Volume 1
Capítulo 3
Lúcia
— Nu-nunca ouvi falar sobre algo assim… — falo, desviando o olhar por alguns segundos, inquieta. Por que uma criança de três anos iria querer saber disso? Onde ouviu isso?
Observando minha criança, divago em pensamentos e volto ao passado. Nunca pensei que teria um filho com a pessoa que mais amei na minha vida, não depois da maldição que ele nos colocou. Fomos completamente dizimados e, quando percebi, restava apenas uma pessoa ao meu lado. Contudo, meu bebê é filho dele, então tenho certeza de que crescerá firme, forte e saudável como qualquer outro.
Ainda me lembro da primeira vez que o segurei. Ele tentava escapar dos meus braços e parecia bem assustado. Queria apertá-lo e nunca mais o soltar, protegê-lo, mostrar o mundo para ele, embora o lugar em que nos escondemos não seja tão bonito.
Pensei que Luke olharia para as redondezas e ficaria espantado com as pessoas desamparadas, machucadas e famintas, mas me surpreendi. Será que é pela falta de discernimento por ser muito novo?
Faz um tempo que aproveitei para mostrar, ao longe, o castelo para ele. Como será que estão todos por lá? Há alguns anos, decidi me esconder para que não soubessem a verdade.
Aproveito para reparar bem no pequeno, sentado à mesa. Cada dia ele me surpreende mais. Com apenas sete meses, pronunciou mama. Fiquei em choque e quase o derrubei, acho que até vi a alma dele saindo do corpo na hora. Assim que fez um ano, começou a engatinhar pela casa inteira, não deu um segundo de paz. Com um ano e seis meses, já andava para todo lado. O mais impressionante é sua incrível capacidade de conseguir me entender. Parece até que estou conversando com um adulto.
Agora, aos três, é um pesadelo. Vai para perto da floresta, faz coisas perigosas, como ficar socando a parede. Sério, quem na idade dele bate em paredes do nada? Minha sorte é que ele é muito interessado nos livros velhos da estante, embora não os consiga ler. Acho que deve ter puxado você, Rahter.
Uns dias atrás, apareceu todo sujo, com um coelho morto nas mãos. Dei uma bela bronca, porém não consigo ficar nervosa, ele é muito fofo. Agora me vem… com uma pergunta estranha. Forçar o despertar? Sim, é possível, mas é considerado uma prática proibida pelo império há séculos.
— Mãe…, pu favô…, me diga a vedade…
Aaaargh! Por que seus olhos estão brilhando tanto? Por que ele está parecendo uma criaturinha angelical…? Resista, Lúcia, você é uma mulher forte, é capaz de resis…
— Mamãe…, pu favô…
Aaaaaaaaaaaaaaah!
— Tá bem, tá bem! — Pego um copo com água para tentar me acalmar. — Essa é uma pergunta muito complicada, meu filho. Todos que tentaram fazer isso no passado não acabaram da melhor forma possível.
— Então, é impossível?
— Não só impossível, como também estritamente proibido. Agora, o mais importante, onde ouviu falar sobre isso?
— Heh… — Ele parece estar tentando buscar uma resposta rápida. — Ouvi alguns homens conversando sobre o assunto. Eles falavam alto, conseguia ouvi-los daqui de dentro…
Vai mentir na cara de pau assim? Fácil desse jeito? Ora bolas, garotinho esperto.
— Olha. — Levo a mão sobre o rosto dele, o acariciando. — Prometa-me que não tentará fazer algo perigoso…
Ele me olha nos olhos, parece estar um pouco aflito.
— Pro-prometo…
Com certeza está mentindo, nem se esforçou para tentar esconder. Vou ter que ficar de olho nele de agora em diante.
Luke
Que vergonha de hoje mais cedo, me recuso, plenamente me recuso a falar desse jeito novamente. Nunca mais... A madrugada chega. Levanto-me da cama e me esgueiro até a sala. Sei que prometi, mas me comprometi a ficar mais forte do que os três escudos de Yuhai. Se isso me matar, pelo menos terei tentado. Vamos falar a verdade, esperar até os nove anos para poder despertar meu precioso núcleo de mana será tortuoso e cansativo, sem contar que demorará muito mais para alcançar meus objetivos.
A esgrima de Ekóz, o santo da espada, não será o suficiente para eu ficar forte, preciso de algo mais. Meu núcleo de mana anterior me deixou para trás. Agora, com um novo corpo, necessito ter outro núcleo de mana e habilidades, então preciso fazer isso.
— Me desculpe, Lúcia — peço enquanto a olho deitada na cama. Está virada para o lado oposto, não me verá.
