O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 56: Tensões no Vilarejo

O clima na praça central da Vila Torino estava animado apesar da ameaça iminente.  No palco próximo a cozinha, o quarteto musical liderado por Skiff voltou a tocar após uma breve pausa. Mas dessa vez, por sugestão de Ragnar, trocaram as melodias folclóricas por um repertório mais agitado, ideal para motivar a população e os soldados.

Enquanto isso, na cozinha, o último ingrediente era adicionado aos panelões de sopa: uma dose de rum preto, o suficiente para realçar o sabor forte e causar uma leve embriaguez eufórica a quem a bebesse.

Ragnar, Havoc e Niki ocuparam uma mesa em frente ao palco e tiraram um momento para apreciar Skiff tocar enquanto aguardavam o retorno do amigo cavaleiro, que se ausentou fazia um tempo.

— Niki, está tudo bem com o Artic ultimamente?

A assassina sentada à sua frente parou de brincar com a adaga na mão direita, e respondeu:

— Acho que sim, por quê?

— Mais cedo ele parecia meio avoado, distante.

— Não percebi nada de estranho nas últimas vezes que conversamos. Você lembra pra onde ele foi? Talvez seja melhor ir ver como ele está.

Ragnar aceitou a sugestão da amiga e se levantou da cadeira. O ambiente estava lotado por conta da quantidade de gente vindo jantar. Com dificuldade, Ragnar avançou pelas fileiras de mesas e bancos apertados.

Esticou o pescoço e tentou procurar pelo cavaleiro, mas nada. Caminhou na direção que o viu pela última vez. Saiu da cozinha comunitária, atravessou algumas ruazinhas da praça e acabou o encontrando em um beco.

Artic permanecia parado, de costas para Ragnar,  ereto como um boneco sem vida, mas algo ecoava dele. Ragnar se aproximou, tentou chamá-lo, mas não obteve resposta. O amigo permanecia imóvel, seu rosto sem expressão alguma.

Apesar da boca fechada, algo era falado baixinho, semelhante a uma discussão. Ragnar discerniu duas vozes distintas. Uma era do amigo, a outra parecia uma mulher mais velha.

“Eu já falei, está… , eu não vou…, é… de tempo!” escutou Artic dizer.

“Se você… mesmo…, vai… arrepender!”  ouviu a outra voz esbravejar.

Ragnar se afastou devagar. O corpo tremia devido ao susto tomado por descobrir que o amigo discutia com alguém no mundo real, talvez sua mãe, e essa discussão estava vazando pelo microfone do aparelho de realidade virtual.

Nada o havia preparado para o susto que tomaria a seguir, quando deu as costas para o avatar do cavaleiro e se preparou para fugir, ouviu a voz dele dizer em alto e bom tom:

— O que você escutou?

— Quê? Nada, quase nada!

— Ragnar, ou melhor, Daniel. Eu não sou burro ou inocente, sei que se você ouviu o último minutos da discussão, você já deve ter uma ideia… — disse com uma expressão soturna. — A situação aqui em casa anda complicada ultimamente. Estou tendo uns desentendimentos com minha mãe, mas não se preocupe, essas coisas se resolvem com o tempo.

Esperava ser enterrado em culpa e remorso por espionar sem querer o amigo, em vez disso, foi tomado uma compaixão. O amigo outrora distante, frio e sarcástico; abriu um pouquinho da sua vida para ele. Em respeito a maturidade do ato, Ragnar falou:

— Não vou me meter na sua vida se não quiser, mas sei como esse tipo de problema pode ser difícil de lidar. Então, se eu puder ajudar de alguma forma, você pode falar diretamente comigo.

— Você teria um milhão de reais pra me emprestar?

Ragnar o encarou, sem saber o que dizer.

— Relaxe, estou brincando.  Vamos lá reencontrar com o pessoal.

Juntos eles retornaram à mesa onde o resto do grupo os esperava. Ragnar o atualizou a respeito da adição de rum na sopa e esperou ser criticado por adulterar a receita, Artic, porém, decidiu provar antes de criticar:

— Está ótimo. O sabor da carne foi preservado, na verdade ele foi realçado; os vegetais estão ótimos e o caldo ficou até mais saboroso. Parabéns, sua brincadeira deu certo.

— Não esquece de falar pra ele que você pretendia roubar a bebida em vez de comprar honestamente — Havoc mencionou entre colheradas de sopa.

