Volume 1
Capítulo 12
Caminho para o segundo andar e vejo diversas portas, várias levam para um quarto vazio, já a última desse corredor dá diretamente para o banheiro. Ele é enorme, com água quente para que eu possa me limpar, mas…
— Por que… elas estão aqui? — pergunto, encarando as mulheres vestidas de empregadas com buchas e escovas.
— Viemos te ajudar a se limpar, jovem mestre.
— Jo-Jovem mestre?! — Elas se aproximam arrancando meus trapos. — Espere… — Eu coro. — POR QUE ESTÃO TIRANDO MINHA ROUPA ASSIM DO NADA? — Tento fugir pela porta, porém sou impedido pelo mordomo, que bloqueia a saída com seu corpo.
— A senhorita Agnes disse para lhe dar o melhor tratamento possível — ao mesmo tempo que o velho fala, as empregadas retiram minhas roupas, mostrando minha pele desnutrida e com alguns hematomas.
— Eu consigo banhar sozinho — resmungo para as moças, que retribuem com sorrisos enormes.
Depois do banho, o mordomo me traz roupas limpas: uma bermuda preta com alças, uma blusa de botões branca e um sapato marrom. Vestido, me guiam novamente para o primeiro andar. Caminho entre os cômodos, até chegar em uma sala de jantar, talvez seja o maior aposento da mansão.
No meio, há uma mesa que vai de um lado até o outro da sala de jantar, feita de vidro transparente e desenhos rúnicos estranhos, rodeada de cadeiras de madeira branca e almofadas azuis. Sentada na ponta está Agnes, com um vestido roxo de seda, cabelos amarrados e sapatilhas brancas.
— Vamos, sinta-se à vontade. Deve estar com fome…, não? — fala.
Minha boca saliva, a fome que estou sentindo impacta ainda mais nas minhas razões. Pulo à mesa como uma fera faminta e começo a comer tudo que tem pela frente. Fatias de bolo, pudim de ameixa, camarões, cozidos de carne, torta de maçã, vitela, pão de nozes e outras coisas. Observo-a pegar algumas fatias de pão com delicadeza, movimentos suaves e sutis, algo inesperado para mim. Sua etiqueta fica visível no mesmo instante que a vejo levantar o copo de suco, mantendo a postura ereta e bebendo tranquilamente.
— Olhando assim, você parece uma dama de verdade — falo com a boca cheia de comida.
— COMO ASSIM?! EU SOU UMA DAMA DE VERDADE! — Exaltada, joga uma perna de caranguejo em mim, forçando-me a desviar o rosto.
O mordomo deixa escapar um breve riso. Ela o olha ferozmente, fazendo-o endireitar sua postura imediatamente.
— Essa roupa até ficou bonita em você.
— Obrigada…
— Nem parece aquela brutamontes que vi alguns minutos atrás.
— …Eu vou te matar, pirralho. Escreva o que digo. — Seus olhos semicerram e suas sobrancelhas franzem.
Longos minutos se passam de paz e harmonia entre nós dois. O mordomo limpa a bagunça que Agnes fez ao ficar tentando me acertar com restos de comida.
— Parecem irmãos brigando, céus. — Escuto seu resmungo de longe.
Eu rio. Realmente, essa é uma situação bem familiar… Sinceramente, que hora ruim para relembrar o passado sombrio, hein? Arial… Como será que estão todos em Zendrut? Todos estão bem, né? E pensar que deixei Freya naquele mundo sozinha…
A noite chega, consigo escutar o barulho das árvores que se movem em direção ao vento, que clima tranquilo. O mordomo separa um quarto apenas para mim. Nunca pensei ser capaz de me deitar em uma cama tão grande quanto essa. Quando vi a estrutura desse cômodo, repleto de abajures, quadros e taças banhadas a ouro, me surpreendi, os detalhes e qualidade da cortina são lindos.
A porta se abre.
— Meu quarto fica logo ao lado. Se precisar de algo, é só me chamar — diz Agnes, com metade do rosto coberto pela porta de madeira branca.
