Escolhido Brasileira

Autor(a): Bárion Mey


Volume 1

Capítulo 2

Algumas semanas se passam, e sigo sem respostas de onde posso estar. Quando acordo da escuridão, tudo o que vejo é um quarto recheado de mofo, teias de aranha nas paredes e um telhado desgastado de palha. Poderia ser um sonho, até uma ilusão, mas parece tão real que essa possibilidade logo some da cabeça. É um fato que demoro a engolir: eu renasci. Estou sendo generoso, reencarnei no corpo de um bebê. Tem noção do quão complicado isso é? Ser incapaz de conseguir controlar seus próprios membros, necessidades e outras coisas? O inferno é brincadeira perto disso.

O mais difícil é que me lembro de absolutamente tudo da minha antiga vida, até mesmo do momento da minha morte. Testo várias vezes cair do berço improvisado de galhos de árvores para ter certeza de que um tombo me faz acordar deste pesadelo, mas não dá certo.

Essas semanas que se passam, saio diversas vezes com minha "mãe", sei nem se posso a chamar assim. Sinceramente, já percebi que sou um completo azarado. Nem para me colocarem em uma família rica, cheia de dinheiro, onde eu poderia viver sem problema algum. Mas não, vamos colocar esse infeliz, burro, que lutou durante toda a vida, para reencarnar no corpo de um bebê no meio de uma favela. Aaaaargh!

Nasci em uma periferia. Queria poder dizer que ao menos nossa condição é boa o suficiente, porém, pelo meu berço, podemos dizer que isso não vem ao caso. A estrada é feita de terra e levanta redemoinhos de poeira quando o vento bate forte. Algumas das casas são isentas de telhados, outras de portas, e algumas nem mesmo parede possuem, apenas panos para cobrir do sol e, talvez, tampar um pouco o frio da noite.

Minha nova mãe me carrega amarrado nas costas em um pano improvisado para não precisar me segurar nos braços. Esperta. Agora vamos falar de algo que chama minha atenção mais do que tudo desde que cheguei a esse lugar: Lúcia. Ela é simplesmente uma das mulheres mais belas que já vi desde minha vida passada, e olha que já vi milhares. Nenhuma delas chega aos seus pés.

Seus cabelos compridos e pretos como a noite me trazem uma certa tranquilidade. Os olhos dela brilham na luz do sol com um vermelho carmesim que me lembra a cor do sangue nos campos de batalha.

Se tem algo que a estraga é o fato de ser uma grande tagarela. Fico semanas inteiras ouvindo inúmeras histórias, conhecendo plantas cujo nome nem sei se serei capaz de pronunciar.

— Olhe, minha criança — diz e aponta para um castelo distante no topo de um morro. — Ali é onde o rei do império reside. Lindo, não é?

Será que sabe que um bebê normal nunca entenderia uma única palavra do que ela fala? Doida. Lindos são seus olhos, como quero poder dizer essas palavras. Algo engraçado quando nasci, vale ressaltar, foi sua grande indecisão ao tentar escolher meu nome. Sério, ela tentou de tudo, rolava de um lado para o outro na cama, sentava e deitava ansiosa, falava vários nomes em sequência.

Oadel, Ruthlin, Aldhe, Ronry, Lacan e vários outros que nem sei pronunciar. Orei não sei para qual deus, porém queria que mandasse uma iluminação para ela não escolher nenhum nome estranho.

Foi aí que veio na cabeça dela — depois de muito sacrifício — o nome Luke. Agora é como me chamo: Luke. Gostei bastante na verdade, combina com a criança fofa que tenho certeza de que sou. Sério, se uma mãe dessas não produzisse um filho lindo, algo de errado teria.

A genética do meu pai talvez? Não sei dizer, não o vi. Provável que esteja morto. Olhando para a situação dessas pessoas, é possível.

A noite chega mais rápido do que eu gostaria e, com ela, um sono muito, mas muito forte veio junto. Essa é outra desvantagem desse… deixa quieto por enquanto.

— Minha criança, quer ouvir uma história?

Tento demonstrar um enorme sorriso para ela perceber que sim, quero. Para falar a verdade, qualquer coisa que ela falasse desse lugar, eu gostaria de saber.

— Tudo começou há bastante tempo, antes de acontecer a grande guerra mítica… — Ela me cobre com um pedaço de pano e passa os dedos entre meus minis cabelos pretos com um sorriso perfeito.

Por um momento, penso em algo. Guerra mítica, parece ser uma grande guerra, eu morri em uma. Será possível? Reflito. Só que a realidade é outra. Acredito que esse lugar possa ser Zendrut, o mundo de onde venho. Ouço a história quase inteira, e nada é igual.

Hades ficou com inveja dos seus irmãos após ser expulso por eles da câmara dos deuses. Obrigado a viver no submundo, planejou durante anos sua vingança. Quando finalmente decidiu agir, foi atrás dos deuses separadamente.

