Volume 1
Capítulo 23
Luke
Onde estou? Uma escuridão se apossa da minha visão. Sinto estar deitado em algo similar a uma cama aconchegante e flutuante. O que é isso? Meus olhos abrem lentamente e vejo o céu limpo com a inexistência de nuvens. Meu corpo está leve. Ergo meu braço à frente do rosto tentando impedir a luminosidade do sol de ofuscar minha visão. Tudo que me lembro é… de uma voz me chamando…
Eu me sento, investigando os arredores. Nada. Absolutamente nada além de um chão. Não. Um líquido sólido que lembra o oceano. Um mar sem ondas, sem maré alta ou ondulações. Inclinando o rosto para baixo, meu reflexo é refletido na água. Este rosto é… Arial…
Os mesmos cabelos médios e olhos negros como a noite. As marcas que entregam a idade de trinta e sete anos que tinha quando morri em Zendrut. Meu antigo agasalho preto que vai até a sola dos meus pés e uma camisa branca que ficava manchada de sangue toda vez que minha lâmina entrava em contato com um corpo.
Que lugar é esse? Levanto-me com uma estranha sensação. A cada passo que dou, a água se expande e volta a ficar calma. Estou morto novamente? Tudo que me lembro é de estar apoiado no ombro daqueles dois e… espera… aquele homem chamou a Lúcia de querida? Será possível que… aquele cara é meu pai? Durante todos esses anos, nunca pensei na possibilidade de ele estar vivo, mas acho que tenho coisas mais importantes para tratar agora.
— Aqui é diferente do vazio — murmuro.
Minha visão se concentra mais à frente. A silhueta de uma pessoa se forma. Aparenta estar com um chapéu de palha grande que oculta o rosto. Encaro fixamente o sujeito até aparecer completamente. Está em um barco de madeira pequeno, com um remo em mãos. Um homem velho de barba e bigode fino.
— Arial Blake — diz o velho —, peço que me acompanhe…
— Quem é você?
— Sou Caronte. — O senhor dá meia-volta com o barco. — O barqueiro das almas.
Fico relutante, porém algo parece me empurrar para dentro do barco contra minha própria vontade. Caronte começa a remar, sua tranquilidade é revigorante.
Longos minutos se passam e, apesar desse tempo, parece nem termos saído do lugar que partimos. Não vejo nada como uma terra ou algo do gênero. Assim, segundos se transformam em minutos, que se transformam em horas, e parecem virar dias.
Fome? Sede? Enjoo? Não senti nenhuma dessas coisas. O barqueiro continua a remar com tranquilidade, não para nem por um minuto durante toda viagem.
— Esse rancor que sente, eu retribuirei adequadamente… — O velho começa a cantar uma canção. — Esse ódio que sente, fazei-o sentir cem vezes mais por mim! Entrego as almas perdidas para o fim, e o fim lhes dá o que merecem… uma morte inquietante e silenciosa, aqui não conhecerá uma morte honrosa!
Sinto um calafrio me corroer. Uma névoa começa a surgir ao redor do barco, ofuscando nossa visão. O barqueiro para de remar por um instante quando uma sombra gigantesca cobre o veículo.
— Ainda não está na hora, Caronte!
A voz vem de trás. Caronte vira o rosto que antes estava coberto pelo grande chapéu. Seus olhos são completamente negros e há uma enorme cicatriz de queimadura os cobrindo.
— Creio que não tenha permissão para vir a este lugar…
— E quando um subalterno decide onde ou não devo estar?! — Sua aura se expande, um azul fluorescente belo, mas que coloca medo. — Arial Blake, ainda não chegou sua hora de partir desse mundo.
— Vo… cê…
Lembro-me na mesma hora daquele dia, na floresta. A criatura misteriosa está, agora, novamente diante de mim.
— Existem muitas perguntas em sua cabeça. Responderei todas, mas, primeiro, por que não saímos daqui?!
O lobo ergue seu focinho para o alto, criando um ponto brilhante nele. Quando minha visão volta ao normal, estou num lugar completamente diferente de antes. Ao meu redor, há construções de mármores erguidas como uma torre na frente, estátuas que via nos livros e que reconheceria em qualquer canto: as estátuas dos deuses destruídas, uma a uma.
Logo atrás, um enorme coliseu com diferentes andares, cada um possuindo uma estátua diferente. Contudo, como as outras, estão destruídas. Consigo perceber que sua extensão não se limita somente àquilo, é muito maior do que posso enxergar.
Olho admirado para essa bela vista, embora tudo esteja em ruínas. Assemelha-se a uma ilha flutuante no céu, em que as margens do rio com águas tão claras escorrem para o penhasco desaparecendo em seguida.
— Estive o observando, Arial.
O lobo me olha fixamente, notando o encanto e o brilho que emano ao ver tudo isso.
— Posso saber o porquê?
— Você fez algo impossível em outra vida. Derrotou Delgron, o maior inimigo que aquele mundo já enfrentou. O homem abominável que até mesmo os três escudos temiam enfrentar sozinhos.
