Volume 2
Capítulo 26
A neve se estende à minha frente, uma paisagem impiedosa e desolada de um branco infinito intercalada por rochas acinzentadas. O gelo cruel mata a vegetação, expulsa os animais e nos deixa vagando em uma busca desesperada de comida, foi o que disse ao meu pai, pedindo para nos mudarmos daqui, e nada adiantou, apenas os mais fortes do clã conseguem caçar sem dificuldades, monstros, não animais. O frio exorbitante penetra até os ossos. Odeio o frio com todas as fibras do meu ser.
De pé no topo dessa árvore que um dia tenho certeza que possuía alguma cor além do branco da neve e folhas mortas, vejo apenas um cenário sombrio de pedras rochosas e árvores aprisionadas sobre o manto implacável da neve. A brancura opressiva domina tudo, transformando a paisagem em um espetáculo árido e congelante.
— Quando é que vou parar de sentir todo esse frio? — murmuro para mim mesmo, soprando o ar quente da boca nas minhas mãos.
Sinto o frio penetrar nelas, mesmo com luvas grossas de couro de urso. Meu pai disse que quando atingimos uma certa idade nos adaptamos ao frio, se tornando um com esse ambiente… desagradável.
Ouço um barulho de um galho sendo partido em frente. Preparo o arco que estava pendurado no galho ao meu lado e miro entre as árvores, alvejando a origem do som. O vento está calmo, consigo um tiro limpo e certeiro sem muitas dificuldades. Poderia ser um alce, conseguiria fazer um par de luvas e botas novas, e se for um lobo de gelo posso usar as unhas dele para fazer lanças melhores para os membros do meu clã.
O silêncio da floresta é quebrado por outro som, dessa vez tenho certeza, algo se move na minha direção. Respiro fundo, prendendo a respiração na garganta esperando esse “algo” dar um sinal de vida. Então vejo uma sombra se movendo entre as árvores, e é algo grande.
Minhas pernas começam a tremer. O que originou o ruído na floresta surge entre as árvores.
— Merda — praguejo baixo.
É um Nevhorin, um animal conhecido pelo meu povo por sua crueldade e ferocidade. Os pelos brancos e juba majestosa, as patas dianteiras que possuem lâminas saindo dos dois ancinhos do felino. Chifres curvados para cima e uma cauda estranhamente afiada, similar a uma lança.
Fico escondido sem me mexer. O que eu tô pensando? Ele consegue sentir o cheiro da sua caça a quilômetros de distância… droga!
Ainda estou com a respiração presa, com uma sensação ruim de que qualquer ruído possa trazer a atenção da fera até mim. Continuo segurando a corda do arco, tentando manter minha posição em cima da árvore. Mas a minha tentativa de permanecer imóvel é em vão, meus dedos começam a doer e a tremer de cansaço. Um deles escapa da corda, fazendo que eu perca um pouco da força e um pequeno barulho de madeira rangendo ecoa pelo ar.
Meus olhos se arregalam em pânico quando o som ressoa, porque foi o suficiente para que as orelhas do Nevhorin fiquem em alerta. Ele olha diretamente para mim, seus olhos negros penetram minha alma.
— Droga.
Sinto o coração disparar e é como se tudo ficasse lento. Vejo o passo da fera lentamente se erguer e pisar novamente na neve. Eu me preparo para correr, só que minhas pernas não se movem.
Ei, ei, ei! É assim que vou morrer? Afasto para trás, esquecendo que estou em cima de uma árvore e caio de costas no chão. Que péssima idade para morrer.
Com um esforço sobre-humano, minhas pernas trêmulas me impulsionam a ficar de pé. Encaro a fera diante de mim, meu coração batendo descompassado no peito, uma mistura de adrenalina e pavor correndo em minhas veias. o suor frio escorre pela minha testa, como uma expressão tangível do meu medo latente.
— VEM! — grito, estendendo os braços de forma desafiadora, tentando, na verdade, mascarar o medo que me assola. — Acha que eu tenho medo de você? — Minha voz sai trêmula, e percebo que meu tom não soa tão confiante quanto eu gostaria, nem para mim mesmo. O suor frio escorre pela minha testa, e meu coração bate descompassado.
Então, a fera ruge. É um rugido ensurdecedor tão poderoso que reverbera pelo ar, fazendo as próprias árvores ao redor tremerem e balançarem como se estivessem em sintonia com a besta que está diante de mim. O vento súbito e impetuoso, sopra com mais força em minha direção, como se até mesmo a natureza estivesse reagindo ao ímpeto violento da fera. Essa demonstração de força e poder da criatura me deixa ainda mais vulnerável e ciente da ameaça que enfrento.
É, eu to fudido. Tento prender suas patas, as congelando, mas ele é mais rápido do que eu lançando magia, e é em vão. Corro para o lado e vejo em câmera lenta a fera passar por mim, arrebentando uma árvore.
