Volume 1

Capítulo 14: O Livro Maldito

Symon estava caminhando pelo corredor das salas de interrogatório. O lugar era longo, estreito e cheirava a giz. Todos os locais com alguma relação mágica eram compactos, afinal, não se tratava de tamanho, mas eficiência. Desde que os departamentos cumprissem as suas funções, não havia motivo para uma expansão.

Havia pessoas por toda parte, o Departamento de Assassinatos Mágicos estava um caos. O acinzentado foi acordado no meio da madrugada por um telefonema — que por sinal ele nem se lembra de quem — dizendo uma explosão de informações. A escolta foi comprometida! Levaram um dos itens! Um dos culpados é Valentim!

Achou que era piada. Uma de péssimo gosto. Mas não era. Valentim era de fato um dos culpados e agora está foragido.

Depois de tanto serpentear pelo corredor, chegou ao seu destino. Lambeu a mão e passou-a pelo cabelo antes de adentrar a sala.

— Bem a tempo. Parece que esse daí vai ser um dos complicados — disse a única pessoa na sala, Herman, apontando para o painel que dava visão para a sala de interrogatório.

Através do painel, Symon pôde ver um único indivíduo sentado à mesa. Suas mãos cobriam o rosto e ele batia a perna loucamente, extremamente abalado.

— Acho que ele não foi muito com a sua cara — disse Symon.

Atravessando mais uma porta, Symon chegou à pequena sala de interrogatório. Uma mesa retangular estava no centro, rodeada de poucas cadeiras desconfortáveis. Uma única luz fraca pendia do teto, iluminando o centro da mesa.

— Olá, sr. Gantz. Sou o detetive Symon. Posso fazer algumas perguntas?

O homem à frente abaixou as mãos, revelando seu rosto. Estava maleficamente desfigurado, com cicatrizes e pontos. Quase irreconhecível.

— Loreley nunca faria isso — disse bruscamente.

— Loreley Gantz fez isso. O Necronomicon foi o único item roubado. E você estava lá com eles.

— Não. — Balançou a cabeça. — Não estava. Não me lembro de nada.

Symon se lembrou do relatório que leu a caminho do trabalho.

…O terceiro suspeito foi encontrado desacordado entre os escombros severamente ferido.  Segundo o laudo médico, o paciente estava em coma, sem previsão para despertar. Ao utilizar o símbolo Afypsini para acordá-lo, foram realizadas algumas interrogações, onde o suspeito apresentou severa perda de memória…

Symon nunca tinha lidado com algo parecido antes. Não havia sido detetive de nenhum caso onde o suspeito, ou melhor, o culpado sofreu tal falha de memória. 

— E qual a última coisa que o senhor se lembra?

— De uma noite na qual Loreley passou a madrugada estudando algo. Não sei o quê, nem o porquê. Ela faz isso direto. — Mármore coçou a nuca. — Fui dormir e acordei numa cama de hospital, rodeado por gente do Governo. Ah, e com uma dor avassaladora nas costas.

— Você foi encontrado em meio aos destroços feitos pela batalha, batalha na qual… — Symon sentiu um leve aperto na garganta. — Valentim Schulze, Loreley Gantz e você tomaram parte no roubo do item.

— Já me disseram isso um milhão de vezes. Não precisa me recordar. Não lembro de nada, não sei nada, nem Loreley e nem meu amigo de infância, que eu não o via há anos, fariam isso. — Parou e fez um breve silêncio. — Na verdade, é possível que Valentim fizesse isso.

Symon encostou as costas na gelada cadeira de metal.

— O carro de sua esposa foi encontrado no local, sob um feitiço de invisibilidade. Ele…

— Olha, não sei o que você quer tirar de mim. — Mármore o interrompeu. — Não lembro disso. Não sei do que está falando. Eu sou um total inútil como testemunha, cúmplice, seja o que for. Eu não me lembro. Seu esforço é fútil.

Symon bufou e se levantou apressado. O homem estava certo. Não adiantava fazer perguntas. Um baita azar ele ter perdido as memórias, pensou o acinzentado enquanto deixava a sala em silêncio.

*

Estava tão claro quanto a explosão do viaduto. Os olhos de Loreley demoraram para se acostumar com a luz. Depois de algum tempo olhando para o chão — maneira que ela encontrou de evitar a dor de ser exposta a tanta claridade — e de piscar algumas vezes, sua visão se acostumou. Ela estava em um solo que vacilava entre folhas secas e terra.

A floresta de Tressmol. Ela tinha se esquecido de que nunca escurecia nessa área, trabalho de um símbolo de claridade permanente. Era para os alunos não se perderem em tal lugar.

