Volume 1
Capítulo 57: Cerco dos Mortos
O badalar frenético dos sinos do vilarejo provocou calafrios na população reunida na praça central. Houve um minuto de silêncio e contemplação.
Ragnar, seus amigos e os jogadores ali reunidos sabiam o que estava por vir.
Mas o caos só irrompeu quando um homem à cavalo atravessou a praça gritando aos ventos:
— Os mortos-vivos estão vindo, os mortos-vivos estão vindo! Preparem-se!
Os mais desesperados correram por suas vidas, disparando em direção aos abrigos montados para se refugiarem. Ouvia-se choro, pessoas orando e gente pedindo por clemência enquanto metade dos jogadores gritavam eufóricos em comemoração ao início do evento.
Na confusão, mesas foram empurradas, cadeiras foram ao chão, tigelas foram largadas e quebradas. Havia sopa derramada por todo lugar.
Os amigos de Ragnar se levantaram da mesa e se reuniram ao redor dele. Àquela altura restavam na praça apenas os duzentos soldados e os cem jogadores.
Os dois grupos se juntaram para ouvir as palavras do comandante daquela guarnição, menos o grupo de Ragnar, pois ele tinha algo a dizer apenas aos seus amigos:
— Segundo a Julie, os inimigos foram avistados se aproximando do portão sul, então vamos logo! Senão iremos perder os melhores lugares — Finalizou com uma piscada de olho.
Os cinco se afastaram devagar enquanto o comandante discursava, então fizeram uma breve pausa para Ragnar reunir sua Guarda Trovejante e logo seguiram caminho.
Ao saírem de vista, correram em disparada ao portão sul. O caminho até lá estaria deserto se não fossem os poucos soldados que encontraram posicionados nas barricadas estratégicas.
Uma empolgação misturada com nostalgia tomou conta do druida, pois começou a relembrar o quão divertido e emocionante eram batalhas de cerco. Jamais iria imaginar que estaria participando de uma estando no nível 21.
— Skiff! — disse, com empolgação transbordando na voz.
— Sim, chefe.
— Você está preparado para seu primeiro cerco?
— Confesso que estou meio nervoso.
— Lembra daquela vez que ficamos caçando coelhos no lado de fora da cidade de Bremer, ou da vez que enfrentamos os mortos-vivos no Covil das Serpentes?
— Lembro sim, chefe.
— Prometo que isso será mil vezes mais divertido. — Depois falou para o resto do grupo: — E mil vezes mais emocionante que assaltar uma fortaleza.
Espiou por trás do ombro e encontrou expressões determinadas em cada integrante da Ragnarok. Os ursos vinham logo atrás, como era reconfortante ter doze feras gigantes para lutarem ao seu lado.
Lá atrás, há quarteirões de distância, os soldados e os demais jogadores os seguiam.
Tais são os privilégios de namorar a chefe de defesa.
O grupo passou pelas últimas construções do vilarejo e parou próximo ao portão sul.
A muralha contornando a vila era composta de grossas toras de madeiras fincadas no solo e amarradas umas nas outras. Mesmo não fornecendo a resistência de uma muralha de pedra, esta era espessa o suficiente para acomodar algumas fileiras de soldados com folga.
Se o material utilizado não for o ideal, basta compensar usando mais, Ragnar ponderou, e sinalizou para subirem na muralha antes que os demais soldados e jogadores aparecessem.
Só havia um problema, os ursos da Guarda Trovejante até cabiam em cima da muralha, mas não havia maneira de subirem lá. Ragnar cogitou usar o guindaste de madeira próximo à torre esquerda da muralha.
Porém, a estrutura era pequena. Ragnar conhecia aquelas roldanas e sabia que a finura da madeira não suportaria mais de meia tonelada, a metade do peso de um dos seus ursos.
Ele ponderou por mais um minuto, tentou achar alguma solução criativa para o problema, mas cada solução demandaria tempo que não dispunha e recursos que não possuía. Além do mais, Hardgart com toda a certeza, iria amaldiçoá-lo por tentar transportá-lo em um guindaste.
Apesar da cena cômica que passou em sua mente, Ragnar se deu por vencido e ordenou que eles protegessem o portão a qualquer custo. Eles acataram a ordem e se dispuseram ao redor do portão.
Ragnar e seu grupo correram para dentro da torre direita do portão e subiram a muralha usando a escadaria interna.
A torre ficava a um metro acima da muralha, podia acomodar até quatro pessoas e contava com dois porta-flechas nas laterais capazes de armazenar 24 munições cada.
