Escolhido Brasileira

Autor(a): Bárion Mey


Volume 1

Capítulo 6

Luke

Queria poder dizer que acordei e matei todos à minha volta, mas a realidade tende a ser decepcionante. Meus olhos se abrem lentamente, vendo vultos e silhuetas.

— Aargh! — A dor ainda continua.

— Finalmente acordou, garoto — diz um velho homem que me apoia em suas pernas. — Achei que não fosse resistir. — A voz dele é rouca. Olho para o rosto dele e vejo uma calma que faz tempo que não observo.

— Onde… estamos? — pergunto. Eu me levanto e apoio as costas contra as barras de metal.

— Não pense muito sobre isso — responde o velho. — Diga-me, jovem, qual o seu nome?

— Luke…, senhor.

O velho sorri, um sorriso gentil e harmonioso.

— Não seja modesto, Luke, me chame de Fly.

Ele tem uma aparência curvada pela idade, sua pele é enrugada e é tão magro a ponto de conseguir ver seus ossos através da pele, é literalmente a definição de carne e ossos. Observo em volta, vendo inúmeros homens escoltando algumas carroças para algum lugar. Não estamos mais na floresta. "Espero que ao menos você tenha conseguido escapar."

— “Não sou quem você pensa que sou” … — repito as palavras dela.

— Disse alguma coisa?

— Não, nada.

Olho vagamente para Fly, parece sempre estar sorrindo, mesmo em uma situação conturbada como essa. Meu estado é deplorável. Pensar na possibilidade de estar preso como um escravo me irrita.

— Maldito corpo mal evoluído — murmuro.

— Não fique assim, meu jovem, tudo ficará bem — diz Fly, tentando reconfortar.

Buscando uma forma de escapar, me perco em pensamentos observando as estrelas no céu. Penso somente no que Lúcia havia dito antes de seguir por caminhos diferentes. Minha mente entra e sai de um devaneio sem fim, imaginando infinitas possibilidades do que aquelas palavras poderiam ter significado.

Deuses, hein?! Nunca imaginei que ouviria falar deles como se ainda estivessem vivos.

— Senhor Fly, não o conheço. Pelo visto não somos do mesmo lugar.

— Claramente, jovem, sou de uma pequena vila ao sul de Rosorga — afirma.

Rosorga?! Um anão, mas essa região fica na beira do continente… para alguém de tamanha distância estar aqui também, só pode significar que não fomos os únicos a ser atacados por esses desgraçados.

— Nós… Nós vamos morrer… — escuto alguém do meu lado repetir essas palavras, completamente tomado pelo medo.

Comigo tem esse cara se lamentando; duas crianças — aparentam ter nove anos; uma mulher e um homem forte. Ele usa um manto com capuz que impede de ver seu rosto. Nenhuma parte do corpo está exposta, exceto suas mãos grandes e firmes. Fly me contou que o encontraram desmaiado no meio da floresta. Certamente, se confrontassem esse cara, perderiam alguns homens.

— Uurgh! — Ranjo os dentes com a dor das costelas quebradas. Qualquer movimento que faço causa um desconforto. Tenho a ideia de direcionar o resto da minha mana para minha ferida, na esperança de melhorar em algumas horas.

Além do horizonte, uma claridade se apossa entre as árvores do campus em que passamos, o dourado do sol entre a neblina faz parecer ser um grande espetáculo. Posso ver bandeiras vermelhas fixadas ao chão com o desenho de dois machados cruzados.

— Enfim, chegamos ao acampamento — diz um dos homens ao lado da carroça com um bocejo.

— Senhor Fly, quantas horas fiquei inconsciente? — sussurro.

— Minha criança — ele ri —, você apagou por dois dias inteiros — brinca com a situação.

— Dois… dias?

Penso ser apenas algumas horas, mas são dois dias inteiros. Fly conta que pensou que provavelmente eu nem acordaria, mas o bárbaro de machados duplos tinha certeza de que eu sobreviveria. Deve ser porque ele sabe que despertei e que posso usar mana para recuperar meu corpo. Mana? É aí que me lembro. Começo a direcionar a mana para minhas costelas tentando consertá-las, mas demoraria mais do que planejei.

Esqueço-me por um tempo de Lúcia, tenho que focar na minha própria sobrevivência. Há tendas esparramadas por todos os lados do acampamento, também existe um ringue debaixo da torre, cercado por cercas de madeira e arame farpado. O sangue em cada estaca de madeira fincada no solo deixa uma mensagem bem simples: estamos todos mortos.