— Eu não o derrotei…
— Você acha? Conseguir se manter firme em uma guerra desfavorável, com todos os seus aliados perdendo a esperança, enfrentando o exército sombrio e ainda por cima aguentar tempo o bastante para que os três escudos chegassem para conseguir enfrentar Delgron não é uma vitória?
Fico sem palavras. Realmente não tenho muito o que dizer. Nunca pensei por esse lado.
— Pelo visto, sabe o que fiz em vida quando era Arial Blake.
— Era? — O lobo sorri. — Tolo, você nunca deixou de ser Arial Blake.
— Talvez não, mas mesmo assim… — Inclino o rosto para baixo.
— Luke Drakhar e Arial Blake são a mesma pessoa, e isso não mudará.
— Você tem algum envolvimento com meu renascimento em Alduin?
— Não fui somente eu.
— O que quer dizer? — Sento-me no gramado, escutando com atenção.
— Nem todos os deuses foram mortos por Hades naquele dia. Zeus ainda continua vivo, embora escondido nas sombras. É bem provável que Poseidon tenha escapado, e Ares permanece vivo.
— Como pode ter tanta certeza disso?
— Porque…
Algo estranho começa a acontecer com o lobo. Seus pelos somem gradualmente e o tamanho gigantesco diminui conforme os segundos passam. As garras da sua pata de águia diminuem e seu corpo toma uma forma humanoide. Olho assustado, é algo similar ao que tinha em Zendrut.
— Metamorfose… — murmuro.
— "Por que", você pergunta…
O lobo que vi pouco antes, agora se transforma em uma bela mulher de vestido branco de seda. Os cabelos lisos e compridos, brancos como a neve, e os olhos dourados como ouro emitem um brilho estranhamente belo.
— Porque eu sou Ártemis…
Ártemis? A deusa da caça que ouvi nos contos de Lúcia? Essa mesma Ártemis? Os cabelos brancos e olhos dourados me intrigam. Jamais vi tal cor assim em qualquer ser que fosse, os amarelos daquele dragão não chegam nem perto. Esses olhos transmitem uma sensação calorosa e destemida, mas, em simultâneo, um ar de superioridade.
Ártemis anda até mim, prostrando-se em minha frente e me encarando profundamente. Após alguns segundos de repleto silêncio, ouvindo somente o barulho do riacho cair no céu e desaparecer, Ártemis se pronuncia.
— Eu não sou quem você pensava que eu fosse…
— Nã-não… — Desvio o olhar do seu rosto. — Não está muito perto? — Minhas bochechas coram.
— Você é engraçado. — Ártemis solta um breve sorriso delicado.
— Por que me trouxe aqui?
— Aqui? Sabe onde está?
— Acredito que seja a câmara dos deuses… — Volto a olhar para ela. — Estou errado?
— Aqui já foi… a câmara dos deuses. — Ela começa a andar para o grande coliseu. — Siga-me, quero lhe mostrar algo.
Enquanto andamos pelo caminho de mármore devastado, fico observando os arredores. As árvores estão completamente desprovidas de cor, secas e mortas. O cantil de flores retratado nos contos como a coisa mais linda elaborada por Afrodite não existe mais. Nós caminhamos em silêncio. Demonstro uma certa palidez, mas é simplesmente pelo que vejo. A visão destruída dos campos mais à frente, caveiras de animais que nunca vi em Alduin ou Zendrut sobre o chão. Armaduras com apenas ossos dentro delas e manchas de sangue pelas paredes.
Meu rosto se mantém inexpressivo. Isso é algo normal em uma batalha. Querendo ou não, sofri em guerras e vi coisas horrendas durante toda minha vida. Isso é triste. Ártemis para, observando uma escultura adiante.
Segura um raio nas mãos. A postura elevada e corpo construído robustamente o faz parecer o ser mais forte. De todas as estátuas do lugar, apenas essa está intacta. E acho que sei o motivo disso…
— Zeus… — falo.
— Sabe me dizer o porquê desta ser a única de pé?
— Ele ainda não morreu, por isso essa estátua permanece intacta — respondo, ficando do seu lado, encarando a figura.
— Hades não conseguiu matá-lo. Embora alguns deuses tenham escapado de sua fúria, ele pensa ter matado todos. — Ela se inclina no chão, pegando um pedaço de mármore. — Essa estátua permanece assim, pois ele jurou quebrá-la somente quando Zeus for morto.
— E onde está Zeus nesse momento?
— Eu… não sei. — Ártemis volta a caminhar. — Tudo que sei é que vaga por Alduin durante séculos, tentando se reerguer novamente para o pódio que um dia já pertenceu.
É claro. Os humanos deixaram de acreditar nos deuses, e isso com certeza os enfraqueceu. A fé das pessoas não existe mais. Para aqueles que acreditam em algum deus, com certeza não são mais nos doze da câmara.
— O oráculo… — Cruzo os braços. — O que é?