Artic sorriu com o comentário, era visível como seu humor havia melhorado. Mas Ragnar não sabia se a felicidade era genuína ou se estava apenas fingindo para não preocupar o grupo.

Ragnar admirou a calmaria durante a ceia. O vilarejo estava sob a luz das tochas, fogões e balões mágicos conjurados por feiticeiros após o escurecer do cair da noite. Não muito longe de onde estavam, a Guarda Trovejante permanecia sentada, impassível e sob o olhar curioso da multidão que não ousava se aproximar.

Odruida levantou-se e foi até eles para checar a situação. Era importante saber se continuavam motivados, do contrário, poderiam ir embora por julgarem não estar desempenhando um papel importante para o santuário.

— Eles são lindos — disse uma jovem mulher alta, ela trajava um vestido simples com alguns remendos na linha da cintura.

— Você não está com medo deles?

— De forma alguma, a senhorita Comandante pediu para eu vir aqui alimentá-los. Ela me disse que eles lutarão pelo nosso vilarejo.

Ela tirou de dentro da bolsa a tiracolo algumas peças de carne embrulhadas em panos. Sem hesitar, ela os desembrulhou um a um e serviu cada urso. O primeiro pedaço ela ofereceu estendendo as mãos e o colocando no chão, quando passou da metade, sentiu-se entrosada e confiante o bastante para dar direto na boca deles.

— Obrigado — Ragnar agradeceu, e ela foi embora.

— Gostei dela — afirmou Hardgart.

— Mas é claro que gostou dela, você é um animal.

— Você também é, druida urso de ferro.

— Touché.

Retornando à mesa onde estava seus amigos, Ragnar avistou um grupo de cinco jogadores conversando com eles. Ao se aproximar, descobriu que não era uma conversa amigável, mas uma discussão entre Havoc e um feiticeiro chamado Malorn, da Pata Negra. Logo percebeu que os outros quatro também eram da Pata Negra.

— Droga, droga, droga. Ainda essa! — resmungou e se apressou.

— O druida ladrão em pessoa — debochou o feiticeiro Malorn, em seguida voltou seu olhar para Havoc. — Vejo que você entrou na guilda do druida que nos humilhou.

— E não me arrependo nem um pouco. A melhor coisa que me aconteceu na Pata Negra foi sair dela, você não percebe que o líder de vocês é um idiota? Uma marionete das guildas maiores da aliança? Pense bem, o que vocês ganharam fazendo parte dela?

— Ele te deu essa espada! — O espadachim à direita de Malorn disse apontando para espada embainhada na cintura de Havoc.

— Uma espada épica de nível baixo, grande coisa. Não vai demorar para eu precisar trocá-la por uma outra. Essa espada é uma migalha comparado ao que eu merecia após sujar as minhas mãos por aquele inútil.

Ragnar se colocou entre os dois grupos.

— Vocês vieram arranjar confusão? Porque se for o caso, eu acabo com vocês aqui e agora.

Os quatro jogadores ao redor de Malorn empunharam suas armas e se prepararam para o pior, o feiticeiro, porém disse com uma calma destoante dos ânimos dos colegas:

— Nós viemos participar do evento. Não queremos brigar com ninguém.

Ragnar continuou os encarando, incerto quanto a motivação deles. O feiticeiro prosseguiu:

— Nossa prioridade é participar do evento, arranjar confusão aqui colocaria em risco qualquer chance de sermos recompensados.

A lógica fazia sentido, mas eles faziam parte de uma guilda imoral conhecida por extorquir e manipular os mais fracos. Ragnar optou por consultar uma amiga.

— Havoc, você os conhece melhor, podemos confiar neles?

— O Malorn é gente boa, já fizemos alguns trabalhos juntos, já os outros quatro aí eu mal os conheço.

— Tem mais gente da sua guilda por aqui? — Ragnar perguntou ao feiticeiro, Malorn negou com a cabeça e o druida emendou: — Vamos fazer o seguinte, se vocês realmente não querem arranjar confusão, então fiquem na de vocês e não ousem se aproximar de nós, entendido?

O feiticeiro olhou para os colegas, depois para Ragnar, e finalizou:

— Por nós tudo bem.

Eles se afastaram dirigindo-se à fila da sopa que ficava a uns sessenta metros do grupo de Ragnar.

— Não estou gostando disso — resmungou Artic.

— Nem eu, mas não temos escolha. Eles não estão marcados como Matador de Jogador, então não podemos eliminá-los sem provocação, senão mil e duzentos soldados vão correr atrás de nós — Ragnar disse voltando a se sentar à mesa. — Vamos manter distância deles, mas sempre de olho para qualquer ameaça. Eles podem estar conspirando agora mesmo.