Os prisioneiros, incluindo eu, vamos para o meio do acampamento. Meus olhos não demonstram emoções, nem mesmo estar assustado passa pela minha cabeça como os outros à minha volta. Eles tremem, choram e ficam encolhidos como uma concha.

Vários homens têm um enorme sorriso no rosto, seguram suas clavas, machados e espadas, observo o medo de todos aqui. As mulheres são olhadas e desejadas. Seus lábios grotescos se contorcem pela felicidade de carne nova, gritam e jogam suas armas para o alto.

— Aquela ali vai ser minha — diz um olhando uma moça dos pés à cabeça.

Seres nojentos. Lágrimas escorrem, suas mãos se encontram e então começa a orar por ajuda a qualquer deus que a ouve. Nessas horas, até se os próprios demônios levassem sua alma seria melhor do que o destino que terá neste lugar.

— Ore, ore, ore! Seus deuses ridículos não existem mais! Bando de covardes e inúteis, encarem seus destinos até a morte! — fala o homem de machados duplos.

Ele surge de repente. Todos ali fazem uma fileira dos dois lados, curvam-se rente à cintura e uma de suas mãos é levada ao peito, enquanto a outra está solta. Esse cara… Ouço gemidos vindos de uma tenda, um homem sai vestindo suas calças e outros dois entram no lugar.

— Meu nome é Kalahar! — Sua voz é aguda. — Líder desse acampamento e responsável por toda desgraça que ocorreu com vocês. — Ele se vangloria. — Saiba que esse lugar será conhecido por vocês como o próprio inferno! Então, bem-vindos ao acampamento de descanso dos bárbaros de Dasgud! — Seu rosto se contorce em um sorriso maléfico.

Todos olhamos em volta, vendo barracas rasgadas e queimadas, algumas carroças viradas e saqueadas, e alguns corpos espalhados pelo chão. 

— Saibam que aqui não é Dasgud, bando de desgraçados inúteis. Nem todos conseguirão chegar lá com vida. — Ele ri escandalosamente. — Em duas semanas partiremos, enquanto isso trabalharão nas minas de carvão. E caso pensem em fugir… — Encara a todos. — É melhor que consigam, pois quando chegarem lá, irão preferir a morte. 

Fugir seria uma missão suicida. Não posso contar com a ajuda de ninguém aqui, tirando aquele grandalhão, mas duvido que faça algo que arrisque a própria vida.

— As mulheres serão usadas para diversão dos meus homens… — Continua, fazendo os gritos dos outros bárbaros ecoar pelo acampamento. — Quanto a você, garoto — implementa Kalahar, apontando para mim —, siga-me.

As pessoas olham assustadas, pensando provavelmente o que este ser maléfico quer com uma criança. Os olhares o julgando são percebidos por ele, mas é só isso que podem fazer.

Dou um passo à frente sem hesitar, não tenho medo do que pode acontecer. Entramos em uma tenda, é bem simples por dentro, com apenas uma cama e uma escrava deitada nela, com os braços amarrados em um dos troncos que mantêm a tenda firme. Os olhos dela pedem por socorro, não posso dizer o que esse homem já fez para deixá-la no estado em que está: marcas de cortes no rosto, braços e pernas feitos provavelmente por um dos machados.

Está sem roupa, mostrando seus seios enquanto tampa a parte íntima dela com as pernas cruzadas.

— Ignore-a, ou ela te incomoda? Posso matá-la, se quiser.

Olho profundamente em seus olhos, ela quer aquilo. Deseja a morte a passar por mais daquele inferno. Cerro meus punhos. Ela quer ajuda, quer morrer, não tenho escolha.

— Acha mesmo que consegue? — falo de um jeito debochado. — Ela parece ser sua preferida. Um belo corpo, seios… — Passo a mão na sua barriga e subo entre os seios dela, tirando a mordaça da sua boca. — Ela parece ser a mais bonita de todas aqui. Quer mesmo matá-la?

— Pirralho, você é corajoso zombando assim de mim. — Ele ri e se levanta. — Acha que não a mataria por ser a mais gostosa de todas aqui? Eu sou um bárbaro. — Bate no peito com orgulho. — Não possuo sentimentos triviais como esse.