— Claro.
Depois de alguns minutos após Agnes sair, alguém bate na porta novamente. Hoje não durmo, disso tenho certeza.
— Entre.
Uma garota vestindo uma roupa de empregada comum aparece. Cabelo curto e escuro, olhos profundos da cor do mar e uma pele pálida.
— Muito prazer em conhecê-lo, jovem mestre.
De forma alguma consigo me acostumar com essas pessoas me chamando assim.
— E você é...?
— Meu nome é Jya, fui designada pela senhorita Agnes para ser sua empregada particular.
Ela tinha mesmo falado algo sobre isso mais cedo.
— Poderia não me chamar de jovem mestre? É embaraçoso...
— Claro...
Essa resposta não foi muito convincente. Ela se despede com um aceno e fecha a porta. Deito-me na cama e estranho uma coisa. Tenho certeza de que Jya estava de salto, como pôde chegar e sair sem fazer um único barulho? De relance, olho pela janela e consigo ver uma luminosidade. Será que eu... Luke, a curiosidade matou o gato...
Levanto-me devagar e olho pela janela. Jya caminha tranquilamente para fora segurando uma lamparina. Como ela chegou lá tão rápido se acabou de sair daqui? E aonde vai essa hora da noite? Foda-se, vou ver com meus próprios olhos.
Oculto minha presença como fazia antigamente em Zendrut e a sigo para fora da mansão. Está a pé, caminhando na noite tranquilamente. Isso é estranho. Tenho certeza de que não há nenhuma loja ou mercado aberto a essa hora.
Ela é cuidadosa, a todo momento olha de canto para trás para ver se há alguém a seguindo. Acredito que se tivesse percebido minha presença teria feito alguma coisa. Vou apenas continuar. Andamos por meia hora até chegar em Mighur. Atravessamos um pouco a cidade deserta, as luzes das casas estão apagadas, apenas os postes iluminam a rua.
Jya entra em um bar, o único estabelecimento aberto. Consigo ouvir bêbados gritarem, o som de uma viola e alguém cantando. Espero uns minutos e logo em seguida um homem barrigudo de terno marrom sai, acompanhado por outros três. Mercenários... talvez. Estou escondido nas sombras de um beco, atrás de uma caixa de madeira velha. Ninguém me nota.
Em seguida, Jya surge e guia o caminho para um beco mais à frente. Será possível que essa garota faz esse tipo de trabalho? Nem pensar, ela parece ter em torno de dezessete anos. Preciso ver com meus próprios olhos. Se for o que estou pensando, irei impedi-la na hora.
Tomo cuidado para que não ouçam meus pequenos passos e me aproximo do beco, olhando de relance.
— Escuta aqui, sua puta — diz o homem barrigudo —, repete o que você falou lá dentro se tiver coragem! Vadia imunda!
Os três mercenários riem, mas ela permanece indiferente.
— Donald Loazi — fala Jya calmamente —, você ultrapassou certos limites: abusos de escravos, contrabando de drogas, sequestros de elfos e conspirações contra o império e usurpação ao poder com outros nomes na lista. Fui ordenada em nome da família Giguar para que o mate e limpe a escória que você é.
— Família Giguar? Nunca ouvi falar desse nome. — O homem ri. — Acabem com ela, mas não estraguem o rosto, ela pode valer muito dinheiro no mercado negro de escravos.
Que situação de merda foi essa que me envolvi? Ajudo? Ou vejo o que acontece? Antes de pensar em mais alguma coisa, um dos mercenários se aproxima dela e em segundos um tom vermelho respinga em seu rosto. Ele cai no chão com a garganta cortada se debatendo. Jya segura uma pequena faca, que usa para golpear o outro mais ao lado acertando seu peito. Ela é rápida, e não há desperdício nos movimentos que faz. Donald se assusta e anda para trás. O último tenta golpeá-la com um soco, ela desvia o rosto e se abaixa, subindo a faca direto para sua mandíbula. Um golpe limpo e rápido.