Cada um deles possuía egos, artefatos bastantes poderosos. O objetivo dele era matar cada deus individualmente e usar todos os egos contra o restante da câmara.

Todos foram mortos aparentemente na grande batalha dos céus. Lúcia diz que foi possível ver cometas caírem do céu, pedaços de escombros dos lares dos deuses. Zeus conseguiu fugir no confronto final, e Hades, nada satisfeito, emergiu para o mundo humano para tirar o que ele mais amava: os humanos. 

Depois dessa parte, lembro-me somente de acordar aos beijos de Lúcia, com o som dos pássaros cantando do lado de fora e o sol batendo no meu rosto e iluminando os cabelos negros de minha mãe.

Novamente saímos pela manhã, mas há mais pessoas que nos anteriores pelas ruas. Um homem de moicano curto passa por nós com uma espada do tamanho do corpo pendurada nas costas. Isso é normal?

Em Zendrut, se um cidadão andasse armado, ficava preso durante dez dias para pensar nos seus atos. Aqui é completamente normal? O que os governantes deste mundo pensam? E se ele matar alguma pessoa inocente por aí? Terei que conversar com esse povo quando ficar mais velho. Claro que esses são pensamentos mais do que normais para mim.

O vento está forte o bastante para eu ver uma criança erguer um pedaço de terra e formar uma pequena parede na minha frente. Lúcia para em frente a ela, observando a criança encantada pela façanha.

Então aqui também existe magia?! Isso é perfeito. Se um dia falei que sou azarado, não me lembro. O motivo é simples: fui um mago bem forte na vida passada, podia ser comparado aos três grandes escudos do rei, embora fossem horripilantemente mais poderosos que eu.

Isso porque meu núcleo não me deixou evoluir depois de um tempo. Fiquei preso no mesmo lugar até minha morte, mas foi contra Delgron, então acho que posso dizer que fui bem forte.

Nesse momento, juro outra vez que ficarei mais poderoso do que antes. Farei coisas que jamais poderia como Arial Blake e superarei os três escudos de Zendrut. Eles salvaram Yuhai da destruição total? Protegerei este mundo inteiro. Conseguiram matar alguém que me fez sentir o desespero depois do meu juramento quando criança? Serei o pior tormento dos meus inimigos quando me levantar da cama.

(...)

Três anos se passam e, cara, é um completo inferno. Fico à beira da loucura, chego até a pensar por um momento em pular do meu berço de ponta a cabeça para meu trágico fim. Ter a mentalidade evoluída e estar preso em um corpo limitado é a pior coisa que existe.

O tempo passa lentamente. Lembro-me de que o melhor dia foi quando estava correndo de Lúcia pela manhã. Eu mal tinha acabado de acordar e ela me balançava e jogava para o alto, me apertava e abraçava como se não houvesse um amanhã, quase me fazendo desmaiar.

Acontece que, enquanto corria dos abraços da minha própria mãe, acabei esbarrando na estante velha de livros dela. Eu tinha dois anos e nem mesmo havia pensado na possibilidade de tentar pegar um daqueles livros. Quando um caiu na minha frente, meus olhos brilharam igual a dois diamantes na luz do sol.

Não só pude entender a língua como também consegui ler a escrita. Ela é repleta de símbolos e letras estranhas, mas, por incrível que pareça, é mais fácil ler aquelas palavras desconhecidas do que aprender a andar de novo.

Após Lúcia averiguar que eu não tinha machucados, ela foi para a cozinha preparar alguma coisa. Aproveitei o momento para ler e saber do que se tratava o livro com capa de couro sem nome. 

Na primeira página havia um mapa com várias informações e, acima dele, estava escrito “Continente de Kraykro”. Existiam vilas espalhadas por todos os cantos, uma enorme geleira atrás de Dream, que ficava a um dia de viagem, um reino chamado Rosorga, localizado no que parecia ser algumas montanhas e uma enorme muralha que bloqueava a entrada, outro chamado Oredhel, que ficava rodeado por árvores e uma neblina?! Dasgud aparentemente ficava em um local no meio de algo deserto.

“Poucas pessoas sabem disso, mas antigamente Dream era apenas uma pequena cidade chamada Kratas, governada por um homem que mantinha as famílias oprimidas e à mercê do medo. Em sua grande casa, no centro da cidade, tinha um trono de ouro que mandou construir para que as pessoas se lembrassem de que ele estava no poder. Lacsara Tryger e Ardroy Brastho decidiram causar uma pequena rebelião, matando o homem e tomando o poder.”

“Após isso, Dream foi fundada pelos dois, e assim nasceu um grande império sendo construído aos poucos. Boatos antigos dizem que a família Tryger não foi escolhida pelo povo para se tornar regentes do trono de ouro, mas sim que Ardroy Brastho o escolheu como rei.”

