O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 48: O Ritual

Os olhos do Refúgio dos Ursos de Ferro se voltaram para Ragnar, em pé, ao lado das quatro mil barras de ferro empilhadas como uma pirâmide.

A chuva se intensificou com o passar do tempo. A garoa de outrora transformara-se em uma torrente d’água capaz de pantanificar o chão em que pisavam.

O plano era simples, porém muito arriscado. O investimento da compra de todo aquele ferro deixou-lhe pobre, mas a recompensa permanecia uma incógnita.

Ragnar estava ciente de uma coisa: a hora de pular fora do barco já havia passado. O dano em suas economias estava feito, então lhe restava prosseguir com o plano.

Ele se aproximo da pirâmide de barras de ferro e se preparou para escalá-la. Em um salto subiu na primeira plataforma, mas parou para contemplar as dezenas de ursos que assistiam a sua performance.

— Ragnar, o que você está fazendo? — disse uma voz travessa.

E um pequeno urso pardo mancou para perto. Seus passos desengonçados respingavam lama contra si mesmo e contra os ursos nas proximidades.

Hardgart avançou apressado atrás de seu filho.

— Mikken, se afaste. É muito perigoso.

— Mas paaaaaaaaaai…

— Fique atrás de mim até essa loucura terminar, é uma ordem.

O ursinho baixou a cabeça e aceitou o destino que lhe foi imposto. Enquanto isso, no topo da pilha de ferro, Ragnar ergueu o punho em um símbolo de vitória, e disse:

— Fique tranquilo, pequeno Mikken, vai dar tudo certo.

— Ebaaa — ele era só sorrisos.

Ragnar estufou o peito e bateu com a coronha da lança nas barras de ferro que o sustentavam no topo da pilha.

— Bravos ursos deste santuário! — clamou aos céus e a sua plateia. — Eu os trouxe até este platô para trazer igualdade a este refúgio em conflito, onde irmão luta contra irmão por causa de um ritual realizado cem anos atrás.

Fez uma breve pausa para aumentar o drama em suas próximas palavras.

— É hoje, neste dia chuvoso, nesta data fatídica, que eu ousarei repetir o ritual de ferro. Porém, eu não posso me comparar com ele, pois Bjorn já era uma lenda quando realizou este ritual, portanto, sabendo do risco a qual estou me colocando, eu darei minha vida a vocês. Servirei de condutor para a fagulha da paz que derreterá todo esse ferro diante de seus olhos. Esse ferro é meu presente a todos que ficaram para trás nestes cem anos. Então… TESTEMUNHEM! — Ragnar finalizou aos berros, pegando-os de surpresa, erguendo a cabeça e contemplando os relâmpagos cruzando as nuvens escuras no horizonte.

Chegou a hora de pôr o plano em prática, de colocar toda a teoria à prova, de simular o derretimento do ferro com seu feitiço. Ragnar brandiu a lança ao alto, depois a desceu aos seus pés, com a lâmina tocando o topo da pirâmide de ferro.

Raio, ele comandou. A descarga elétrica acumulou na ponta da arma e, quando liberada, espalhou centenas de fagulhas pelas barras de ferro.

Raio, mentalizou outra vez, de olhos fechados. A segunda descarga teve o mesmo efeito da primeira. E repetiu a conjuração até drenar toda sua mana, quando abriu o inventário, tomou uma das duzentas poções de mana que havia comprado e repetiu o processo.

Os raios continuaram sendo conjurados. As faíscas chicoteavam o ferro, e o druida manteve-se firme a cada nova tentativa.

No dia anterior ele simulou o derretimento com eletricidade em uma pequena concentração de ferro para validar a história de Bjorn. No início todas as suas tentativas fracassaram. Percebendo que seus esforços o levaram a lugar nenhum, Ragnar conjurou seu Raio centenas de vezes contra o tronco de algumas dezenas de árvores para elevar o feitiço ao nível 10.