Quero muito ver o que vai acontecer agora, porém acredito que seja hora de ir. Não sei o que ela pode fazer caso me pegue também. Começo a correr pelo caminho que vim, ouvindo os últimos gritos de Donald Loazi, seja lá quem for esse cara.
(...)
Estou cansado ao extremo, lentamente sinto meus olhos pesarem, minha consciência fica apagando aos poucos e sinto uma leveza no corpo inteiro. A cama é tão macia que parece que estou deitado sobre as nuvens.
Sinto uma brisa bater no rosto, abro meus olhos e me vejo em um campo de tulipas. Na minha frente, há uma garota pequena, usando um vestido branco de pano e um chapéu de palha com um laço vermelho.
— Irmãozão… — Ouço sua voz, que encanta meus ouvidos. — Está na hora de acordar…
Abro meus olhos de repente, ainda estou no quarto do mesmo jeito que me deitei. Acredito que se passaram algumas horas. Ainda estou com sono. Fecho meus olhos novamente, mas algo me assusta. Escuto um barulho vindo do andar de baixo, me sento e olho pela janela, está tarde, não pode ser nenhuma das empregadas, devem estar todas dormindo nesse momento.
Abro a porta devagar, tentando não fazer som. Piso de leve, vou até o quarto de Agnes e penso em bater, porém hesito. Novamente escuto o barulho vindo do piso inferior. Decido descer pelas escadas com cautela, escorregando as mãos pelo corrimão de madeira. Parece estar vindo do fundo da casa. Passo pela entrada embaixo da escada, que leva até a sala de jantar, e chego lá.
Estranho, o barulho parece estar vindo daqui, só que não sei para onde ir agora. Deve ser por causa do escuro. Uso um pouco de mana para melhorar minha visão, e as partes sombrias de alguns lugares ficam mais visíveis. Consigo ver outra entrada, ao lado da porta, que leva para o jardim de Agnes. Decido ir na direção dela e paro em um corredor extenso.
É bizarro. Pregados nas paredes existem mais quadros, dessa vez de pessoas diversas. Uma mulher loira e de olhos violeta, sua feição me lembra a de Agnes, devem ser seus antecedentes. Mais à frente, um quadro me chama atenção. É um homem de aparência bonita, cabelos curtos e loiros e, por algum motivo, é o único que possui uma coroa na cabeça. Ele segura a mesma espada que apareceu no quadro anterior.
O som volta, está mais alto do que antes. É como um grunhido, vindo junto com um ranger de dentes e ruídos estranhos, como se fossem escamas se debatendo.
Chegando no fim do corredor, ele fica mais largo, e dos lados há armaduras prateadas, de pé, segurando espadas, machados e escudos. À frente, uma enorme porta com símbolos estranhos e o desenho da cabeça de um dragão.
Aproximo-me e a toco. Sinto uma energia pesada saindo. Seja lá o que for, é perigoso.
Acho que vou voltar pro meu quarto, depois pergunto pra Agnes o que tem atrás dessa porta. Viro para ir embora, mas o barulho da porta abrindo entoa em meus ouvidos. O brilho da lua ilumina o vão. Não seja curioso, Luke, não seja! Ah, que se foda.
Eu me aproximo devagar. Primeiro coloco um pé do outro lado, e vou entrando aos poucos. Há um enorme salão, com uma janela de vidro quase do tamanho da parede, a luz da lua ilumina através dela. E, no final, existe um vão coberto pelas sombras, nas quais não consigo enxergar nada, mesmo aprimorando minha visão.
Ando para mais perto, até chegar ao centro, e ouço o grunhido mais uma vez. Minha espinha arrepia e o frio na barriga começa a subir lentamente. Dou um passo para trás, recuando um pouco.
O que será que tem ali? A curiosidade é enorme, porém… o medo de me ferrar é ainda maior. Melhor voltar para trás. Quando me viro de costas, ouço algo bater contra o chão. É pesado, o barulho ecoa pelo salão. Novamente os passos são dados, acompanhados de um ranger de dentes e grunhidos.
