Volume 1
Capítulo 58: A Batalha do Portão Sul
Ao longo da extensão sul da vila, as centenas de soldados em cima da muralha encaravam amedrontados os mais de dois mil mortos-vivos que os cercavam.
Perto do portão, próximo onde Ragnar estava, um jovem soldado falou ao colega ao lado:
— A gente vai morrer! — A face pálida e o suor escorrendo em seu rosto denunciavam o pavor que o acometia.
Ragnar pôs a mão no ombro dele ombro, e disse:
— Fique tranquilo, temos um plano. Nós vamos evacuar todo mundo para a cidade de Salem, mas para isso ser possível, precisamos que vocês deem o seu melhor.
O jovem agarrou-se à sua lança e repetiu como um mantra:
— Está bem, está bem. Precisamos ganhar tempo. Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo…
Enquanto isso, Julie havia partido fazia cinco minutos. Sua missão atual consistia em reunir alguns oficiais da guarda para organizar o início da evacuação.
Considerando o tamanho do vilarejo, haveria algumas milhares de pessoas para arrebanhar, instruir e proteger, pois souberam da pior maneira que não faziam noção do tamanho real das forças inimigas. Poderia muito bem haver mais destacamentos inimigos se dirigindo aos demais portões neste momento.
E cabia a ele, Ragnar, o recém-apontado Comandante das Força Defensiva, conduzir as tropas neste cerco fadado à derrota. Apesar dos pesares, estava disposto a proporcionar uma batalha digna aos seus oponentes.
— Sigam-me — disse aos seus fieis companheiros.
Eles o seguiram pela muralha enquanto dava ordens aos soldados e jogadores pelo caminho:
— Arqueiros, na frente. Não tenham medo de atacar e fiquem atentos às minhas ordens durante o combate, vocês deverão priorizar os alvos que eu escolher.
Para os magos e feiticeiros, falou:
— O dever de vocês é causar o maior dano possível ao maior número de alvos. Mantenham seus escudos e barreiras mágicas ativos para que os magos deles não explodam nossas fileiras. Feiticeiros, por tudo que é mais sagrado, lancem suas magias de enfraquecimento nos inimigos gigantes e tentem ao máximo silenciar as classes mágicas deles.
E os curandeiros ouviram ele dizer:
— Fiquem longe do perigo, priorizem curar os aliados mais feridos, não curem quem estiver com mais da metade da vida cheia. Gerenciem bem sua mana para não ficar sem em momentos delicados.
Aos guerreiros, paladinos e cavaleiros, a vasta maioria entre os jogadores, Ragnar falou o seguinte:
— Defendam essa muralha com suas vidas e protejam nossos arqueiros, magos e curandeiros. Lembrem-se: não lutem e não se exponham caso seus pontos de vida caírem abaixo dos 25-20%, se isso acontecer, corra até o curandeiro mais próximo e espere sua vez.
Para sua surpresa, os jogadores aceitaram de bom grado as suas sugestões mesmo estando alguns níveis abaixo a alguns deles. Durante a caminhada de instrução e inspeção das tropas, a horda de mortos-vivos lá embaixo começou a rugir, grunhir e a provocá-los com caretas e gestos, alguns até obscenos.
Os jogadores responderam xingando de volta, mas alguns soldados do vilarejo não responderam tão bem às provocações.
— Eu não vou morrer aqui! — disse um arqueiro que largou seu arco no chão e correu em direção à escadaria da torre.
— Skiff, dispare uma flecha cortante na perna dele.
O amigo caçador levou a mão à aljava em suas costas, mas hesitou em puxar a flecha.
— Dispare, agora! — Ragnar ordenou em um tom de voz firme.
Sem pensar duas vezes, Skiff puxou a flecha, encaixou-a no arco e a disparou, atingindo a coxa do fugitivo, derrubando-o aos berros.
Por conta da munição cortante utilizada, sangue escorreu da coxa para as toras de madeira compondo a muralha. Os soldados nas redondezas olharam horrorizados para essa cena.
— Não se enganem, não fiz isso por mera crueldade. Esta é uma batalha de vida ou morte. A deserção de um só soldado pode condenar a vida de todos. É normal sentir medo, nosso inimigo é numeroso e horripilante, mas nós também somos. Todos aqui empunham armas mortais e vestem armaduras resistentes graças aos esforços da população desse lugar maravilhoso. Lembrem-se, nossos magos são poderosos, nossos curandeiros são confiáveis e nossos guerreiros são inabaláveis. O único medo que vocês devem sentir esta noite é o de não lutar até o fim.