O silêncio da madrugada é tranquilizador. Nenhum barulho desnecessário, nem de animais. Tudo pensado para este precioso momento. A sala é iluminada pelo brilho da lua cheia, que entra por um buraco no telhado.
Sento-me na posição de lótus, fecho os olhos e começo a meditar.
Na minha cabeça, se a mana funcionar da mesma maneira que em Zendrut, terei uma grande vantagem. Poderei recuperar minha força quando completar, talvez, não sei, dez anos? Em Zendrut, você não desperta automaticamente com o tempo como aqui. É preciso meditar durante alguns anos para, ao menos, sentir uma fagulha da mana ao seu redor e então reuni-la para dentro de você.
A mana está literalmente presente em todo o ambiente: nos animais, nas florestas, nas cidades, e até mesmo no ar. Só que olhos humanos normais não conseguem enxergar as partículas circulando ao redor. Sinceramente, conheci apenas uma pessoa capaz de fazer isso, e era Ekóz, meu mestre.
É bem simples: devo apenas reunir as micropartículas de mana ao meu redor para o centro do meu abdômen. Assim, acumularei o suficiente para formar uma esfera, forçando o despertar.
Quero entender o motivo de, aqui, despertar apenas uma a cada cinquenta crianças. Em Zendrut, qualquer uma era capaz se recebesse ensinamentos adequados.
Entro em uma meditação profunda, a ponto de não conseguir sentir absolutamente nada à minha volta, nem mesmo o vento frio que bate em meu corpo. Aprofundo-me ainda mais no meu subconsciente. Após alguns segundos, meus ouvidos ficam mais aguçados e o frio volta, mas o vento parece ter saído diretamente de uma geleira.
Meus olhos ainda se mantêm fechados, só que, no meio daquela escuridão, posso ver inúmeras bolinhas flutuantes azuis se formando. O que tenho que fazer é bem simples: tentar trazer todas e enfiá-las à força no meu corpo. Olhando assim, parece algo muito complicado, mas não é a primeira vez que estou fazendo isso.
Pouco a pouco se juntam dentro de mim, é bem perceptível a sensação delas adentrando meu corpo por inteiro e se reunindo na região do abdômen. Quando dou por mim, estou caído no chão frio da sala, completamente suado e ofegante, sem forças até mesmo para abrir demais os olhos.
Se apenas cinco minutos reunindo mana me deixa neste estado, o que acontecerá quando ocorrer o despertar? Fico preocupado. Em Zendrut, isso nunca havia acontecido comigo, então pode significar apenas uma coisa: a mana é mais forte aqui do que lá, ou seja, ela é mais pura e concentrada.
Luto para ficar de pé, não quero nem ver minha cara com tanto esforço que estou fazendo. Ao me colocar de pé, tudo gira. Cambaleio um pouco para o lado e me apoio na parede da sala. Minhas mãos tremem e meu corpo esquenta. Eu literalmente me arrasto de volta para meu quarto. É complicado até para subir na cama, mas consigo e, depois disso, apago por completo.
(...)
Lembro-me vagamente de ver Lúcia sair cedo pela manhã, mas, mesmo não sabendo aonde ela vai, sempre volta com algumas coisas para o café da manhã, almoço ou jantar. O vestido que parece ter saído de uma cortina velha de uma família ainda mais pobre fica cheio de lama, o que me faz pensar que vai até a floresta para caçar.
— Está na hora de acordar, meu bebê — diz, com uma voz aconchegante.
Ainda me encontro sonolento, tudo que quero é apagar mais uma vez e dormir até o entardecer. Viro-me para ver o rosto de minha mãe, corrigindo, a bela face dela, encarando-me com um sorriso radiante e olhar vibrante.
— Não é muito cedo para acordar uma criança que necessita de descanso prolongado? — resmungo enquanto me cubro com o pano que uso de cobertor.
— Ora, ora, ora — cantarola. Posso sentir um pequeno momento de raiva em sua bela voz doce. — Dormir a noite inteira não é o suficiente, preguiçoso? — Lúcia me puxa pelas pernas, me segura de ponta-cabeça e me balança para um lado e para o outro. Tenho que me esforçar bastante para não vomitar o que ainda nem comi.
Como ela tem força para brincar comigo desse jeito? Fico desnorteado no chão e tudo gira à minha volta, estou bêbado sem ingerir uma única cachaça, essa é a sensação.
