Escolhido Brasileira

Autor(a): Bárion Mey


Volume 1

Capítulo 8

O cheiro forte da lama impregna meu nariz, o vento frio bate na minha pele, minha garganta está seca e meus lábios tremem. A fome se apossa lentamente de cada pedaço do meu corpo. A chuva cai do lado de fora, deixando-me ainda mais perto do meu fatídico fim.

Estou encolhido no canto, debatendo-me de frio. Escuto o barulho de algo contra o metal das grades. Abro meus olhos e de pé, à minha frente, está Kalahar.

— E então? — pergunta, revelando os dentes tortos e amarelados. — Ainda vai continuar com esta teimosia? — Seu sorriso diabólico é marcante, trazendo uma característica única para o rosto.

— Jamais me juntarei a vocês. — Levanto-me e caminho até ficar de frente para ele. — Prefiro morrer!

— Sua teimosia é tão grande quanto tua coragem, criança maldita. — Cospe no chão e enfia o braço pelas grades, segurando a gola do trapo que visto e me prensando contra as barras de metal. — Se quer tanto assim morrer, arranjamos isso pra você, fácil, fácil.

Ele sai e vai para perto da arena. Vários bárbaros estão reunidos junto com os escravos capturados. Tenho que admitir, a ira que sinto neste momento é tão grotesca que fico com nojo de mim.

— Vocês seguem mesmo um líder que perde a calma com uma mera criança? — indago, caindo em risos. — Vocês são mesmo bárbaros?

O braço de Kalahar se eleva ao alto, com apenas um dedo apontado para o céu.

— Traga o velho para a arena!

Neste momento, meus olhos se alargam. Trombetas cantam fazendo um barulho ensurdecedor. Consigo ver um pingo de chuva cair no ombro de Kalahar, e ele ainda me observa com um sorriso grotesco.

Olho para o céu e respingos de água caem em meu rosto, posso dizer que essa será uma das grandes. As tendas balançam, árvores caem e relâmpagos são ouvidos causando estragos no meio da floresta.

No centro da arena, com o corpo coberto de lama e a cabeça raspada, está o garoto de doze anos. Sem camisa, apenas com dois cintos cruzados no peito para segurar sua mais nova arma.

Os bárbaros se juntam ao redor, gritando e pulando. A criança emite um sorriso medonho. Agarra as duas armas pelos cabos e as puxa, revelando seus machados duplos. O brilho reluz em suas lâminas de tão afiadas, parecem poder cortar até mesmo as rochas mais duras.

— Vamos deixar isso mais divertido! Traga-o, agora! — grita Kalahar.

O jeito que me encara, a intensidade do seu olhar penetra até minha alma. Como pode sentir tanta raiva de uma criança com apenas cinco anos…? Mais à frente, alguém sai de uma das tendas, sendo arrastado com um capuz sobre o rosto. Está amarrado com algemas grossas nos braços. Sangue escorre de suas mãos e pés, caindo no chão e criando uma trilha vermelha por onde passa.

Suas unhas foram arrancadas e, em seu corpo, marcas de chicotadas desferidas são visíveis. Sua pele marcada e cortada de tanto apanhar espanta os outros escravos, que presenciam tudo.

— HOMENS! — grita Kalahar. — Hoje é um dia muito especial para todos aqui do acampamento. — Ergue ambos os braços. — Hoje… é o dia em que este garoto se tornará um de nós!

Eles gritam, cantam, dançam e bebem em comemoração. Kalahar faz um gesto com a cabeça, e o homem encapuzado é jogado para dentro da arena como um porco.

— Mate-o da forma mais cruel que você pode fazer com uma pessoa! Assim, estará pronto para ser um de nós!

O garoto mexe o rosto em concordância, então retira o capuz do suposto homem. A única coisa que passa pela minha cabeça é simplesmente: por quê? Ele nunca fez nada para irritá-los, então… por quê? Senhor… Fly.

— Nem mesmo diante da morte de um dos que mais te ajudou demonstra sequer uma única emoção? Ora, ora, ora. Que interessante. Ei, coloque o garoto na arena.

— Tem certeza, chefe?

— Faça logo!

Um bárbaro me guia entre as tendas e percebo o olhar fervente no rosto de cada escravo. Medo? Eles deveriam estar. Mantenho o rosto firme, olhando para frente e encarando o garoto dos pés à cabeça, que emite um sorriso de canto. É sangue que querem? Morte? Irei entregar a eles… nem que eu tenha que matar todos que estão aqui.