Os soldados olharam entre si, as faces outroras amedrontadas foram tomadas pela empolgação do momento.
— É isso aí! — gritou um arqueiro.
— Ele está certo, nada de covardia! — berrou outro.
O discurso foi simples, Ragnar sabia, mas foi o que conseguiu improvisar no momento. Em seguida, caminhou até o soldado sangrando no chão.
— Espero que tenha entendido, e me desculpe por ferir-lo — disse, conjurou seu feitiço de cura no homem ferido e o ajudou a se levantar.
O soldado retornou ao seu posto, e o grupo de Ragnar voltou a caminhar.
— Que sensação horrível — disse Skiff. — Nunca atirei num inocente antes.
Havoc se colocou ao lado dele, e disse enquanto andavam:
— Mas foi necessário. Graças a você, os soldados estão mais motivados a defender o vilarejo porque lembraram do porquê estão lutando.
— Ah…, eu sei.
A inspeção da muralha chegava ao fim sem que outro evento problemático surgisse. Ragnar, entretanto, acreditou que isso poderia mudar quando se aproximou do lugar onde os cinco Patas Negras estavam.
— A gente não vai arranjar confusão. — Quem falou falou foi o caçador do grupo deles.
O tom daquelas palavras insinuaram uma provocação, mas Ragnar não caiu nela e seguiu seu caminho, entretanto, estranhou o líder deles, Malorn, não dizer uma só palavra.
Quando pôs os olhos em outro feiticeiro, lembrou-se do feitiço nível 15 dos feiticeiros que poderia vir a calhar. Com a ajuda de seus amigos, Ragnar reuniu todos os sete jogadores da classe e os conduziu até o guindaste próximo à torre da muralha.
— A gente não deveria estar se preparando para a batalha? — disse Malorn, após aceitar o convite à contragosto.
— Eles não irão atacar tão cedo, batalhas de cerco requerem muito planejamento de quem está atacando. Agora, a respeito do porquê estão aqui, nossa missão é transportar os doze ursos lá embaixo até aqui em cima da muralha.
— Essa é uma ótima ideia — disse a feiticeira logo à sua frente.
— Muito boa — Malorn admitiu, seguidos pelos demais.
Ragnar respirou aliviado por não precisar gastar cinco ou dez minutos tentando convencê-los. Em seguida, subiu na plataforma do guindaste e sinalizou aos dois operadores segurando a corda.
Eles acenaram e começaram a soltar a corda com cuidado. As roldanas rangiam, a plataforma tremia e ameaçava pender para um lado durante toda a descida. Enfim, o druida pisou em solo firme e informou seu plano a sua Guarda de Elite.
Como havia esperado, precisou gastar uns minutos para convencer o carrancudo líder do bando. Ragnar olhou para o alto da muralha e fez um sinal positivo, sinalizando para os feiticeiros se prepararem.
Hardgart subiu na plataforma e emitiu um rosnado irritado para Ragnar, que permaneceu focado e fez outro sinal de mão para cima. Lá em cima da muralha, os sete feiticeiros miraram seus feitiços no urso de ferro na plataforma, e conjuraram em uníssono:
— Levitar.
— Puxem! — Ragnar berrou aos operadores do guindaste.
E eles puxaram a corda com força, a plataforma foi erguida com um solavanco acompanhado por um rangido estridente.
Apesar do início desengonçado, o urso de ferro permaneceu calmo, observando os arredores enquanto era levado para o alto da muralha. Chegando lá, saltou da plataforma e aterrissou em segurança ao lado dos feiticeiros.
— Podem vir, é seguro — disse Hardgart aos seus irmãos lá embaixo.
Um por um os ursos foram transportados para a muralha. Ragnar agradeceu aos feiticeiros e os liberou para que retornassem aos seus postos.
Devido à falta de espaço, os ursos foram posicionados ao longo da muralha em intervalos de quinze a vinte metros. Assim haveria espaço suficiente para os soldados e jogadores poderem transitar com tranquilidade.
Após uma boa olhada para as tropas ali reunidas, Ragnar acreditou haver uma chance de resistir o suficiente até Julie articular a evacuação. Pensando nisso, enviou uma mensagem a amiga:
Ragnar: Tudo bem por aí?