Foram horas de treino que o levaram à exaustão, mas quando atingiu esse marco, o milagre aconteceu. Em onze conjurações a pilha de dez barras de ferro se liquefez. Mas ele estava ciente de que isso talvez não seria o bastante para derreter toneladas de uma só vez, para isso contava com os relâmpagos no céu, seu plano B.

Foram minutos de aflição para os ursos em torno da pirâmide. A atenção fora tão monopolizada por Ragnar que o conflito entre os ursos comuns e os de ferro haviam evaporado.

— Ele é insano — disse Torvell.

— Mas corajoso — Hardgart provocou com palavras e um olhar acusador.

O urso de ferro o ignorou e voltou sua atenção ao druida em cima da pirâmide. A resiliência daquele humano provocou uma estranha admiração em cada um deles, até mesmo em Torvell e seus irmãos.

Era assustador como Ragnar estava focado, conjurando raio atrás de raio, parando em breves intervalos para restaurar a mana. Então algo chamou a atenção de Hardgart, ele se aproximou das pilhas de ferro e conferiu as barras perto do topo, as beiradas apresentavam um princípio de derretimento.

E lá no alto, Ragnar estava uma pilha de nervos, pois o derretimento começou muito mais tarde do que fora previsto em suas simulações. O “Plano A” estava fora do alcance, restava-lhe apenas dez poções de mana. Ele parou um momento, olhou para o céu, deixou a chuva escorrer em seu rosto, e sentiu as gotas pingando em seu cabelo.

Raios riscavam o céu escuro, o “Plano B” estava pronto para ser executado, mas antes, consumiu até a última poção de mana e conjurou raios até a mana cair pela metade.

O pequeno urso manco correu de trás do pai, que ordenou:

— Mikken, volte imediatamente, lá é muito perigoso pra você!

O pequenino continuou mancando até chegar na base da pirâmide.

— Ragnar! — ele berrou. — Não desista.

E uma voz lá de cima respondeu:

— Não se preocupe, vai dar tudo certo.

— Promete?

Ragnar não conseguia acreditar naquele filho de urso pardo.

— Eu prometo, mas Mikken…

— Sim?

— Você confia em mim?

— Com todas as minhas forças.

— Então escute seu pai. Ele pode ser casca grossa, mas sabe cuidar de você.

— Está bem…

Cabisbaixo, o pequeno urso voltou até Hardgart e se sentou ao lado dele.

— E mais uma coisa — Ragnar levantou ainda mais a voz, direcionando suas próximas palavras aos demais ursos. — Eu exijo que Mikken seja o primeiro.

— Primeiro o quê? O primeiro órfão da noite? — zombou Torvell, lá embaixo.

— O primeiro a receber este presente.

A perdição das Víboras foi empunhada com as duas mãos e apontada aos céus, a cabeça de serpente esculpida na ponta da arma também encarava as descargas elétricas.

A tempestade não irá a lugar algum, eu tenho todo o tempo do mundo, Ragnar relaxou e começou a estudar os intervalos entre os raios.

Dezoito segundos, dezessete segundos… vinte segundos

Dezoito, vinte um, dezesseis, dezoito, dezenove.

Apertou a empunhadura da lança e ativou a conjuração do Raio após o passar de vinte segundos. Faíscas azuladas brotaram ao longo da lança, convergindo para a lâmina onde se acumulou toda a energia.

Ragnar avistou um clarão no céu, seu Raio ascendeu às nuvens, e entre uma massa de nuvens negras, um raio desceu em uma diagonal na direção sul.

Ele fechou os olhos e amargurou o erro.

— Você é maluco! — urrou Hardgart.

— Deixe ele se matar — satisfez-se Torvell.

Mikken, por outro lado, permaneceu quieto, acovardado, tremendo atrás do pai.

Coitadinho, deve estar apavorado com tantos raios assustadores, pensou Ragnar.

A lança foi erguida mais uma vez. O Raio conjurado estalou de baixo para cima na mesma hora que um relâmpago desceu do céu.