Sentiu o peso do item em seus braços. O Necronomicon. Estava protegido pelo baú de metal. Cansada de segurá-lo, colocou-o no chão.

Foi nesse momento que seu terror voltou para assombrá-la.

Diante dela, apareceu Juliette e Valentim. A criança estava, graças aos deuses, pensou Loreley, sã e salva. Porém, Valentim tinha sangue esguichando pelo braço decepado. Ele imediatamente foi ao chão, já desacordado.

Juliette tropeçou e caiu no chão, tonta e espantada por tanto vermelho. Havia sangue em seu vestido, nas roupas de Valentim, nas folhas, tudo. Loreley imediatamente se ajoelhou ao lado do amigo de infância.

Levou um momento para compreender a situação. Ela levou o olhar para Juliette ao ombro de Valentim algumas vezes antes de decidir o que tinha de fazer. Levantou as mãos e começou a desenhar um símbolo, mas as linhas saíam trêmulas, assim como estavam suas mãos, o que impedia a criação de um símbolo funcional.

Tentou uma segunda e terceira vez, sem sucesso, apagando o símbolo curativo. Sabia que não estava em condições de desenhar. Levou as duas palmas da mão ao rosto, cerrou os olhos e respirou fundo, tentando manter a calma.

— Juliette, venha aqui.

A garota pareceu não ter ouvido, tinha os olhos assustados fixos em Valentim.

Juliette!

A criança voltou à realidade, levantando-se com pressa, mirando Loreley.

— Na minha bolsa, aqui na minha cintura — disse Loreley, rasgando um grande pedaço de sua camisa com as mãos —, tem algumas moedas e uns papéis. Pegue tudo e deixe no chão.

Juliette, também de joelhos, vasculhou a bolsinha de Loreley e deixou os itens sobre o chão de folhas secas enquanto a outra amarrava o pedaço de camisa no que restou do braço Valentim, agindo como um torniquete para estancar o sangramento.

— Transmute-os. As moedas em cubos de gelo e o papel em uma sacola plástica — disse Loreley enquanto pressionava o ferimento.

— Eu não… não sei se vou conseguir. Loreley, você…

A mulher virou-se e levou as mãos ao rosto de Juliette, as palmas na bochechas e os dedos na testa. O sangue de Valentim que estava nas mãos frias de Loreley sujou o rosto da pequena garota. Elas se encaravam, Juliette triste e Loreley determinada.

— Você tem que conseguir. Se não, ele vai morrer. Precisamos pelo menos parar o sangramento. Quando minhas mãos pararem de tremer, eu dou um jeito com um símbolo curativo. 

Juliette pareceu prestes a chorar. Ela sabia que tinha que pelo menos tentar. Ela olhou fixamente para os itens no chão e começou a desenhar, as linhas brancas como um anjo.

Tentou uma primeira vez, as moedas viraram pedras frágeis, que se esfarelaram ao toque. Depois de frases de conforto de Loreley, Juliette teve êxito na segunda vez. As moedas extras e o papel luziram forte e se transformaram numa sacola plástica com gelo.

— Perfeito — disse Loreley, pegando a sacola e pressionando-a contra o ferimento de Valentim. O chão agora era uma mistura de sangue e terra. — Não sei muito sobre a maneira tradicional de socorro médico, mas sempre que eu tinha dores, minha mãe colocava gelo. Deve ajudar, pelo menos um pouco.

*

Era de noite. Valentim caminhava por uma rua estreita, sem conseguir ver à frente devido à escuridão. O asfalto era estranhamente apertado, nenhum carro conseguiria passar por ali, se parecia mais com uma ciclovia do que com uma rodovia.

Das duas calçadas, figuras familiares começaram a aparecer em intervalos. Loreley. Symon. Mármore. Juliette. Seu pai. Herman. Clinton. Todos encaravam o ruivo, e ele parecia não poder virar o pescoço, como se estivesse preso a olhar para frente por toda a eternidade. 

Depois de todas as pessoas passarem, ele chegou ao fim da rua. No chão estava o baú. O maldito baú com o Medalhão. Ele o pegou. Ele tem o Medalhão. 

Toda a euforia que sentiu foi o suficiente para acordá-lo.

Estava deitado em uma cama desconfortável. Sentiu o cheiro de fumaça e grama. Ouviu o som de fogo estalando. Ergueu o tronco para observar, estava em uma barraca. Uma barraca estranhamente familiar. Era enorme — parecia um pequeno apartamento. Havia uma lareira, algumas camas que mais pareciam sacos de dormir e um lugar com mesa e cadeiras simples.