Levou quase um minuto para receber a resposta:
Julie: Sim. Consegui reunir alguns oficiais da guarnição. Eles estão se dirigindo aos abrigos nesse momento. Não deve demorar até reunirmos o primeiro grupo para evacuar.
Ela poderia ter feito a burrada de não arquitetar um plano de evacuação com antecedência, mas reunir os moradores em abrigos foi uma decisão que lhes pouparia um bom tempo. Ragnar evitava pensar o quanto demoraria para reunir todos os moradores se eles estivessem se abrigando em suas casas.
O plano estava em curso, a defesa estava pronta, agora era só esperar, pensou olhando para a infinidade de mortos-vivos para além da muralha.
Um ponto luminoso dourado brotou na lateral direita inferior em seu campo de visão. E qual não foi sua surpresa ao ver um sacerdote de traje brilhante descer o muro usando uma corda.
Mais cordas foram jogadas em seguida, e outros trinta jogadores desceram.
Reunidos em frente ao portão sul, os trinta integrantes da guilda Caneco da Ordem Dourada formaram duas fileiras.
Santiago, o sacerdote liderando o grupo, apontou seu báculo contra os mortos-vivos e os desafiou:
— Hordas do mal, vindas dos confins do inferno, preparem-se para conhecer a justiça do Grande Cervejeiro.
E eles avançaram. Um ponto de luz dourada correu em direção à mancha sombria que era o exército do Caminho da Aurora. Magias foram lançadas, flechas foram disparadas; golpes foram efetuados, bloqueados; e, dezesseis segundos depois, a luz se apagou e nenhum membro do Caneco da Ordem Dourada sobreviveu.
— O que diabos foi isso? — Artic perguntou.
— Eles queriam peitar o inimigo frente a frente custe o que custar… e conseguiram — disse Ragnar. — Pelo menos levaram uns cinco zumbis com eles antes de morrerem pateticamente.
Uma agitação crescente tomou conta da horda inimiga. Ragnar amaldiçoou os trinta imbecis que se mataram, pois teria a estupidez deles provocado alguma reação nas tropas inimigas?
A resposta à sua pergunta veio em seguida. As divisões laterais da horda adversária começaram a se afastar do exército principal e a marchar para as laterais.
Prevenido, Ragnar chamou dois oficiais da guarda próximo a ele e mandou que formassem dois destacamentos proporcionais às forças inimigas se desgarrando, o objetivo era acompanhá-las aonde quer que estivessem indo.
No fim das contas, seria uma batalha em três frentes.
— Possivelmente nos portões laterais — Ragnar pensou em voz alta. — Skiff, Niki, preciso que cada um de vocês acompanhe um desses destacamentos.
— Mas por quê — Skiff soava triste.
— Preciso de uma pessoa de confiança em cada lugar para me atualizar da situação. Não quero ficar dependendo das mensagens repassadas pelos soldados, é muito demorado.
Eles aceitaram. Niki foi escolhida por ser ágil e furtiva, então conseguiria observar a situação em segurança e, caso o pior viesse a acontecer, poderia fugir usando sua furtividade.
Skiff, por outro lado, era uma classe de ataque à distância, portanto poderia contribuir à defesa estando em uma posição segura, além da confiança que Ragnar tinha com ele.
Dessa maneira, a assassina ficou responsável por acompanhar e vigiar o destacamento inimigo indo ao oeste, e Skiff ficou responsável pelo destacamento indo para o leste.
Os pensamentos do druida foram acompanhados pela intensificação da fanfarra macabra performada pelos inimigos. As trombetas sopradas pelos Post-Mortem ressoaram mais forte enquanto as batidas dos tambores dos Gigantes Zumbis aumentaram em força e em ritmo.
— Vai começar, preparem-se! — berrou.
A marcha inimiga rumo à muralha começou devagar, ordenada, e foi ganhando velocidade.
— Preparem suas flechas e magias.
As ordens de Ragnar eram repetidas ao longo da muralha pelos sargentos da guarnição.
— Tiros de Precisão, agora! — anunciou o nome da habilidade a ser utilizada..
Os quatorze integrantes da classe arqueira se preparam e efetuaram o disparo. Quatorze flechas cruzaram o campo de batalha em altíssima velocidade e atravessaram seus alvos, matando-os na hora e derrubando no chão os que vinham atrás.