Após escalarem a torre, acessaram a muralha e se depararam com as tropas ali posicionadas. Uma tropa com olhar determinado encarava o horizonte pouco iluminado pelo luar, alguns conversavam entre si, riam e comentavam as atrocidades que iriam fazer com os inimigos.
Comparando com os soldados amedrontados que o receberam mais cedo naquele mesmo dia, pareciam até outras pessoas. Mas a verdade só viria à tona quando a hora da verdade chegasse.
Não deve demorar, Ragnar imaginou, logo deparando-se com Julie, parada de braços cruzados contemplando a paisagem iluminada pela fraca luz do luar.
— Que bandana é essa? — disse colocando-se ao lado dela e apontando para a faixa vermelha amarrada na cabeça.
— Faz parte da indumentária. — Uma lufada de vento fez tremular as duas tiras vermelhas junto a alguns fios de seu cabelo castanho. — Não gosto de usá-la quando não preciso, mas ela aumenta minha velocidade, então, em batalhas de vida ou morte, é melhor usar.
Lá em baixo, em terra firme, chegava o resto dos soldados e jogadores vindos da praça central. Vendo de cima, Ragnar avistou dois grupos curiosos: o primeiro era os cinco da Pata Negra; o outro, os trinta e dois integrantes de uma guilda onde todos trajavam armaduras e vestes marrons, douradas e reluzentes, como se emitissem luz própria.
O feiticeiro liderando o grupo dos Pata Negra olhou para cima e encontrou o druida, então acenou. Ragnar respondeu ao gesto e voltou sua atenção à Julie.
— Tudo Pronto?
— Tudo pronto — ela respondeu.
— Quantas criaturas foram avistadas?
— Por volta de mil, a grande maioria são zumbis e esqueletos, mas há gigantes e cavaleiros mortos-vivos enormes entre eles.
— Gigantes Zumbis e Cavaleiros Post-Mortem, conheço essas figuras, já lutei contra eles. São criaturas fortes para mim, minha guilda e esses soldados, para você vai ser fichinha.
— Você fala isso, mas anda por aí acompanhado de segurança particular. — Ela gesticulou para os ursos lá embaixo, então mudou o assunto: — Não se preocupe, eu já providenciei reforços vindo de outras partes da muralha. Até agora não foram avistadas aproximações suspeitas em outras direções.
Ragnar respirou aliviado. Lutar em duas ou mais frentes durante um cerco sempre era uma manobra arriscada. O atacante poderia acabar dividindo demais as suas forças e acabaria não oferecendo ameaça aos defensores que já lutam em uma posição vantajosa.
Do contrário, caso os defensores tenham concentrado demais os seus números em uma posição, uma divisão inimiga, por menor que fosse, poderia se infiltrar e comprometer as defesas por dentro.
Ragnar estava tranquilo, pois sabia que Julie tinha alocado tropas ao longo da muralha e destacamentos numerosos em cada portão.
Aos poucos chegavam os reforços convocados em outras guarnições. No momento, a extensão sul da muralha era protegida por 600 soldados ou mais, essa era a metade das forças totais do vilarejo.
Um ruído chamou a atenção de Ragnar. Um tilintar metálico acompanhado por uma marcha ressoou vindo da torre da muralha. Um pelotão de trinta aventureiros trajando marrom e dourado se aproximou deles.
— Você é a comandante? — perguntou o sujeito liderando a trupe.
Ele tinha por volta de 1,60 de altura, cabelo preto liso penteado para trás. Trajava uma suntuosa batina sacerdotal marrom com acabamento dourado por onde irradiava uma sutil luz dourada.
Julie o olhou de cima a baixo antes de o responder:
— Sou eu mesma.
— Meu nome é Santiago, sou o arcebispo da Ordem do Caneco Dourado. Eu ordeno que abram os portões e nos deixem sair.
— Você tá doido? Um exército de mortos-vivos está se aproximando e você quer dar de cara com eles?
— Exatamente, meus irmãos e eu iremos enfrentá-los honrosamente no campo de batalha em vez de nos acovardar atrás da muralha.
— Não estou entendendo, vocês querem se matar? Vocês sabem que podem contribuir muito mais aqui em cima, na muralha, atacando eles à distância, temos várias pilhas de pedras aqui em cima pra jogar em cima deles.
— Isso não importa, morreremos em glória, seremos os mártires que motivarão às massas a lutar em nome do Grande Cervejeiro, Mabuk, Besar, o nosso patrono.
— Não me interessa se vocês querem morrer em nome de Nanuk Bebar ou seja lá o que for, eu não irei permitir a abertura do portão.