A grande barraca de Leomund. Era um símbolo avançado de descanso.

Percebeu que algo estava errado. Lembrava dos últimos momentos no furgão. Herman chegando, Loreley criando seu portal, Juliette o abraçando…

E então, pura escuridão.

Olhou envolta espantado, observando a barraca pela segunda vez, como se procurasse por algo, sem saber o quê. Não sabia o que tinha acontecido. Onde estaria Loreley? Juliette? O Medalhão?

E então, Valentim lentamente notou a falta de seu braço direito. Havia absolutamente nada no lugar.

Fechou os olhos em desolação. Tinha pago o preço. Não sentia dor alguma, na realidade, não sentia nada, apenas o vazio. Era muito estranho comandar o seu corpo e ele simplesmente não obedecer.

Ao levantar, sentiu um enorme peso nos ombros. Estava exausto. Foi caminhando com dificuldade até a saída, e espiou para o lado de fora.

O céu estava coberto de nuvens, dando uma iluminação melancolicamente cinza para a floresta. Vento gelado assobiava entre os troncos. O ruivo notou que a barraca estava em uma clareira relvosa, cercada por árvores e mais floresta.

Sentada apoiada em um tronco de árvore, estava Juliette, aparentemente olhando suas unhas. Valentim suspirou aliviado inconscientemente. Mais no centro, à frente da barraca, Loreley tinha um livro aberto em mãos. Estava com os olhos fixos nele.

— Faísca! — Ela fechou o livro apressadamente ao notar a presença de Valentim. — Como está? Sente dor, ou algo? O símbolo curativo fez efeito?

Os próximos minutos se passaram com Loreley atirando perguntas e mais perguntas para Valentim. Ele teve que esclarecer três ou quatro vezes que não sentia dor, apenas exaustão.

— Chega. — Valentim disse, ríspido. — O livro que está segurando, é o que eu penso?

Era um livro de capa grossa, um azul que era quase preto. As páginas eram escuras, praticamente negras. O conteúdo da capa estava escondido sob as mãos finas de Loreley. O olhar que ela levou ao livro respondeu a pergunta de Valentim.

— Se ele for o que promete ser, podemos escapar dessa com facilidade. Já conseguiu acessá-lo?

— Não, não consegui — respondeu, ainda olhando para o Necronomicon.

— Por quê? — Valentim se aproximou, e Loreley lentamente entregou a relíquia.

Valentim sentiu uma estranha sensação, certamente inexplicável, ao segurá-lo. A capa era misteriosa, com formatos aparentemente aleatórios e quatro caveiras em baixo. Era pesado, parecia ter cerca de trezentas e tantas páginas. O ruivo o abriu — com dificuldade, por ter apenas uma das mãos — em uma página aleatória.

Nada. Estava em branco, ou melhor, em preto, já que as páginas eram pura escuridão. Valentim foi passando de página em página e não encontrou resultado diferente.

— A primeira é a única que tem algo — comentou Loreley, pegando o livro das mãos do ruivo e abrindo a primeira página.

A princípio, não tinha nada. Era como as outras páginas do Necronomicon. Mas, depois de poucos segundos na mão de Loreley, algo começou a ser escrito.

As quatro grandes divindades do submundo, Tártaro, Érebo, Nix e Hades dão as boas vindas à Loreley Gantz.

Para possuir acesso ao Necronomicon e todo seu conhecimento, um sacrifício para se provar digna e leal é necessário.

As quatro divindades exigem a morte de Valentim Schulze.

O ruivo sentiu o seu estômago revirar. Era real, o livro, o sacrifício, o conhecimento que ele provém… tudo. Num ato sem pensar, ele rapidamente apanhou o livro, e a primeira página começou a ser reescrita.

Os dois primeiros parágrafos eram quase idênticos, houve uma grande mudança apenas no último.

As quatro divindades exigem a destruição do Medalhão de Alícia. 

Ele derrubou o livro e levou a mão ao rosto. Sentiu um grande peso nos ombros, nos braços e nas pernas e também uma náusea. Loreley se aproximou e ajudou Valentim a não tropeçar e cair.

— Não vou te matar — disse ela, com um leve sorriso no rosto. — Se é isso que está pensando.

— Que símbolo de cura você usou? — As palavras de Valentim saíram com dificuldade.

— Droga, já tá passando o efeito? Juliette, me ajuda aqui! Eu disse que não era boa com símbolos curativos…

A visão de Valentim foi se tornando cada vez mais turva, até ser coberta por pura escuridão.



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