— O oráculo é uma relíquia sagrada dos deuses. — Ártemis segue em direção a uma parede. — Ele é a fonte de todo nosso conhecimento. — Colocando a mão na parede repleta de escrituras e um desenho de um olho, fecha os olhos. — “A verdade será revelada para os cegos, e o destino será dado para aqueles que acreditam em sua força.”
— Isso é algum recitamento?
— Não. É apenas a verdade do oráculo. Os humanos chamam todas as relíquias de egos, armas criadas por Hefesto para os deuses. — Ela se escora na parede, deslizando até se sentar no chão. — As armas mais poderosas de Alduin, caídas nas mãos de um único deus.
— Onde elas estão?
— Esparramadas. Algumas perdidas, outras com pessoas de má-fé, arrogantes, famintos por poder, mas existe uma pessoa… — Uma pausa momentânea em sua fala é dada. — Ela porta a relíquia sagrada de Athena. Um menino de doze anos que almeja a paz mais que toda a Alduin junta.
— O que exatamente quer que eu faça?
— Encontre-se com ele e o ajude, será certamente retribuído, pois o destino dos dois são iguais.
— E onde está a sua…
— Em você! — Levantando-se, leva a mão ao meu peito. — Eu lhe entreguei meu ego naquele dia. O ego da deusa da caça. Aquela que possui a condolência de toda besta de Alduin, capaz de controlar qualquer animal místico e besta demoníaca desse mundo. — Seus olhos emitem um brilho mais denso. — Meu ego é uma benção criada para ser interligada à minha alma.
— Vo-você está me dizendo que…
— Nenhum animal se aproximar de você durante seu treinamento de despertar… Você poder se conectar com o dragão… tudo isso foi o meu ego que agora se encontra dentro de você.
Um ego… considerado por muitos a posse mais poderosa que um humano pode ter, agora, no corpo de uma criança de cinco anos. Rio. Se eu contar algo assim, me internam.
Ela volta a olhar as escrituras na parede. Observa fixamente o desenho de um olho envolto em um colar.
— Hades possui monopólio do oráculo? — pergunto. Meu tom de voz soa preocupado.
— Isso é impossível. — Direciona os olhos ao teto. — Até porque o oráculo possui uma consciência própria. Ele vaga pelo espaço e fendas aprimorando ainda mais seu conhecimento. Foi assim que descobri a existência do seu mundo.
— Fala de Zendrut? — Ártemis concorda com um balanço do rosto. — Aquela criatura… do vazio…
— Aquele ser é apenas uma divindade esquecida.
— Divindade esquecida?
— A história contada pelos humanos e que até mesmo alguns deuses possuem conhecimento é que Chronos, o primeiro deus a caminhar pelo vazio e por toda existência de Alduin, teve apenas três filhos, mas a verdade é que existe um quarto. O verdadeiro primogênito do trono da câmara dos deuses.
— Está me dizendo que aquele ser…
— Sim… Primeiro filho de Chronos, verdadeiro primogênito do trono dos deuses. Seu nome é Sýndesi. Aquele capaz de navegar entre dimensões e mundos diferentes.
Aquelas palavras aprofundam por meus ouvidos igual uma lâmina afiada perfura um corpo. Meu rosto empalidece e a garganta fica seca, fico incapaz de conseguir pronunciar uma única palavra.
Lembro de quando o encontrei, aquele ser medonho, aterrorizante, de aparência estranha. Sua forma peculiar que botaria medo até mesmo em outros deuses. Ártemis sorri, embora pareça forçado. Ela continua a caminhar em direção reta. A sigo em silêncio. Um cheiro desconfortante vem, similar a cadáveres em decomposição.
— Que cheiro é esse? — Tampo o nariz, investigando os arredores em busca do mau odor.
— A mana divina se deteriorou.
— O que quer dizer com mana divina?
— O núcleo de mana que mantinha a câmara dos deuses de pé foi destruído. — Ártemis se senta em um banco elaborado de laje. — Esse lugar irá deixar de existir em pouco tempo. Os deuses remanescentes não terão mais um lugar para chamar de lar.
— Basta apenas criar outro.
— Se fosse tão simples…
— Não estou falando disso. — Encaro os arredores destruídos. — Nosso lar não é apenas um. É construído por nós mesmos, independentemente de onde estejamos.
— Como pode existir um lugar desses…
— Alduin — interrompo Ártemis. — É um bom lugar para se estar, não acha? — Eu lhe esboço um sorriso fechado, estendendo a mão para que ela a pegue. — O mundo pode se voltar contra você, mas ainda estarei lá. Trilhe essa jornada comigo e seja minha guia por essas terras desconhecidas. Uma conselheira e… uma amiga.
O olho dela esbanja um brilho único. Acredito que não exista outra pessoa no mundo que aceite os deuses novamente, porém não sou deste mundo. Isso não me importa. Foda-se o que os outros irão pensar quando descobrirem a identidade dela.
— Me leve de volta — peço. — Irei encarar um bando de demônios. — Rio.
Ela sorri novamente. Olhando a bela e triste vista da câmara dos deuses, aperta minha mão bem forte, prensando-a em seus seios sobre o vestido de seda.
— Obrigada…
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