— Que Inferno! — Viro-me para o Nevhorin se preparando para atacar novamente, piso com força na neve e o chão se molda em uma parede de gelo, com uma tentativa desesperada de conseguir detê-lo de seguir em frente, mas ele facilmente passa pela barricada de gelo a deixando em pedaços e fazendo alguns deles voarem em minha direção, deixando um corte raso no braço.
A fera se lança em mim com uma ferocidade indescritível, seus músculos poderosos impulsionando-a em um ataque voraz. Sem pensar, meus instintos de sobrevivência assumem o controle. Em um reflexo desesperado, coloco os braços em frente ao rosto, como uma frágil barreira de proteção e fecho os olhos com força, tentando me abrigar do impacto iminente.
Um estrondo ecoa no ambiente, seguido por um silêncio. Minha mente tenta processar o que acaba de acontecer. Com esforço, consigo abrir os olhos lentamente e vejo, à minha frente, uma barreira de cristais azuis pontiagudos que parecem ter sido convocados para impedir as garras do terrível Nevhorin de rasgarem minha carne.
De repente, a barreira se dissolve no ar, e os cristais voam em direção à criatura, cercando-a completamente. A pele branca do Nevhorin começa a ficar vermelha, enquanto o ar é preenchido com o som agonizante de seus rugidos. Tento entender o que acaba de acontecer quando vejo que o monstro cai no chão, com os olhos sem vida.
O som repentino de livro sendo fechado atrás de mim faz com que meu coração salte no peito, um arrepio percorre minha espinha. Ao mesmo tempo, como se fosse uma ilusão desvanecendo, os cristais que derrubaram e ceifaram o Nevhorin simplesmente desaparecem no ar. Um misto de alívio e perplexidade toma conta de mim enquanto tento compreender o que acabei de presenciar.
Com cautela, viro-me para encarar a fonte do ruído perturbador — é o que soou para mim. Meus olhos se encontram com o de um jovem rapaz, seu cabelo escuro e pele clara destacando-se contra o cenário sombrio ao redor. Seus olhos esverdeados me examinam minuciosamente, revelando uma profundidade enigmática. Está impecavelmente vestido, usando um casaco de couro grosso branco e um cachecol de veludo cinza que adiciona um toque de elegância. Suas calças de pano grosso denotam uma presença marcante.
O rapaz permanece imóvel, emanando uma aura serena e misteriosa. Seu olhar penetrante me intriga, deixando-me curioso sobre sua identidade e intenções.
— Cabelos brancos, pele escura e olhos azuis — fala, quebrando o silêncio. — Então… você é membro de um dos três grandes clãs do continente de Balfallne…
Quem diabos é esse cara? O simples fato dele ter aniquilado o Nevhorin me deixa com um arrepio de apreensão. Ele é perigoso, isso está claro. Meus olhos se fixam no livro fechado em sua mão, um grimório imponente repleto de símbolos meticulosamente desenhados à mão, com uma capa de couro envelhecido.
A curiosidade e o receio se entrelaçam em minha mente enquanto estudo o objeto. Sinto uma onda de intriga misturada com medo, pois sei que um poder extraordinário e perigoso reside nas páginas dele.
— Si-sim e… obrigado — agradeço. Meus sentidos estão em alerta, minha mente gira só de imaginar o que esse cara é capaz de fazer com isso. — Nunca te vi por aqui…
— Eu… — Ele olha para o horizonte, observando o ambiente ao redor, parece estar buscando a resposta certa. — Estou de visita.
— É membro de algum clã? — Porque eu não sei manter a boca fechada?
— Não. — Ele guarda o grimório em um bolso de couro amarrado à perna e encara o Nevhorin.
— Olha… — Cruzo os braços com determinação, um sorriso leve surge em meus lábios, enquanto mantenho meu olhar fixo nele. — Sei que foi você que o matou e tals, mas ele era minha caça desde o início, então…
Ele solta um suspiro e sorri.
— Para mim parecia que era você quem estava sendo caçado. — Nós dois nos encaramos por um momento, avaliando um ao outro. A tensão que sentia dentro de mim começa a diminuir gradualmente. — E quanto a isso aí, não se preocupe. Não era minha intenção roubar sua caça, mas… como planeja levar isso?
— Vejamos. — Olho para o céu escurecendo, e o encaro novamente. — Tá anoitecendo e você parece não ter um lugar para ficar. Que tal? Você me ajuda a levar esse bixo e convenço meu pai a deixar você passar a noite no meu clã. — Céus, eu realmente preciso aprender a fechar a boca.
— Isso não parece negociável.
— Na verdade é bem negociável, considerando que pode fazer comigo o que fez com isso. — Brinco meio sem graça, mostrando o Nevhorin atrás de mim.
— Claro. — Ele sorri sutilmente. — Como se chama?
— Eu… me chamo Zirel — digo com dificuldade, tentando colocar uma das patas do Nevhorin por cima do ombro. — E você?