Meu corpo se mexe por instinto, tentando ver o que está atrás de mim. Encaro a escuridão por alguns segundos, meu coração bate mais rápido e sinto uma gota de suor descer pela bochecha. O que tem aí? Esse pensamento se repete em minha cabeça diversas vezes enquanto encaro aquelas sombras. Até que dois olhos de serpentes abrem lentamente em simultâneo, olhos dourados e brilhantes, com a pupila mais afiada que a melhor espada que já vi.
— Que merda…
Uma fumaça dourada sai das sombras. Seja lá o que for, acaba de abrir a boca. Tenho certeza de que seus dentes devem ser tão afiados quanto seus olhos de serpente.
— Mas que merda… é essa?
Consigo escutar os barulhos dos passos da estranha criatura vindo em minha direção. Uma pata com garras gigantescas aparece, as escamas são bastante visíveis, mesmo no escuro. O rosto da criatura surge saindo do breu, sua boca aberta mostra seus dentes e presas afiadas, e seus olhos amarelados e uma fumaça dourada saindo da sua boca me deixam pasmo.
"Poderia ser?!", penso, sabendo que nunca imaginei estar vivo para ver uma das criaturas mais lendárias de Zendrut. O ser sai completamente do escuro. A vermelhidão que cobre suas escamas que se mexem conforme dá passos pesados me lembra o sangue. Asas maiores que seu próprio corpo se abrem, causando uma ventania gigantesca dentro do salão.
Um dragão! Não é preciso dizer muito para conseguir ver a felicidade estampada no meu rosto. Poderia morrer facilmente agora que não me arrependeria de absolutamente nada. Os dragões em Zendrut eram criaturas lendárias que foram extintas centenas de anos atrás, e desde então se ouvia apenas histórias rondando as redondezas, cantadas por bardos que viajavam de cidade em cidade. Não existia um humano vivo no mundo que tivesse visto algum sequer!
Sua aparência é aterrorizante, porém, por algum motivo, torna-se bela aos meus olhos. Ele começa a vir na minha direção, me olhando fixamente, refletindo meu ser através daquele amarelo forte. Direciona o rosto para mim, até que fica imóvel.
Haaah…. Haaah… O calafrio que sobe em minhas entranhas somente eu sei o quão agonizante é. Alguns segundos se passam com ele apenas me olhando, sinto que está julgando minha alma, meu próprio ser de dentro para fora. O medo some instintivamente. Levanto a mão, tentando alcançar seu rosto. O dragão tem uma resposta diferente da que eu imaginava. Em vez de recuar ou simplesmente tentar arrancar minha mão fora, inclina ainda mais seu focinho para frente. Quando o toco, suas escamas arrepiam como um gato, e fecha os olhos devagar.
É como encostar em uma rocha com pontilhados. A cor vermelha me lembra meus olhos. Observo as asas se abaixarem lentamente, e os olhos do dragão se abrem. No meio do seu peito, um ponto de luz branca surge, e aumenta exponencialmente. O brilho é tão intenso que coloco as mãos na frente do rosto tentando impedir a luminosidade.
Ele… desapareceu? Aonde foi? Olho por todos os cantos do grande salão, adentro as sombras que o dragão estava, mas não o encontro. Ele simplesmente desapareceu de repente. Isso não pode ter sido uma alucinação…, pode? Lembro da pele grossa, não, não é uma, tenho certeza.
Vou apenas voltar para o meu quarto… e tentar fechar essa porta… se eu conseguir…
Deitado na cama, meus olhos não se fecham para dormir, simplesmente não consigo. A sensação do toque ainda corre na minha mão. Um dragão. Nunca achei que seria capaz de ver algo do tipo. A imagem daqueles olhos de serpente ficou marcada em minha cabeça, como uma lembrança querida e aterrorizante.
Devo falar sobre isso com Agnes? Ela vai pensar que fiquei maluco!
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