Uma luz esbranquiçada vinda do céu ofuscou a visão de todos naquele santuário e em suas redondezas, porém ela não veio desacompanhada, um estouro ensurdecedor reverberou em seguida, ferindo durante um minuto a audição de todos no Platô Cerimonial.

A luz pairou no ar durante segundos. Torvell e Hardgart tentavam coçar os olhos com as laterais das patas. Mikken, entretanto, encolheu-se tremendo de medo.

E quando a luz esmaeceu e o ronco do estouro perdeu força. Os olhares do santuário se voltaram à pirâmide de ferro. Mas havia um problema, ela não estava mais lá. O que havia em seu lugar era uma poça de massa férrea semilíquida, cujas bordas e miolo estavam carbonizadas, em certas partes haviam chamas avermelhadas crepitando sobre metal derretido.

Torvell se aproximou de onde os raios se encontraram, não havia sinal algum de Ragnar.

— Patético, esse ferro está apodrecido, completamente torrado. — Virou-se para encarar Hardgart. — Parece que seu amigo druida fracassou…, prepara-se para o confronto.

Hardgart rosnou enfurecido, frustrado por ter nutrido esperanças no plano de Ragnar, um plano que traria equilíbrio ao santuário, analisando em retrospecto, parecia bom demais para ser verdade.

— Onde você quer lutar? — perguntou ao urso negro de olhos vermelhos.

— Aqui mesmo, você tem alguma objeção?

— Nenhuma — respondeu, aproximando-se devagar do espaço vazio entre os ursos normais e os de ferro.

Torvell veio ao seu encontro, seu corpo avantajado, suas patas grossas e afiadas revestidas em ferro fizeram os ursos comuns temerem pelo destino de um de seus líderes.

Uma arena formou-se da espontaneidade da situação, localizada entre a poça de ferro semiderretida e carbonizada, e a beirada norte da colina do Platô Cerimonial.

O líder dos pardos e dos de ferro se encaravam, o primeiro exibia uma expressão calma, porém séria; enquanto o segundo era raiva pura, seus olhos vermelhos exprimiam seus instintos mais primitivos.

— Papai, não faça isso, por favor! — implorou o pequeno urso manco.

Hardgart distraiu-se com as súplicas do filho, foi nesse instante que o urso de ferro avançou, suas pesadas patas negras pisaram no chão molhado, afundando alguns centímetros antes de se erguerem para o próximo passo.

As presas de Torvell penetraram próximo ao pescoço do pardo, que grunhiu em dor, porém lutou para não demonstrar fraqueza. Em vez de contra-atacar com patadas, rasgos ou mordidas, Hardgart usou suas forças para se sacudir, se desvencilhando do grande urso de ferro.

— Lute como um urso de verdade, e não como um filhote mimado!

— Não… — Filetes de sangue tingiram seus pelos de vermelho no local da mordida, e a mancha alastrou-se alguns centímetros graças à água da chuva que não dava sinais de cessar.

— Papai! — Mikken choramingava, decepcionado pelo druida quebrar sua palavra “Vai dar tudo certo”.

Diferente de antes, Hardgart não se distraiu. Então, quando Torvell avançou em sua direção e desferiu uma patada, rechaçou com outra. As patas se chocaram, a força do impacto produziu um baque forte, porém, o ferro prevaleceu sobre a carne.

As garras de Torvell rasgaram o lado esquerdo da pata direita de Hardgart. Sangue pingou na poça de lama ao ritmo dos pingos de chuva.

— Lute! Revide! — Torvell bradava, desferindo golpe atrás de golpe.

Hardgart lutou como pôde da sua maneira, mas suas esquivas não foram rápidas o bastante e, minutos depois, suas costas e costelas sofreram meia dúzia de rasgos.

O pelo que antes era pardo tornou-se metade vermelho carmesim. O chão em que minutos atrás havia terra e lama agora estava salpicado em sangue.