O homem de capuz me observa, quem é ele afinal? Ninguém chegou a ver seu rosto, mas isso não importa mais. "Fuja", digo bem baixo para ele, o que faz com que cerre os punhos. Sou jogado na arena e me levanto, sentindo a brisa em meus cabelos. Meu olhar vibrante faz com que o garoto recue um passo.

Está com medo? Deveria estar mesmo. Estou direcionando a sede de sangue que guardei durante todos esses dias. Eu o encaro.

— Como deseja morrer…?

— Essa luta acabou… a partir do momento que saí daquela cela. Veja o céu, ele sente tanta pena do que irá acontecer com vocês que está até mesmo chorando.

Observo ao redor, os bárbaros caem no riso e os escravos ficam submersos em minhas palavras.

— Para que... — fala o garoto desferindo um chute em mim — esse sorrisinho cínico, filho da puta?!

Caio rolando na lama, amortecendo a queda. Fico deitado ali, vendo o céu enfurecido. O pé dele desce fortemente contra meu estômago, o que me faz vomitar um líquido amarelado.

— MASSACRE ESSE PIRRALHO MALDITO!

Quando me levanto, vejo um dos machados voando na direção da minha cabeça. Movo o rosto para o lado, desviando, e dou um sorriso.

nervoso, é?

— Eu vou te matar primeiro, seu arrombado desgraçado!

— Acredite, todos nós vamos morrer. — Eu rio.

Quando foi mesmo que aprendi essa? Ah, Freya me ensinou. Ela foi uma amiga, um amor correspondido e... a guerreira mais forte que já conheci. 

Estávamos no topo de uma montanha, as nuvens se contorciam fazendo algo similar a uma tempestade inversa entre o céu e a Terra. O barulho dos relâmpagos me davam calafrios, a pressão que era causada na atmosfera à nossa volta era… sufocante.

— Arial — falou ela. — Somos amigos desde que começou sua jornada para aniquilar o exército sombrio. Se um dia eu chegar a morrer primeiro, grave bem essa imagem que verá na sua mente, e nunca mais se esqueça.

Nós dois olhamos o céu, vendo as nuvens correrem contra o vento e o brilho dos raios.

— Esse será meu trunfo para matá-lo. — Freya esticou a mão em meu rosto. — Se…, por um acaso, eu morrer primeiro, use esse feitiço com toda reserva de mana que você tiver. Ele pode ser usado por qualquer um. O que lhe dá força e poder de ataque é a quantidade de mana que é usado no processo.

— Mas, Freya — eu a encarei —, minha reserva de mana não é tão boa quanto a de uma pessoa normal.

— Eu, mais do que ninguém, conheço seus limites, e é por isso que confio minha criação nas suas mãos. Sua reserva de mana pode ser insuficiente, porém você poderá implementar sua energia vital para completar o feitiço.

— Será um último golpe decisivo para nós… interessante.

Olho para o céu e vejo aquela mesma cena: as nuvens correndo contra o vento, o brilho azulado e impermeável dos relâmpagos escondidos no céu. Minha mana inteira será consumida de uma só vez. Se, por um acaso, eu sobreviver, ficarei incapacitado por algum tempo.

As pessoas, os bárbaros, todos morrerão. Acredito que seja melhor do que um inferno como esse. Não me arrependo, mas… queria ver seu sorriso gentil uma última vez…, mãe. Ao fechar meus olhos, escuto uma voz grossa e raivosa.

— Já chega!

Viro no mesmo instante seguindo aquele som. É a primeira vez que o escuto, o homem de capuz anda lentamente para perto da arena, seu manto marrom dança junto ao vento forte. Sem dificuldade, rasga o pano com uma das mãos, revelando seu rosto coberto de cicatrizes, a boca com um enorme buraco, sendo possível ver uma parte dos dentes mesmo com ela fechada.

Algo começa a mudar, o que está acontecendo? O rosto dele está… mudando de forma? Ainda continua alto e forte, mas seus cabelos estão ainda mais vermelhos e grandes, como a juba de um leão penteado para trás. As sobrancelhas dele são grossas; e os olhos, pretos e firmes.

— Eu falo em nome de sua Majestade, o rei Drake Tryger! — Ele olha em volta. — Por causarem desordem e ferir inocentes… — uma pequena pausa é dada —, vocês serão mortos por minha lâmina e conhecerão o destino da morte!

— CO-CORRAM! É ARLO, O HOMICIDA!

Arlo

Queria esperar até o reforço conseguir atravessar as montanhas, porém vai ser impossível nessa situação. Aquela criança… sinto algo diferente nela. Aquela aparência incomum... me lembra ele.

Levo minha mão à cintura e abaixo a postura, inclinando-me para a frente com o pé esquerdo para trás. Um pequeno círculo vermelho com desenhos de diagramas e runas aparece como a guarda de uma espada. Conforme puxo, um cabo se forma na minha mão e ela se comprime, tornando-se uma lâmina.