Na minha cabeça existem inúmeras perguntas que gostaria que fossem respondidas, como, por exemplo, quem é nossa família, ou se, ao menos, existe uma. Meu pai, quem é, e se está morto ou não. A resposta é sempre a mesma. Ou acha um jeito de se esquivar das perguntas ou simplesmente diz que, quando chegar a hora, saberei a verdade. Me canso e apenas deixo de lado momentaneamente.
Às vezes, saio de casa para me afortunar na beirada da floresta. Levo comigo um saco de pano que fiz rasgando um pedaço da cortina da vizinha. Não me julgue, ela me irrita. Também fiz uma pequena adaga, pois achei uma pedra bem afiada no meio do mato alto.
Do lado de casa, há um pequeno espaço coberto de arbustos e espinhos, que dá diretamente para uma parte da floresta. Toda vez que passo por lá, rasgo um pedaço do meu trapo, perdi as contas de quantas vezes ela costurou os rasgados.
"Vou contornar dessa vez", penso.
Do lado de fora é possível encontrar alguns coelhos bobeando e até mesmo esquilos voando de árvore em árvore. Pegá-los? Nem ao menos tento, é impossível na minha idade.
Minha boca saliva só de pensar em um cozido de coelho feito a brasa por Lúcia, a mão dela na cozinha é simplesmente perfeita. Só que… hoje, nenhum, absolutamente nenhum coelho está na beira da enorme floresta. O máximo que consigo encontrar é um rastro deixado por um ou três coelhos, mas nunca vi mais do que um por ali, algo está errado, tenho certeza.
Caminho em direção ao mar de árvores. Assim que olho para cima, vejo o céu coberto pela vegetação. As árvores são tão grandes que nem mesmo uma brecha do céu azul aparece entre as folhagens. Lembro-me das palavras de minha mãe: “Não vá muito fundo na floresta”. Ignoro-as sem rodeios, sou um péssimo filho e ruim em manter promessas pelo jeito.
Andando pelos trieiros de terra feitos por algum animal que passou ali, encontro algumas plantas que até podem ser comestíveis. Olho em volta e apenas pinheiros enormes e animais voadores como pássaros e esquilos pulando de galho em galho fazem o menor barulho possível. Alguns passos à frente, consigo encontrar rastros de animais em uma poça de lama.
Sigo na direção apontada e bingo! Uma toca. Está debaixo de uma árvore oca caída. Não parece ter sido derrubada por algum animal ou ser humano, e sim arrancada do solo pelas raízes. Inclino-me para mais perto e olho bem no fundo. Voilà, dois pontos brilhantes vermelhos no escuro.
— Ótimo! — grito, saltando de alegria. — Tirei a sorte grande.
Em uma tentativa de arrancar o suposto animal da toca à força, inclino-me ainda mais e enfio meu pequeno braço esquerdo no fundo. Paro na hora de fazer o que seria a maior burrice da minha vida e escuto um barulho estranho, um pequeno chiado lento e progressivo. Tiro meu braço rapidamente e pulo para trás. Junto comigo sai uma cobra dando um bote direto no meu pescoço, mas dou um passo para o lado e consigo fugir de suas presas.
Se eu tivesse demorado um milésimo de segundo para reagir, estaria tendo uma conversa com Delgron neste exato momento, seja lá para onde tenha ido depois de morrer. Observo as cores da cobra, bege com listras roxas, pequenos chifres em seu nariz, é uma cobra Isnis. Li um pouco sobre elas em um livro da estante de Lúcia, que falava sobre animais letais e não letais. Por sorte, essa é não-letal.
Mantenho-me firme e pego a adaga escondida entre minha bermuda e camisa. Fico em defesa com a arma apontada para a cobra e me aproximo lentamente. É óbvio que planeja me atacar novamente, enrolando-se e me ameaçando com suas presas afiadas.
Quando chego perto o suficiente, finjo atacar com meus dois braços abertos, fazendo-a agir instantaneamente e dar um bote a toda. Nesse momento, aproveito a oportunidade e me jogo para o lado, deixando com que ela passe por mim. Seguro sua cabeça com a mão esquerda e, com a direita, desço a adaga diretamente em sua cabeça, separando-a do corpo.
Tenho que agradecer por não ser um animal letal, pois a bendita ainda conseguiu me morder. Pego-a e a coloco no saco de pano, e sei que já está na hora de voltar. Sigo pelo mesmo caminho que mostra meus rastros e aproveito o belo momento para pegar alguns cogumelos para mistura.
Enquanto volto, percebo algo estranho no ar. Os pássaros estão assustados e voam pela floresta agitados. Obviamente hesito, pode ser alguma coisa muito maior que uma mera cobra sem veneno. Fico aflito o caminho todo de volta para casa, até que consigo avistar o brilho do sol pela entrada onde passei mais cedo. É aí que ouço um barulho de galho sendo quebrado, algo normal no meio da floresta, claro, mas me causa uma sensação estranha.
