Volume 1

Capítulo 15: A Dúplice

Juliette tinha um privilégio na situação em que se encontrava — ela não precisava comer e nem dormir, sendo poupada dos cogumelos estranhos que Loreley trazia, depois de procurar comida por horas.

— Por que você simplesmente não cria comida com transmutação? — questionou a criança ao ver que Loreley mastigar os cogumelos se comparava a uma das piores torturas.

— Transmutação não garante nutrientes. Só mata a fome momentaneamente. Achei que você saberia disso.

— Ah, é verdade. Mamãe sabia de tantas coisas… às vezes é demais pra minha cabeça. Falando nisso, o seu livro… Necronomicon, não é?

Loreley assentiu com a cabeça.

— O sacrifício não precisa ser aquele que está escrito. Um com o mesmo peso deve funcionar.

De boca cheia, a mulher de cabelos azuis arregalou os olhos em resposta.

— Eu falei que a mamãe sabia de muitas coisas.

Depois que Valentim colapsou, seu estado tinha piorado. Tinha dificuldades para se manter de pé, tendo que frequentemente se sentar ou deitar. Sua maior preocupação, no entanto, era se estavam seguros ali, na floresta.

A floresta de Tressmol era grande, e Loreley sabia que levaria pouco tempo até rastrearem o portal. O plano era ficar nesta clareira alguns dias, depois começarem a se mover, ainda dentro da floresta, até Valentim ser capaz de atravessar um portal.

À noite, os três trocavam turnos de vigia. Juliette se ofereceu para ficar ali permanentemente, mas Loreley não deixou. Sentia um misto de dó e injustiça, mesmo que Juliette não precisasse descansar, Loreley se sentiria culpada por colocar tanto peso nos ombros de uma garotinha.

Os turnos de Valentim eram menores, geralmente apenas no começo da manhã, de uma ou no máximo duas horas. Algumas vezes, enquanto o sol nascia, ele ouvia Loreley chorar e chamar o nome do marido enquanto dormia.

Em uma das manhãs em que Valentim estava de vigia, Juliette saiu da barraca, se espreguiçou como se estivesse sozinha e se sentou na grama com as pernas cruzadas, olhando para o céu.

— Você não sente frio? Seus braços ficam super expostos nesse vestido. — Valentim estava sentado em uma das cadeiras que puxou para fora da barraca.

Juliette o olhou com um tom de extrema ironia.

— Ah, o seu clone. É claro.

— Você perdeu um braço, não o seu cérebro.

Ela riu da própria piada.

— Papai tem passado pouco tempo em casa ultimamente. Deve estar um caos. Não consigo extrair muito dele, quase nada, na verdade. Ele apenas disse que “o tio Valentim fez algo muito ruim”.

— Por que você ainda está conosco? — questionou bruscamente Valentim.

— É difícil deixar uma floresta no meio do nada. Preciso tocar na minha outra parte para nos juntarmos.

— Sabe fazer um portal. Seu corpo aguentou o primeiro, por mais que teve minha ajuda. Você poderia voltar para casa e fingir que nada aconteceu.

Juliette ficou em silêncio, brincando com a grama entre os dedos.

— Por que você me salvou? — Ela disse como se estivesse entalado há muito tempo. — Poderia ter me deixado lá, e você teria o Medalhão.

Valentim estava tentando evitar este pensamento desde que acordou. Não sabia porque tinha a salvo, foi um gesto inconsciente, praticamente natural. Nem sequer pensou na possibilidade de deixá-la.

— Não é a primeira vez que estou em dívida com você. Sinto que ir embora agora seria errado. E a companhia de vocês não é tão ruim.

Valentim nunca teve esse tipo de relação. Sempre fora solitário e recluso, vivia a vida aos seus modos, sem se preocupar demais com as consequências. Uma das únicas exceções foi seu grupo em Tressmol — Caeruleum, Circular, Madame, Mármore e ele, Faísca.

*

— Muito bom dia, sr. Meros.