— D. — Vejo ele pegar o grimório novamente. — E acho que devemos melhorar os termos, pelo visto o esforço será todo meu. — Ao abri-lo, os cristais surgem através dele, e vêm até mim, mas não me atacam.
Sinto o peso da pata do felino diminuir gradualmente e, ao olhar por cima do ombro, testemunho os cristais suspenderem-no no ar.
— Ta de sacanagem…
— Pode mostrar o caminho? Os termos discutiremos até chegarmos lá.
— Si-sim, e… — Ele direciona um olhar curioso. — Porque D.?
Ele apenas sorri e continua andando.
D.
Cinco anos atrás, meu clã foi dizimado pelos Gnostianos. Eles invadiram o monte da minha família e mataram cada membro. Ainda lembro dos gritos dos meus parentes, dos meus pais. Não conseguimos nos defender porque nunca treinamos habilidades de combate. O conhecimento era nossa maior fonte de poder, guardando histórias antigas esquecidas por todos, estudando cada raça e descobrindo seus pontos fortes e fracos, como vivem, como lutam. Aquela velha frase de meu pai: “Conhecimento é poder.” Isso se torna uma completa mentira quando um poder maior cai sobre nós.
Já faz tanto tempo que não venho aqui que acabei errando o caminho. Mas isso seria o destino me colocando para salvar a vida desse garoto tagarela? Eu não sei, só que tenho esse pressentimento estranho que preciso levá-lo comigo. E falando em garoto… como será que ele está? Já deve ter dez anos.
— Estamos chegando.
Meus olhos se fixam na luz brilhante que irradia do centro do acampamento, como um farol de calor no coração do frio. À medida que minha visão se ajusta, vejo grandes tendas de couro de animais erguida, suas formas imponentes formando um círculo unificado que parece tecer histórias das eras antigas.
As tendas, feitas com maestria, parecem ter capturado a essência da natureza selvagem que as cerca. O cheiro da terra úmida e da pele curtida paira no ar, enriquecendo a atmosfera com uma sensação de autenticidade ancestral. Além das tendas, há uma muralha rústica de madeira cortada, como um escudo protetor que abraça o clã. Os troncos robustos estão entrelaçados com cuidado, um tributo à destreza artesanal e à força natural da floresta.
No epicentro, um grupo de pessoas trabalha em harmonia. O metal das espadas canta em uma sinfonia de afiação, um hino à preparação constante para o desconhecido. Peles são esticadas e tratadas, testemunhas silenciosas do vínculo profundo entre o homem e a natureza que o sustenta. Alguns membros do clã permanecem sentados à beira do fogo, suas figuras envoltas em uma aura hipnotizante de chamas dançantes, onde histórias e canções antigas ganham vida.
— Jovem líder! Quem seria esse com você?
No seio desse acampamento gélido, uma figura notável emerge das sombras, uma senhora de pele morena escura que parece ser tão intrínseca à paisagem quanto as montanhas que a cercam. Seu semblante é uma tapeçaria de sabedoria, linhas de experiência entrelaçadas com alegria e desafio. Seus cabelos brancos trançados caem em cascata sobre os ombros. Seus olhos, profundos e cativantes, são um paradoxo em si mesmos. Um azul intenso, tão raro quanto a calma de um lago congelado. Ela veste roupas de couro, um manto longo, forrado com peles macias e quentes, envolve seus ombros como um abraço protetor. Suas mãos, habilidosas e marcadas pelo tempo, emergem das mangas como extensões de sua alma criativa. Braceletes de couro adornam seus pulsos.
— Aaah… Ele se chama D.
— É um prazer — digo.
— Vejo que vem trazendo uma grande caça com vocês. — Ela se aproxima do Nevhorin com uma certa curiosidade, acariciando os pelos ensanguentados. Enquanto isso fecho o grimório e o animal cai no chão.
— Onde está meu pai? — Zirel parece ansioso.
— O líder está a caminho do clã Menax — diz a senhora com um leve tom de preocupação.
— O que? O que ele foi fazer lá?
— Não só ele jovem líder, mas quase todos os homens de Glakaroth foram juntos.
— Clã Menax? — Fico curioso.
— É um clã que domina a magia de reforçamento corporal. São fortes no combate corpo a corpo. Já tem algum tempo que eles vem invadindo nosso lado, caçando nossos animais e deixando apenas migalhas para nós. O líder foi para propor um acordo entre eles.
— E se eles não chegarem a um?
— Bem… — A senhora desvia o olhar para as crianças e outros idosos. — Caso não cheguem a um acordo até a lua estar no topo do céu, quem passar por aquela entrada irá decidir o destino do clã Glakaroth, e torço para que seja o nosso líder.
— Zirel? — Ele dispara correndo em alguma direção fora do clã. É óbvio no que está pensando, mas ele não conseguiu fazer nada contra o Nevhorin, quem dirá contra esse povo. Ao invés de ajudar, pode só atrapalhar. Rio. Menax, né? Fazia tempo que não ouvia esse nome.