Por instinto, acabo me escondendo atrás de uma árvore grossa e olho em volta, tentando identificar o que pode ser a causa da minha agonia, mas não vejo nada. Meu coração, aos poucos, volta a bater normal, até eu tentar dar um passo à frente.
Meus olhos se alargam e um pingo de suor escorre. Um barulho, um grunhido, como se fosse um rosnado amedrontador, é feito atrás de mim. Viro-me lentamente para ver o que pode ser e fico implorando para que seja minha mãe completamente enraivecida pela minha demora. Quem dera fosse.
Diante de mim, erguendo-se a mais de dois metros de altura, encontra-se uma criatura cujos olhos azuis parecem arder em chamas. Um lobo? Não, essa criatura é maior e mais majestosa. Seus pelos são negros, adornados com listras douradas, e em vez de patas, ela tem pés de águia. Sua cauda é longa, e ostenta cinco penas douradas que se espalham por seu rosto. Em torno dos seus belos olhos flamejantes, há uma marca dourada que realça ainda mais a singularidade dessa criatura misteriosa.
Por um momento, o medo foge dos meus pensamentos e só consigo pensar em como essa coisa é bonita. Como possui mais partes de lobo do que de águia, irei chamá-lo assim. O lobo me encara profundamente e se aproxima. A boca monstruosa se abre, revelando suas presas afiadas. Fico hipnotizado, nunca vi algo assim, nem mesmo em Zendrut.
Não estou pensando direito, afinal, sem nem ao menos perceber, começo a levar minha mão para tentar fazer um leve carinho no lobo, que poderia facilmente me devorar apenas com uma abocanhada. Estranhamente, ele contribui com meu gesto e se aproxima, trazendo seu rosto para mais perto. Seus pelos são macios e me lembram os cabelos de minha mãe. Haah… com certeza ela me mataria se soubesse dessa comparação.
“Finalmente te encontrei… Há muitos anos espero por esse momento.”
Uma voz flui pela minha cabeça e não tenho dúvidas: o lobo fala comigo por telepatia.
— Quem… é você? — pergunto, embora não soe nem um pouco confiante.
Os pelos dele se arrepiam e as garras de águia se contorcem para dentro de seus dedos.
“Muitos irão ansiar por sua cabeça, pequeno”. O lobo se senta na minha frente. “O caminho que você trilhará será cheio de dor, perdas e lágrimas…, mas você terá que ser forte e aguentar.”
Aproxima o rosto próximo ao meu peito, fazendo uma luz emergir do seu focinho, é uma sensação aconchegante de sentir.
— Espera… o que você fez?
Inúmeras perguntas surgem do nada em minha cabeça.
“Eu o reconheço digno de lhe passar esse presente.”
— O que foi… isso? — pergunto enquanto toco meu peito.
“Você entenderá no futuro. Desejo-lhe sorte…, Arial Blake…”
— Espe… Como você sabe quem eu sou…?
E assim aquele ser misterioso desaparece da minha frente como uma miragem se desfazendo, deixando minhas palavras incompletas se perderem no vazio. O silêncio da floresta retorna. Fico surpreso por ele dizer meu verdadeiro nome e já saber quem sou desde o princípio.
Atordoado, decido sair da floresta e voltar para casa, Lúcia deve estar preocupada. Ao chegar, consigo ver o alívio dela aparecer aos poucos. Fecho a porta e me aproximo.
— Che-cheguei… — O tom parece um pouco forçado por conta do acontecimento.
Ela nota na hora que houve algo, seu radar de mãe não falha, mas prefere ficar quieta e só me observa de longe. Entrego os ingredientes para ela e vou até o lado de fora da casa lavar meu rosto no balde.
Quando me lavo, o aperto no peito vem junto e, por algum motivo, começo a chorar. Acredito que aquilo me lembrou da minha antiga vida, quando vivia com minha família em um pequeno vilarejo afastado de Yuhai. O calor aconchegante pareceu um pouco com o abraço da minha pequena irmã. Como pude esquecer tudo isso? Ouço o grito de uma garota nas profundezas do meu subconsciente.
Ela está caída na neve e chorando. Estende o braço para mim implorando por ajuda, e só lembro da sensação de não conseguir mover meu corpo. Uma gota d’água cai no balde, fazendo um barulho que viaja na minha mente, tirando-me de meu pequeno transe. As lágrimas não param de transbordar.
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