Meus olhos permanecem firmes e minhas sobrancelhas franzidas causam imponência nos bárbaros ao redor. Com apenas um passo, apareço do outro lado já guardando a espada. A guarda bate na bainha, fazendo o barulho do metal ecoar entre alguns ouvidos assustados, e o sangue jorra dos sete bárbaros à minha volta.

— Como… isso pode ser ao menos possível? — questiona um dos deles, tremendo de medo.

— Quem diria, até pessoas como vocês sentem medo. Que hilário.

Ele tenta reagir, me ataca com sua espada desgastada e desvio para o lado, retiro a minha e o corto ao meio. Direciono um pouco de mana para a lâmina, e ela é coberta por um brilho azul.

Doze bárbaros me cercam no mesmo instante. Pensam que podem me derrotar apenas com isso?

Use-me como fonte de destruição, e a destruição eu trarei. Irei pulverizá-los e transformá-los em pó. Mar de chamas escaldantes!

Movo minha mão na direção dele e, seguindo meu movimento suave, pequenos traços de chamas acompanham o simples gesto. Abro a mão gradualmente e chamas saem descontroladas, sedentas e famintas, querendo destruir e consumir tudo pela frente.

O fogo gruda nos corpos dos bárbaros, que saem rolando no chão, gritando em agonia enquanto tentam apagar as chamas. A lama e a chuva não os impede de queimar até pulverizar seus corpos.

Onde aquele desgraçado está? Aquele bárbaro maldito, disse que o mataria com minhas próprias mãos… Onde ele está?! Olho pelos arredores, vendo todos correrem desesperados buscando uma forma de salvar suas vidas podres. Mais à frente, vejo alguém familiar. Aí está você…

Recordo-me de quando estava em missão nas minas. Fiquei focado apenas em não chamar muita atenção, pois poderia trazer um resultado catastrófico. Só que um dos bárbaros fazia de tudo para deixar os escravos extremamente machucados, apenas para vê-los morrer agonizando de dor. Lembro como se fosse hoje.

— Por que não tira esse capuz do rosto, seu desgraçado? — questionou o carrasco.

— Pare com isso, o rosto desse infeliz está todo desfigurado. Não estou a fim de vomitar o que comi agorinha — falou seu colega.

— É mesmo? Sendo assim, — chutou a parte de trás do meu joelho e bateu com a clava em meu rosto —, volte a trabalhar, aberração.

Ajoelhado, encarei o rosto do bárbaro, nossos olhos se encontraram e ele conseguiu sentir uma ira ardente. Irritou-se e bateu novamente com a clava em minha face. Os escravos restantes apenas observaram aquela situação desastrosa. Ninguém podia fazer nada, somente olhar, temendo ser as próximas vítimas.

Levantei-me e voltei a escavar sem dizer uma única palavra, e uma mão se estendeu à minha frente.

— Estou bem, não precisa — falei, observando a expressão apreensiva de Fly. Seu corpo estava trêmulo e mal se aguentava de pé.

— Besteira. Do que adianta trabalhar com sede? Ande logo e beba, rapaz.

— Tem certeza que tem tempo de se preocupar com os outros, senhor Fly?

O velho sorriu, seus olhos estavam calmos. Parecia até mesmo não se importar com a própria vida.

— Já estou velho, meu amigo. Tudo que eles fizerem somente adiantará o inevitável.

— Haah — suspirei.

Sabia que eu poderia recusar cem vezes, e ele ainda me ofereceria a água. Perguntei-me profundamente o que um habitante de Rosorga estava fazendo para que fosse escravizado por esses bárbaros. Quando terminei de beber, o mesmo carrasco veio em seguida e chicoteou Fly em sua perna direita. Ele caiu no chão derramando toda a água que estava no balde amarrado em suas costas.

— Veja só o que fez, velho, derramou toda a água. Como eles irão trabalhar se estiverem com sede? — questionou sorrindo sarcasticamente para ele. — Parece que terá que ir buscar mais água, não é mesmo? — Riu.

Eu o encarei novamente sem que percebesse. Ele saiu e voltou a importunar os outros escravos. Fly, com seu corpo fraco, esforçou-se para se levantar. O ajudei, segurando-o pelos braços, e dei uma última encarada naquele rosto cheio de rugas do carrasco.

— Nã-Não… o encare desse jeito, rapaz — disse Fly.

— Estou apenas decorando seu rosto, não se preocupe.

Depois de se fazer de fodão, planeja fugir com o rabo entre as pernas? Haaah… Saiam da frente, bando de animais! Chamas consomem a sola dos meus pés e se espalham em uma explosão descontrolada ao redor, matando dezenas.