— Será que eles estão aqui para nos espionar? Não é muita coincidência eles estarem aqui? — Artic levantou suas suspeitas.

— Se esse for o caso — disse Havoc. — Zed teria enviado um grupo maior e mais forte, talvez ele mesmo viria pessoalmente confrontar o druida. Agora…, o porquê deles estarem aqui, eu não sei, pode ser mera coincidência.

— Mudando um pouco de assunto — começou Niki. — Não há nada que possamos fazer para ajudar na defesa agora? Estamos parados já faz um tempo.

— Sempre há alguma coisa que possa ser feita, mas todas as providências mais importantes já foram tomadas com antecedência graças a Julie. A muralha foi inspecionada, brechas foram tapadas; graças a você e Havoc, os soldados estão bem armados e protegidos; a sopa de Artic foi distribuída, portanto todos os soldados estão mais motivados; e a performance de Skiff ajudou a acalmar os ânimos da população e, dessa forma, puderam colaborar ao esforço de guerra com mais afinco. Agora só nos resta esperar.

***

Na fila da sopa, os cinco da Pata Negra aguardavam a vez para servirem-se. Malorn, o feiticeiro liderando o grupo, batia o pé no chão repetidas vezes enquanto olhava para o céu estrelado e espionava vez ou outra o grupo da sua antiga colega de guilda.

Eles sorriam, davam risadas, brincavam e se provocavam, era um clima alienígena comparado ao da Pata Negra.

— Nós precisamos falar pro chefe que o druida está aqui — disse o guerreiro atrás de Malorn.

— Se avisarmos, ele virá aqui arranjar briga com o druida e sua gangue. Aí a gente vai acabar sendo arrastado para a confusão e, mesmo que a gente saia ganhando, vamos ser cortados do evento e de qualquer recompensa.

— Mas Zed pode nos recompensar. Ele vai ficar uma fera se descobrir que o druida esteve aqui e a gente não fez nada!

Ele pode me recompensar com uma arma épica de nível baixo que será trocada assim que subir alguns níveis, seu pensamento ecoou as palavras de Havoc.

— Se você quer contar a ele, fique à vontade.

Levou dois minutos para aparecer uma mensagem no chat da guilda.

“ACHAMOS O DRUIDA! ELE ESTÁ NESSA VILA”

A mensagem era seguida pelas coordenadas do vilarejo.

***

A sopa era tão boa que a notícia se espalhou como fogo pelo vilarejo. Todo mundo queria experimentá-la. Até mesmo os soldados de prontidão nas muralhas ficaram sabendo, e muitos quiseram ir à praça para se saber se era tão boa assim mesmo.

Para lidar com a situação da guarnição, Julie contou a Ragnar via mensagem que ela e o prefeito precisaram organizar um delivery para os soldados a fim de evitar eventuais fugidinhas até a cozinha para encher a barriga.

Já na praça, o caos da aglomeração e empurra-empurra foi resolvido organizando quatro fileiras onde cada pessoa era servida uma porção generosa de sopa para evitar o máximo de repetições possíveis.

Após se servirem, os membros da Ragnarok conversavam à mesa enquanto saboreavam a ceia. Foi nesse momento que Artic os surpreendeu revelando que havia participado na formulação da receita da sopa.

— Quando eu me voluntariei, eles me colocaram para descascar vegetais. Tentei conversar com eles sobre a receita, mas me ignoraram e me mandaram ficar quieto no meu canto. Então, por um tempo, fingi que estava descascando conforme mandaram, mas enquanto isso eu estava cozinhando uma porção da minha receita em uma panelinha separada. Eles ficaram irritados e quase me mandaram embora da cozinha, mas depois que provaram, não resistiram, pediram desculpas e perguntaram se poderiam usar minha receita.

— Que legal! Você foi muito corajoso. Adoraria saber cozinhar bem de verdade… eu no máximo sei fazer arroz, macarrão e…

As palavras de Havoc foram interrompidas por um badalar de sinos fraco e longínquo. Algumas poucas pessoas perceberam o som, mas ele logo se intensificou e cada vez mais gente começou a procurar a fonte do barulho.

Um badalar dez vezes mais forte se juntou aos demais, ele vinha da igrejinha próxima à praça.

— Preparem-se, eles chegaram — disse Ragnar.


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