E o pequeno urso não aguentou mais ver seu pai sofrer. Apesar de ele não demonstrar fraqueza, estava mais do que claro que agonizava com tantos ferimentos. Seus pequenos olhos marejados voltaram-se ao ferro derretido e carbonizado.

Eu exijo que Mikken seja o primeiro, rememorou a programação da inteligência artificial que geria o comportamento do pequeno urso manco.

Não custava tentar, pois não tinha algo a perder se arriscando. Com estes pensamentos Mikken avançou contra os ursos de ferro bloqueando o caminho. Eles eram gigantes e amedrontadores, mas o pequeno sabia que não apresentava ameaça à hegemonia deles, por isso sentiu-se confiante ao passar entre dois deles.

Mas Torvell captou a movimentação em sua visão periférica.

— Impeçam o pequeno! — ordenou.

Uma dúzia de ursos negros viraram de costas, mas era tarde demais para impedir o pequeno urso de fazer sabe-se lá o que pretendia fazer.

Mikken engoliu o choro e parou diante da poça de ferro derretido, apesar da chuva incessante, o calor beirava à intolerância. Suor escorreu de seu rosto peludo, conflitando com as gotas frias de chuva.

— MATEM ELE! — Torvell berrou a plenos pulmões.

— Mas… — Hesitou o urso de ferro mais próximo do filhote.

Mikken fechou os olhos e depositou toda sua fé na amizade que cultivou com aquele druida muito engraçado, então mergulhou as patas no ferro derretido e carbonizado.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaah! — gritou em dor.

O calor escaldante pulsava nas suas quatro patas. Sentia como se estivessem queimando, prestes a torrar, a derreter. E por algum motivo que desconhecia, manteve-se forte, suportando àquela dor mesmo que ela o matasse graças a reputação alta que possuía com Ragnar.

Então abriu os olhos e viu-se em meio à poça de ferro borbulhante. As patas não doíam tanto quanto um minuto atrás.

E os olhares do santuário inteiro se voltaram a ele, um pequeno urso pardo, manco, caminhando em meio ao ferro escaldante.

Mikken sentiu uma poderosíssima energia revigorar suas forças. Então chegou o momento da verdade, a hora de levantar a pata da frente saudável e ver qual fora o dano.

Ele levantou a pata esquerda. Como era de se esperar, estava coberta em ferro líquido que escorria pelas beiradas. Algumas gotas pingaram de volta à poça. Mikken apavorou-se com o pensamento de que iria retornar com as patas queimadas após tudo aquilo.

E quando pensou nisso, uma chama brotou naquela pata. No desespero, a sacudiu na esperança de apagá-la, mas ela ganhou força, se expandiu por toda a área coberta de ferro.

Mikken entrou em desespero. O calor infernal havia retornado, e perdurou por quase um minuto, então desapareceu junto ao fogo. O ferro outrora líquido se solidificou, endurecido como aço e incrustrado na pata do animal.

Porém, quanto mais perto o ferro estava das juntas, mais maleável era, permitindo que o pequeno pudesse mover a pata com tranquilidade. Ao constatar isto, um sorriso brincalhão formou em seu rosto, e ele correu para fora da grande poça de ferro borbulhante.

— MIKKEN! — bradou seu pai.

O pequeno ficou sem entender porquê ele parecia tão zangado, mas tudo mudou quando continuou:

— Sua pata direita.

Mikken foi acometido por uma euforia. A adrenalina fluía por seu corpo. Demorou alguns segundos até assimilar a situação. Pela primeira pôde sentir a pata direita, pela primeira vez conseguiu movê-la.

O ritual de Ragnar o permitiu que pudesse viver em igualdade com seus irmãos.

***

Enquanto o Refúgio dos Ursos de Ferro vivia um momento histórico, Daniel encarava o contador piscando a penalidade em seu visor de realidade virtual.

11 horas 55 minutos e 16 segundos

Foi a primeira morte de Ragnar em Nova Avalon Online, eletrocutado ao conjurar um raio que atraiu um relâmpago.


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