O sacerdote apontou o dedo indicador para ela.
— Senhorita, você fez de nós seu inimigo. Ninguém zomba do Grande Cervejeiro e sai impune nessa vida. Você irá se arrepender amargamente. — Ele ergueu o báculo em sua mão direita e entoou em um cântico paroquial: — Toda a cerveja que beber estará azeda, todo petisco que comer estará estragado, e toda carne que assar ficará tão bem passada que terá gosto de borracha.
Santiago finalizou batendo o báculo duas vezes no chão, virando-se de costas e indo embora.
— Você viu isso ou eu estou maluca? — Julie voltou-se para Ragnar.
— Vi tudo, fazia muito tempo que não encontrava um jogador Role Player tão pirado das ideias.
— O que isso quer dizer? — Niki perguntou.
— Você nunca ouviu falar de jogador Role Player, ou Role Play, ou vulgo RP?
Ela negou com a cabeça cada nome entoado pelo druida.
— São jogadores que interpretam a classe dos seus personagens ao pé da letra.
— Acho que entendi… um pouco.
— Niki — começou Artic. — Um jogador RP não iria dizer: “Vou farmar experiência matando bichos voadores até subir de nível”, em vez disso, ele falaria: “Preciso ficar mais forte, então irei treinar minha esgrima enfrentando cobras voadoras”.
— Ah, entendi. No meu caso, eu estaria sempre agindo no jogo como uma assassina linda, mortal e tenebrosa agiria no mundo real.
O assunto foi cortado quando Julie anunciou:
— Lá, entre as árvores!
Todos viraram-se para encarar a linha de árvores no horizonte. Uma dúzia de esqueletos guerreiros atravessou as folhagens acompanhados pelo ressoar fortíssimo de trombeta e o ecoar poderoso de tambores.
O ritmo musical acompanhando o surgimento dos inimigos era destoante, macabro e alto demais para ser tocado por seres humanos. Então, naquele mar de mortos-vivos surgindo no horizonte, o primeiro Cavaleiro Post-Mortem deu as caras derrubando a árvore em seu caminho com uma só pancada da mão esquerda.
Em seguida, o cavaleiro morto-vivo com mais de três metros de altura tirou a trombeta presa ao cinto e a assoprou, ressoando mais uma melodia fora de compasso.
Ragnar observou os soldados ao seu redor, alguns roíam a unha, outros arregalaram os olhos e abriram a boca em choque. Aquele cavaleiro Post-Mortem era diferente do Legionário contra a qual lutaram nas profundezas do Covil das Serpentes, este tinha um ao menos um metro de altura a mais, estava mais conservado e trajava uma armadura com poucos sinais de deterioração.
— Confesso que estou com um pouco de medo — admitiu Skiff.
— Eu também — acrescentou Havoc.
— Nem me fala. — Foi a vez de Niki.
Ragnar aguardou a vez de Artic.
— Nunca vi nada parecido.
Olhou para Julie, e ela, notando o olhar dele, adicionou com firmeza na voz:
— Tudo dentro do planejado.
Ragnar calculou mais de quinhentos mortos-vivos marchando em direção à muralha.
— Não se deixem intimidar — berrou um dos sargentos na muralha. — Eles morrerão esta noite, nós vamos trucidar eles um por um!
Seu grito foi acompanhado pelo de seus companheiros, sinalizando que a moral estava alta graças, talvez graças a sopa de rum. Somando-se a isso a boa condição dos equipamentos dos soldados, Ragnar sentiu-se otimista.
— O restante deles chegou — Ouviu Julie dizer.
Um segundo grupo tão numeroso quanto o primeiro surgiu. Ragnar percebeu algo interessante após analisar a composição das tropas inimigas.
— Achei vocês, seus safadinhos — disse com satisfação na voz.
Os membros do Caminho da Aurora estavam escondidos naquele mar de mortos-vivos. Eles ocultavam seus uniformes branco e dourado com uma longa capa preta com capuz.
Ragnar alertou Julie sobre o seu achado. Ela não poupou tempo e logo ordenou seus soldados a tomarem cuidado com eles.
O segundo grupo de inimigos se posicionou ao lado do primeiro, formando duas largas colunas de mortos-vivos a duzentos metros da muralha, longe do alcance efetivo dos arcos e das magias dos defensores.
Nessa situação, um comandante inexperiente poderia ter ordenado seus arqueiros a disparar suas flechas contra a horda inimiga, porém isso causaria um dano baixíssimo, pois um disparo de flecha perde efetividade em distâncias longas como essa, além de cansar o arqueiro e arriscar deixá-lo sem energia para quando os inimigos tiverem se aproximado do alcance ideal.