“Rosorga, mais conhecido como reino dos anões, existe desde tempos antigos, ninguém sabe ao certo quando foi fundado, apenas o alto escalão tem acesso a essa informação. Foi construída uma muralha em volta de todo o território. Caso alguém entre sem permissão, é sentenciado à morte sem julgamento.”

Credo, essa segurança toda para que exatamente? Eles vivem em uma grande ditadura por acaso? Eu que não queria estar em um lugar desses.

“Um dos locais mais incríveis que qualquer outra pessoa poderia ter visto com os próprios olhos seria Oredhel. Embora seja difícil a entrada de humanos devido aos constantes desentendimentos entre as raças, quem foi sabe que Oredhel é um colírio para os olhos. As casas, os animais que vivem dentro da floresta, a paisagem em si, tudo é simplesmente magnífico. Fui beneficiado com essa grande honra de poder ver o famoso lar dos elfos, e, caso esteja pensando em como é, te digo para pensar muito mais além, é belo.”

Interessante, mas por que parece que a floresta está sendo rodeada por uma neblina? Seria algum tipo de segurança contra invasores? É bem provável que seja isso. Agora...

“Dasgud, seja o que for, mantenha distância deste lugar. Dasgud não é um reino, mas sim um local cheio de ódio, morte e dor. Homens selvagens o habitam, bárbaros. Homens sem escrúpulos, sem respeito ou misericórdia. Caso encontre um, reze para que esteja sozinho, embora isso quase sempre não aconteça. Nenhum aventureiro, mago ou mercenário tem coragem de ir neste lugar. Isso pode ser chamado de covardia, porém são apenas inteligentes.”

Queria ler o resto, mas todas as outras páginas estavam arrancadas ou rabiscadas, apenas um nome era visível: “Balfallne”, nada mais além disso.

Em três longos anos, aprendi várias coisas desse novo mundo. Devido ao meu estado deplorável, o máximo que podia fazer era estudar livros e mais livros.

Nesse meio-tempo, comecei a levantar cedo todos os dias, seguindo a antiga rotina de treino que meu mestre Ekóz havia me passado. Ele foi um espadachim do nível dos três escudos de Yuhai. Perguntei diversas vezes a ele do porquê de não se juntar a Yuhai e a resposta foi sempre a mesma: “O rei Layry é a própria ruína de Yuhai, não me juntarei a alguém assim…”

Ele foi um bom homem, certamente seus ensinamentos me ajudariam em outro mundo. Atrás de casa tinha um espaço, um quintal. Usava como sala de treino fazendo pequenas seções de flexões e abdominais que, no início, não passavam de quatro flexões e cinco abdominais, porém, com o tempo, fui melhorando. Uma criança com apenas três anos fazer tudo isso é algo fora do comum.

Após alguns meses, conseguia fazer seções maiores, e fui melhorando muito mais ao longo do percurso. Lúcia nunca tentou me impedir, muito pelo contrário, os olhos dela brilhavam tanto quanto os meus quando descobri que podia ler.

Já com três anos, de vez em quando saio escondido para caçar algum animal pequeno para comermos. No dia anterior a esse, cacei um coelho. Ao chegar em casa com ele, Lúcia ficou bastante feliz, mas também me repreendeu.

— Então…, está me dizendo que um coelho simplesmente saiu da floresta e veio até você? — questionou.

— Po-pode dizer que sim… — Claro que eu menti. Como explicaria para ela que eu, uma criança de três anos, fui até a floresta para caçar alguma coisa? Impossível.

— Escute, Luke. A floresta é um local perigoso para uma criança da sua idade. — Ela pôs a mão no meu cabelo e o bagunçou carinhosamente. — Portanto, da próxima vez que fizer algo perigoso, não minta para mim. — A ênfase em sua voz me fez engolir seco.

Acredito que no fundo ela sabe que não sou uma criança normal. Sério, faço coisas que, na minha idade, alguém consideraria… esquisito. Depois dessa conversa "saudável" do dia anterior, prometi não entrar muito a fundo na floresta.

Enquanto comíamos, tive a insensatez de querer fazer uma pergunta que estava gravada na minha mente desde que descobri que nesse mundo existe magia. Observei-a por alguns segundos, comendo lentamente, desviando o olhar entre o prato e o rosto dela.

— Mãe, posso te fazer uma pergunta? — Um frio na barriga veio no mesmo instante. O fato era: não sabia o porquê eu tinha medo dessa mulher. Seria um instinto de filho ter medo de sua própria mãe desde o nascimento? Nunca saberei a resposta para isso.

— Uhum… — Ela nem se esforçou para tentar engolir a coxa do coelho primeiro.

— Com quantos anos ocorre o despertar?

— Bem…, normalmente uma criança desperta aos nove anos.

— É possível despertar antes?

— Em casos raros, sim. Algumas consideradas "gênias" despertam aos sete.

O quão raro é uma criança despertar aos sete? Uma em cem? Mil? Isso é complicado.

— Mais uma coisa… É possível... forçar o despertar?

 


 

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