Valentim. — Matou pessoas por um simples… colar.

— Estava… fora de mim — disse o ruivo. — Eu queria, a todas as custas, provar para o meu pai e para mim mesmo que eu era digno daquela porcaria.

— É, você mudou. Priorizou o meu bem estar ao invés dele. Por quê?

— Você e Loreley. — Ele olhou para ela e notou que a amiga de infância estava soluçando de choro. — Me fizeram entender.

— Por isso peço um favor. — Ela fez o sorriso malandro de sempre. — Se entregue, por favor.

Valentim não respondeu, nem aparentou ter uma reação.

— Papai… — disse a Juliette de Symon. — Sua filha um dia vai crescer. Você ainda trata ela como se tivesse cinco aninhos.

— Eu só me preocupo muito com você para que algo… — Ele engoliu. — Algo assim não aconteça.

— Eu sei que você não faz por mal.

Um silêncio se instaurou, com exceção dos grunhidos de Loreley chorando.

— Muito obrigada a todos vocês — disseram as duas Juliettes.

Ela fechou os olhos e suspirou pela última vez.

Para Loreley, estava tudo quieto. Não havia som algum ali. Para ela, Symon não estava gritando em desespero. Para ela, a chegada de Herman e dos outros ali foi tão barulhenta quanto um campo fresco e solitário. Também não notou o brilho roxo-escuro que provinha de sua bolsa até Valentim olhar em sua direção e gritar algo — mas apenas saiu silêncio.

Ela pegou a bolsa e a virou, todos os itens caíram na grama à sua frente, seu batom, seu pente, suas anotações e o Necronomicon, que abriu exatamente na primeira página, as letras brilhando diziam:

Sacrifício aceito.

No instante seguinte, Valentim foi atingido por um símbolo na nuca, que imediatamente o apagou. Os outros se aproximavam de Loreley para fazer o mesmo.

Porém, ajoelhada e com o livro maldito em mãos, ela proferiu algumas palavras mágicas que nem ela sabia o que significava. As páginas e os olhos de Loreley brilharam em azul, seu cabelo voou e logo depois ela e o livro desapareceram dali, deixando apenas uma claridade cega.



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