O líder deles não deve ser um novato qualquer. Eles devem estar repassando as ordens aos demais neste momento, Ragnar concluiu em pensamento.
— Mas o quê, tem mais? — Julie anunciou, preocupada.
Uma terceira coluna de inimigos atravessou a floresta e se mostrou em campo aberto. Eram tão numerosos quanto as duas primeiras divisões e possuíam tantos Gigantes Zumbis e Post-Mortem quanto as outras.
— Isso é ruim, bem ruim, mas a gente consegue vencer — Ragnar tentou confortá-la.
— Eu sei…
Agora, três enormes colunas com quinhentos mortos-vivos cada estavam diante deles. Julie correu até o oficial mais próximo e ordenou que chamasse mais reforço para o portão sul. O oficial acatou as ordens e as delegou para três voluntários, que logo se disperssaram e correram em disparada.
— Se o vigia que os encontrou e contabilizou está errado, isso significa que não temos ideia dos números deles — disse Ragnar. — Eles podem ter força suficiente para estar nos cercando agora mesmo. O que será que aconteceu?
— Eles vieram em grupos separados. O olheiro pode muito bem ter avistado dois deles e acabou achando que não haveria mais…
Era a mesma impressão que Ragnar tinha, e ele se distraiu tanto pensando sobre isso que, quando voltou-se para Julie, via ela com a mão no rosto, olhos fechados e uma expressão triste que apertou-lhe o coração.
A resposta para isso estava mais uma vez no horizonte, um quarto grupo surgiu, seguido por um quinto, este último tinha a metade do número dos demais.
— Dois mil e duzentos filhos da puta… — disse Ragnar.
— E a gente só pode reunir no máximo uns mil soldados aqui — Julie admitiu com uma voz pesada, transbordando em pesar. — Se fizermos isso, estaremos deixando tão pouca gente no resto da muralha que só um desses gigantes poderia derrubar o portão.
— Ragnar, a gente pode vencer esses caras? — Skiff perguntou.
— Talvez… se eu tivesse meu avatar antigo, mas um druida nível 20? Nunca!
— E agora?
— O vilarejo já era, ou esperamos por um milagre, ou colocamos em prática o plano de evacuação, né, Julie?
Ela ergueu o rosto para o céu, olhou para a lua, então voltou-se para Ragnar, para lhe dizer:
— Não existe plano de evacuação…
— Mas durante a reunião da prefeitura, eu perguntei se você tinha preparado um.
— Eu menti porque não queria admitir ao prefeito. — Sua voz começou a tremular. — Eu jamais acreditei que estávamos lidando com alguém tão… poderoso… Daniel, me desculpa. — Terminou com a voz falhando de tão abalada.
Julie estava arrasada, prestes a chorar, algo raro. Foram poucas as vezes que a viu chorar de verdade. Jamais imaginou que algo assim poderia mexer tanto com ela. Por outro lado, era um erro grave não preparar uma estratégia de evacuação por mais simples que fosse.
O vilarejo estava comprometido, todos iriam morrer, o evento iria falhar e o Rei Necromante poderia retornar a vida.
Se o necromante retornar… ele com certeza irá querer se vingar do sucessor de Bjorn, eu; dos ursos de ferro e… do santuário! só então Ragnar percebeu o perigo em que se encontrava
Frustração e dó o dominaram por completo. Quando recobrou um pouco a sua postura, encontrou Julie olhando para baixo, cerrando os dentes e o punho.
— Ragnar…, cuide da defesa por mim, por favor, eu sei que você consegue. Eu vou consertar minha burrada. — Ela o encarou, havia muita dor em seu olhar, mas ao mesmo tempo, uma determinação feroz acompanhou suas próximas palavras. — Nós iremos lutar, podemos perder o vilarejo, mas vamos salvar essas pessoas.
— Claro, deixe comigo. — Esforçou-se para exprimir confiança na voz.
Todos os jogadores presentes dentro do vilarejo receberam a seguinte missão:
Defenda o Vilarejo (Nível: 24) |
Proteja o vilarejo das forças invasoras. |
Recompensas |
22.600 pontos de experiência 1.200 rubros Título de Defensor de Salem 2.500 pontos de reputação com a Vila Torino 1.000 pontos de reputação com a Cidade de Salem 500 pontos de reputação nas demais cidades e vilarejos da província Recompensas especiais de acordo com a importância da sua participação no evento |
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