Symon sentou-se em uma poltrona na boa e velha sala de xérox. O velhinho bigodudo o cumprimentou com um sorriso caloroso, como sempre o fazia todas as manhãs. Levou certo tempo até o clima se estabilizar após o roubo do furgão, hoje parecia estar um dia mais tranquilo que os anteriores.

Depois de uns dois ou três xeroxes que sr. Meros tirou, Herman entrou na sala com algumas apostilas em mão. Devido à ligação de Valentim no caso, a Tropa de Proteção e Segurança e o Departamento de Assassinatos Mágicos estavam trabalhando em conjunto.

— Symon — disse Herman, fechando a porta atrás de si. — Os resultados de ambos os portais saíram.

— Ambos? — Symon se levantou.

— O do musical e o do roubo.

O acinzentado suspirou. Toda a dor de cabeça do roubo do Necronomicon afastou seus pensamentos sobre o quase sequestro da filha. O atraso do resultado teve o mesmo motivo.

— Sobre o primeiro. — Herman abriu uma das apostilas e começou a ler seu conteúdo. — Foi para um local estranho, um bairro rico. Temos uma lista dos desenhistas da área, mas vai demorar para conversarmos com todos. Ainda mais porque é uma área cheia de idosos, e sabe como eles são.

Herman nem sentiu o olhar perfurante de sr. Meros pelas suas costas.

— Certo, mas — Symon apanhou a apostila —, não entendi o porquê dessa conversa. O culpado já foi pego.

— Sobre isso — disse Herman, tensamente. — Interrogamos Clinton sob o efeito de Kathari Alitheia.

— Sim, o símbolo que o impossibilita de mentir.

— Ele nunca esteve na área. Ou melhor, não sabia que ela existia.

— O quê?

A sala ficou em silêncio. Symon leu o documento por inteiro, era exatamente o que Herman havia dito. 

— Mas isso quer dizer que… — Symon abaixou o documento.

— Ou ele teve um lapso de memória sobre a área, o que seria conveniente demais, já que isso aconteceu no outro caso, ou…

— …Não foi ele. Mas, não entendo. Tudo fazia sentido.

— Esqueça isso. — Herman abriu outra apostila. — Por mais que seja sua filha, temos outro assunto importante. O local do portal de Valentim e Loreley.

Symon fez o mesmo com esta apostila, mirando justamente o local que dizia onde o portal levava. A Floresta de Tressmol.

O acinzentado se sentou. De repente se sentiu cansado.

— Já temos grande parte da operação preparada. Hoje discutiremos pequenos detalhes. Amanhã cedo, vamos direto para a floresta procurá-los. Um grupo de quatorze pessoas — disse Herman, pegando os documentos de volta.

— Minha folga terá que ficar para semana que vem, então.

*

Juliette despertou assim que Loreley, toda descabelada e com os olhos miúdos, entrou na barraca fazendo um sinal de que era a vez da criança vigiar. Juliette não estava dormindo, apenas descansando seus olhos.

— Como você consegue deixar o seu cabelo bonito desse jeito? — perguntou Loreley enquanto deitava na cama. No instante seguinte ela estava já adormecida.

Juliette, com extrema cautela e num silêncio gracioso, levantou-se da cama onde estava. Ela odiava fazer qualquer barulho enquanto os outros estavam dormindo, sempre ia nas pontas dos pés e com movimentos lentos, extremamente calculados.

Ela calçou sua sapatilha branca, limpou alguns fios de cabelo que se grudaram ao seu vestido, lançou um olhar curioso para Valentim e Loreley para averiguar se estavam de fato adormecidos e saiu da barraca.

Era cinco, quase seis da manhã. O céu estava naquele misto de escuridão e claridade, o ar estava congelando, mas a outra parte de Juliette estava no quinto sono, protegida e quentinha em casa.

Sempre foi uma sensação estranha, a de estar acordada e dormindo simultaneamente. Não sabia explicar, e, quando Loreley perguntou, disse que era como estar num sonho muito vívido.

Ela sentou na grama sobre o vestido, com os pés e os joelhos juntos. Puxou o cabelo para deixá-lo escorregar pelo ombro direito.