— Chuva de Flechas! — Ragnar ordenou aos jogadores, depois aos arqueiros da guarnição: — Disparem à vontade.
Centenas de flechas foram disparadas, produzindo um zunido alto e prazeroso de ouvir. As Chuvas de Flechas produziam a lentidão necessária nos inimigos para que as flechas subsequentes dos arqueiros os atingissem com facilidade.
O resultado superou suas expectativas, mais de cinquenta zumbi e esqueletos pereceram cravejados em flechas.
Mas a marcha dos mortos não cessou, pelo contrário, iniciou-se uma correria em direção à muralha. Quando a linha dos cem metros foi cruzada, Ragnar deu a ordem:
— Magias, agora!
As conjurações produziram uma sequência de clarões que irradiou por toda a muralha, afastando a escuridão da noite por um momento.
Então as Chuvas de Flechas foram eclipsadas por uma chuva de Bolas de Fogo, Raios, Setas Mágicas e outras magias ofensivas conjuradas pelos trinta jogadores das classes mágicas espalhados pela muralha.
Ragnar participou da ofensiva lançando seus Raios e se regozijando com o estrago que estavam provocando lá embaixo. Cada conjuração atingia um grupo de três a quatro inimigos. O estrago poderia ser maior, mas os zumbis e esqueletos mantinham uma distância mínima um do outro.
Realmente, não estamos lidando com um novato. O líder deles tem uma noção sobre prevenção de dano, Ragnar refletiu.
Entre os muitos barulhos que compunham a sinfonia da batalha pela vila, sem dúvida alguma o mais agradável aos ouvidos era o som dos ossos dos esqueletos sendo destruídos pelo bombardeio de magias.
Na sequência veio a resposta, uma salva de flechas e magias foi lançada pelas forças inimigas.
As flechas, disparadas em sua maioria por zumbis arqueiros e esqueletos besteiros, acertaram o muro e ficaram encravadas na madeira ou voaram acima da cabeça dos defensores. As poucas a acertar algum alvo conseguiram ferir dois soldados e um jogador, todos foram acudidos pelo curandeiro mais próximo.
Muitas das magias conjuradas pelos magos da guilda Caminho da Aurora também acertaram a muralha, porém, o resto se chocou contra os escudos e barreiras mágicas conjuradas pelas classes mágicas participando da defesa. A única bola de fogo que iria acertar em cheio um pelotão foi apagada em pleno ar por um feiticeiro.
Algo começou a preocupar Ragnar, a mana dos magos ao seu redor já havia caído pela metade.
— Reduzam um pouco o ritmo de conjuração, cuidado para não gastar mana demais.
Com um peso no coração, testemunhou a intensidade das magias diminuir, permitindo a chegada dos primeiros esqueletos à muralha. De canto de olho, viu um deles tirar das próprias costelas uma picareta de escalada.
— Atenção, eles irão tentar escalar a muralha. Não deixem que isso aconteça de jeito algum! — Gritou, repassando as ordens aos oficiais da guarnição.
Magias eram lançadas, soldados eram feridos e inimigos eram explodidos. Devido ao caos generalizado, era difícil ter uma visão do que acontecia nos cantos mais distantes da muralha.
Então, os primeiros gigantes chegaram ao portão. Um Cavaleiro Post-Mortem carregando um machado era acompanhado por um gigante zumbi portando um porrete grande como um armário. Eles ergueram suas armas para golpear o portão, porém suas mãos foram envoltas por correntes mágicas que travaram seu movimento.
Ragnar avistou o feiticeiro responsável pela conjuração, as mãos dele tremiam com o esforço em tentar restringir o Post-Mortem.
— Feiticeiros, enfraqueçam os gigantes! — ordenou quando percebeu a falta de debuffs.
Foi tarde demais, o Cavaleiro Post-Mortem quebrou as correntes mágicas na base da força bruta. O feiticeiro caiu de joelhos, praguejou aos céus e começou a conjurar outro feitiço.
O Post-Mortem ergueu seu machado enquanto seu corpo era cravejado em flechas, então rugiu em fúria e desceu o machado com toda sua força. A pancada reverberou pela muralha junto às lascas arrancadas pelo golpe.
O portão não vai durar muito tempo, Ragnar pensou, tomado por um princípio de pânico.
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