— Sério? Porque parece que…

O machado desce com tamanha velocidade que meus não conseguem acompanhá-lo. Ele passa raspando pelo meu rosto, e o som da lâmina cortando a pele é perfeitamente audível. O sangue jorra em minha direção, respingando em meu rosto e salpicando toda a tenda.

— Agora que o incômodo se foi, vou ser bem direto. — Limpa o sangue que voou no seu rosto. Ele se senta ao lado do corpo olhando para os seios do cadáver. — Sei muito bem que você despertou, garoto. Por Hades, não parece nem mesmo ter sete anos. Diga-me de forma sincera, quantos anos tem?

— Cinco.

Consigo perceber a surpresa de Kalahar apenas pelo seu olhar. Obviamente uma criança de cinco despertar nunca ocorreu em todo o continente de Kraykro, e uma está parada bem na sua frente, é bem óbvio o que quer.

Ele ri bastante. Logo a expressão muda e se levanta, colocando a mão em meu ombro.

— Achei uma mina de ouro. Ouça-me, garoto. Por bem ou por mal, você se juntará a nós!

— Prefiro morrer do que ser um de vocês. — O encaro de frente e olho no fundo de seus olhos sem esboçar um pingo de medo.

— Interessante… Por acaso você… não tem medo de morrer? — questiona, pegando seu machado.

— Morrer? Criança… — sem querer um sorriso me escapa —, você não sabe o que é olhar a morte nos olhos. Já estive de frente a ela diversas vezes, e em nenhuma ela me obrigou a fazer algo que eu não quisesse. Um mero selvagem vem me falar sobre temer a morte? Me deixe vivo e te mostrarei o verdadeiro significado desta palavra.

— Hum… sério? — Kalahar sorri e solta seu machado. — Sendo assim… — A mão dele vai na direção do meu rosto, mas fico quieto. Antes que o soco me atinja, ele para e sorri de orelha a orelha. — Você realmente não teme a morte. — Ainda o encaro fixamente.

Coloca o outro machado encostado ao lado da cama. Penso que, por um momento, realmente planeja me matar. A única coisa que passa pela minha cabeça é se irei reencarnar novamente.

— O que planeja… Uurgh...!

Repentinamente, Kalahar me chuta na boca do estômago me fazendo voar para fora da tenda. Caído no chão, coloco a mão em minhas costelas, que doem com a força do impacto, e limpo o sangue da boca. Esforço-me para ficar de pé novamente, mas ainda o encaro fixamente.

— Esse seu olhar está me irritando, criança maldita. — Ele caminha até mim, posso dizer que está claramente querendo me bater mais um pouco. Quando chega mais próximo, aperta minhas bochechas. — Vou te mostrar o inferno.

Sou jogado em uma cela debaixo da torre de vigia no meio do acampamento. As mulheres são divididas entre os bárbaros; os homens e velhos, levados para as minas de carvão, e as crianças serão usadas como pioneiras de duelos até a morte. O mais forte sobrevive, essa é a lei que os bárbaros seguem cegamente durante toda sua vida.

O mal cheiro das fezes de animais faz meu estômago embrulhar. A lama me suja todo. Mesmo assim, sinto ainda mais vontade de matar Kalahar. Sento-me na posição de lótus e então passo a primeira noite, reunindo mana e recuperando meu condicionamento físico. Minhas costelas ainda doem, porém não tanto quanto antes.

Passo os dois primeiros dias sem beber um único gole d’água ou comer qualquer coisa. Estou exausto e com fome. Mesmo assim, continuo reunindo mana quando não tem ninguém olhando, e inesperadamente, descubro que posso continuar reunindo mana enquanto me movimento. É difícil no início, mas vou pegando o jeito com as tentativas.

Constantemente escuto os gritos das mulheres. Os bárbaros que se revezam entre as tendas saem e entram sem dar tempo para, ao menos, elas pensarem na morte. No meio do acampamento empalaram um homem que morreu dentro das minas e, logo à frente, lobos comem o corpo da mulher da tenda de Kalahar. Essa é uma visão que nem mesmo em minha vida passada vivenciei, tamanha atrocidade é repugnante perante meus olhos.

A canção desses selvagens é… estranha, louvando e adorando o chefe tribal Yolvkof. Seria um deus? Acredito que não, nunca ouvi falar nesse nome antes. A única certeza que tenho é que… Kalahar irá morrer custe o que custar!

 


 

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