O céu estava lindo, como todas as outras noites. Todas as estrelas no mesmo lugar, umas mais brilhantes do que outras. Ela ficou fascinada com isso desde que ficou de vigia pela primeira vez, agora, quase uma semana depois, ainda continuava fascinante.

Na cidade, em meio a tanta luz e barulho, era quase impossível apreciar a beleza que o céu noturno oferecia. Tinha pensado: e se eu estudasse as estrelas? Sua paixão sempre foi a música, mas na última semana, o espaço tinha pego um assento especial em sua cabeça. Ela poderia fazer ambos, afinal, tinha dois corpos. Era só um estudar música enquanto outro estudava as estrelas…

Não. Ela tinha que manter em segredo. Ser uma dúplice não era uma bênção, era uma maldição. Punição por algo que sua mãe havia feito. Ela desejava, mais do que tudo, saber o que ela fez. O que era tão importante, mas tão importante, que amaldiçoaria sua própria filha para fazê-lo?

Mas nunca saberia. Mamãe estava morta, e Juliette nunca teve a lembrança da própria mãe que explicava o porquê dela ter feito isto. Talvez os Deuses — ou Demônios — a apagaram, para que causasse exatamente o que causou nela: curiosidade e extrema frustração.

Outra coisa que sempre a assolou: por que ela sabia que ser uma dúplice era uma maldição? Mamãe tinha estudado isso em algum lugar, sabia que era algo ruim, mas não sabia o porquê. Há muitas vantagens, como ser duplamente produtiva ou nesta própria ocasião, onde não precisa se preocupar com as necessidades básicas.

Mas claro, havia obviamente o lado negativo. Ela sente em dobro. Se sofrer um corte pequeno, seria como um corte grande. Arderia muito mais. Se ambas sentissem frio, provavelmente congelaria — e morreria.

Nada disso era o suficiente para convencê-la. Era só tomar cuidado e nunca aconteceria. Não se arriscar demais. 

Mas… não fazia sentido. Uma maldição não é balanceada em negatividade e positividade.

Estava pensando demais. Tinha que relaxar. Sempre que ficava sozinha era assim, sua mente se inundava de pensamentos e parava de prestar atenção na realidade. Piscou algumas vezes antes de fechar os olhos.

E… manteve os olhos fechados, imóvel como uma estátua, por alguns segundos, enquanto alguém falava com sua outra parte.

Depois, ela, num surto de adrenalina e desespero, se levantou e voltou para o interior da barraca, indo imediatamente na direção de Loreley.

— Loreley! Loreley! — gritou. — ACORDA!

Ainda descabelada e atordoada, ela acordou. Antes que pudesse dizer um palavrão, Juliette falou:

Papai está vindo.

Loreley piscou várias vezes. Não sabia do pai de quem ela estava falando.

— Papai vai nos procurar! Temos que fazer alguma coisa, já!

— Como você sabe?  — Loreley se sentou, coçando o olho.

— Ele veio se despedir. Disse que ia em algo perigoso, mas voltaria assim que pudesse. Ele só pode estar vindo pra cá!

Loreley praguejou enquanto se levantava e procurava sua bolsa.

— Valentim não está em condições para um portal…

— Temos que simplesmente fugir, então — disse Valentim, também se levantando. Parecia menos pálido e mais vigoroso, mas nem perto de ser o Valentim de antes de perder o braço.

— Para onde?

— A floresta. Ela é grande, há alguns lugares que podemos nos esconder e torcer para não sermos pegos.

— Eu vou trazer a minha outra parte — disse Juliette, e os dois adultos imediatamente fixaram os olhares nela. — O que foi?

— Você vai morrer — disse Valentim. — Não desperdice a chance que eu te dei.

— Não vou. Tenho todo o tempo do mundo para desenhar aquele portal. Posso deixá-lo o mais estável possível.

— As chances de você vir pela metade ainda existem — comentou Loreley, verificando se todos seus pertences estavam na bolsa. — Afinal, por quê? Você devia fazer um portal para voltar para casa, não para trazer sua outra parte aqui.