A cada passo que dou, os bárbaros tremem. A cada manejo de espada, morrem. Aproximo-me de uma tenda, agarro o pano e o arranco, revelando o bárbaro escondido, encolhido como um filhote assustado.

— Achei você. — Um sorriso surge no meu rosto enquanto me aproximo. — Como foi bater em mim? Estava se divertindo?

— Nã-Não me mate…, por favor. — Ele rasteja pela lama, chorando e soluçando.

— Como foi torturar o velho Fly? — Aponto o fio da lâmina na direção de sua garganta. — Estava se divertindo?

— Não… — Fecha os olhos, com uma das mãos à frente do rosto. — Não chegue mais perto…

— Não se preocupe, vou ser bem misericordioso. — Recuo a espada e a guardo na bainha. — Isso não vai doer, nem um pouco. Será bom, na verdade. — Levo a mão até a garganta dele e o suspendo no ar. — Bom para mim!

 Uma fumaça começa a exalar da face dele. O cheiro de pele queimada repugna meu nariz e ele começa a se debater desesperadamente, tentando se soltar. A chama surge gradualmente, queimando seu rosto, e vai se espalhando para o resto da sua cabeça.

Observo calmamente, aperto o rosto dele ainda mais forte e a chama explode de uma vez, queimando completamente a cabeça. O vejo se debater, arranhar meu braço, apertar com todas as forças que o resta, mas minha mão não cede nem por um único instante. Quando o solto, o corpo cai no chão com o rosto carbonizado. Viro-me para o restante dos bárbaros e os ameaço com um olhar vibrante. Hora de eliminar o resto.

Espera… A criança! À frente, dentro da arena, vejo Kalahar e o outro garoto na frente do pequeno, mas… Kalahar está de joelhos? Aquilo em volta dele são correntes elétricas? Observo o menino olhando vagamente para o céu. Está sorrindo… subo o olhar e… que infernos é aquilo? É similar a uma tempestade, só que girando contra o vento e formando uma ponta que tenta descer para o solo.

Os brilhos azuis me assustam, e pouco a pouco algo dourado começa a surgir, um gigantesco círculo diagramado e símbolos que jamais vi. Raios descontrolados e uma ventania ainda mais forte tomam todo o acampamento. Isso é perigoso, preciso agir agora!

— Garoto! — grito, assustando o resto dos bárbaros na minha frente.

Adiciono mana na sola dos pés e me impulsiono para frente, atravessando entre os selvagens em um instante. De frente para a criança, a jogo no ombro, pego Fly se rastejando na lama e salto para bem longe do acampamento. Começo a correr e escuto o barulho de passos pesados batendo contra o solo. Droga.

De lado, vejo a criança erguendo o braço direito nas minhas costas. Com um sorriso entre orelhas, o escuto dizer algo.

— Vão todos para o inferno!

O que esse louco está falando?

Raios escarlate!

Um raio desce do céu batendo contra o solo, sem fazer um barulho sequer. O brilho quase me cega e, em seguida, um pouco atrasado, escuto um barulho estrondoso. O raio se expande ainda mais, aproximando-se de nós três.

— Mestre! — Escuto a voz de uma garota familiar, e atrás dela uma dúzia de soldados e sete magos. Que merda!

O que essa pirralha faz aqui? Maldito Claus, como ousa deixar sua filha vir para esse buraco de merda? O medo da explosão nos alcançar me aflige, e a possibilidade desse exército morrer junto conosco me dá calafrios.

— Corram todos! — grito assustado.

Com uma arrancada para frente, chego para perto de onde eles estão.

— ERGAM UM MURO, AGORA!

À nossa frente, posicionam-se sete pessoas com túnicas brancas, segurando cajados com esferas nas pontas. Recitam um cântico e a terra se molda em paredes grossas e grandes, formando dez muros em fileira. Um mago bate com as duas palmas na terra e uma camada protetora se forma, nos fechando, sem nos deixar expostos até para o vento.

O chão treme e a parede de terra começa a rachar. Consigo perceber a expressão assustada da pirralha enquanto ela segura meu braço, apertando com força. Após alguns minutos, e do silêncio residir do lado de fora, as paredes que nos fecham se abrem, revelando uma cortina de terra levantada.

Deixo os dois aos cuidados de um soldado e ando para frente, alargando meus olhos a cada passo.

— Mestre… — A voz dela soa apreensiva. — O que aconteceu aqui?

— Eu… não sei…

À minha frente, onde deveria ser o acampamento bárbaro, resta apenas uma enorme cratera.

 


 

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