— Posso ajudar na fuga. É mais uma pessoa para ajudar vocês a lançarem símbolos incapacitantes em quem vier. Não quero que vocês sejam pegos. Eles sabem que vocês estão aqui, vai ser impossível de saírem.

— Não seja idiota, você é só uma criança. Não vai conseguir acertar um símbolo sequer — cuspiu Valentim, as rugas se mostrando ao olhar para Juliette.

— Eu discordo — rebateu Loreley. — Ela desmaiou Herman enquanto você estava soterrado. Usou um símbolo de lançamento em um concreto.

Juliette sorriu com desdém para o ruivo. Ele respondeu com uma encarada séria.

— Você vai morrer.

— Não ligo se for o caso. Não pratiquei esse símbolo à toa. Aliás, nenhum de vocês pode me parar.

Valentim suspirou, irritado.

— Oh. — Loreley beijou a bochecha de Juliette, a fazendo corar como um tomate. — Você é um anjo. Não precisava fazer tanto por nós.

Em menos de cinco minutos, os três estavam fora da barraca. Loreley disse algumas palavras mágicas para desfazer o símbolo, e o lugar estourou e sumiu como uma bolha.

No minuto seguinte, estavam desbravando a floresta. As árvores eram grandes, por mais que o lugar se chamasse A Floresta de Tressmol, ela se assemelhava mais a um bosque do que a uma floresta de fato.

Valentim ia na frente, observando os arredores com cuidado. Atrás, Loreley segurava a mão de Juliette, ambas super atentas ao chão para não pisar em falso.

— Qual é o plano? — questionou Loreley.

— Vamos achar uma árvore grande —  respondeu Valentim. — Usar alguns símbolos de disfarce nela, nos escondermos nela e torcer para que passe despercebida pelos investigadores.

— Você é, era, detetive. Isso funcionaria contra você?

— Não.

— Então por que DIABOS estamos seguindo o seu plano?

— É a nossa única e melhor chance. Um segundo portal seria fatal. — Valentim parou, observando uma clareira à sua esquerda. — Você poderia tentar um, Loreley. Mas deixaria rastros.

— Se nem Juliette fugiu, por que eu fugiria?

Se fosse eu…

— Quietos! — gritou Juliette, parando atrás de Loreley. — Terminei o portal. Me desejem sorte.

Loreley e Valentim ficaram encarando ela, Loreley visivelmente preocupada e Valentim sem expressão alguma. A criança tinha os olhos fechados, focando toda sua concentração no portal.

Ficaram assim por alguns segundos, o som da floresta e a respiração lenta, mas audível de Juliette tendo destaque. Logo, um clarão surgiu, e a segunda Juliette apareceu.

A criança abriu os olhos, parecendo um pouco zonza. Sorriu ao ver a presença da sua outra parte e as duas começaram a cambalear, vacilando os passos no chão de grama. Uma primeira Juliette caiu nos braços de Loreley, a segunda veio logo atrás, se juntando ao corpo da primeira, tornando-se finalmente uma só.

— Desmaiou — disse Loreley. — E está ficando muito pálida.

— Inacreditável o quanto essa garota é sortuda.

Valentim tinha começado a caminhar na direção da clareira, e essa pouca distância que se movimentou o salvou.  Um símbolo passou raspando pela sua nuca e cravou-se no tronco de uma árvore.

Em reação, levaram o olhar para o tronco. Ali, jazia o desenho de um símbolo conhecido pelos dois ali.

Thanatos.

Por um triz, Valentim não estava morto. Ele soltou o ar que nem percebeu que estava segurando e olhou envolta. Não muito longe dali, caminhando através da bruma criada pelas folhagens, havia uma pessoa, uma silhueta indiferenciável.

— Por pouco, sr. Schulze. — Fez uma pausa. — Entregue a criança se não quiser que o próximo o atinja em cheio no peito.

Após mais alguns passos, parando exatamente onde uma pequena fração da luz do sol batia, estava o sr. Meros.



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