Volume 1
Capítulo 8: Reencontro e desencontro
— Nervosa, Laura? — disse Surya à Laura, oferecendo-a um copo d'água.
Após entregar a gentileza, ele se sentou ao lado dela numa cadeira de plástico e abriu conversa com os professores próximos. Laura, no entanto, estava distraída observando as centenas de adultos sentados a frente do palco, aguardando o início do evento. O temido homem não estava à vista, o que só engrossava as gotas de suor da mulher, que lentamente tomava goles.
“Será que ele veio? Ele achava coisas formais assim perda de tempo, porém sempre aparecia. Pensando bem, será que vou reconhecê-lo depois de tanto tempo? Será que… ele vai me reconhecer?”
— Laura, está ouvindo? — perguntou Surya, sacudindo-a pelo ombro.
— Ah! — exclamou ela, retornando à realidade.— Eu estava viajando um pouco… desculpe.
— Você dormiu depois que eu te deixei lá? Você parece cansada — perguntou ele num preocupado, avaliando-a com a mão no queixo..
— Eu costumo dormir cedo, então eu estou um pouco cansada. Mas eu consegui dormir um pouco — “Após apagar de tanto chorar” — então, acho que vou ficar bem — disse ela, forçando um sorriso animado.
— Se você diz, tudo bem, mas ainda acho que você está tensa demais…
Ele então pensou um pouco com os braços cruzados, antes de estalar os dedos.
— O que você costuma fazer no final de semana?
— Bem… eu geralmente reviso o roteiro das aulas da segunda e depois passo o resto do tempo assistindo séries, lendo, essas coisas — respondeu ela, tomando mais um gole.
— Que tal sairmos para passear em Vitória? De carro é quase um pulo daqui — propôs ele suavemente no ouvido dela. — Saímos próximo sábado à tarde e voltamos domingo à noite. Eu conheço vários bons lugares, você vai conseguir relaxar com certeza.
“Ele está me convidando para sair?” raciocinou Laura ao observar a própria expressão inquieta no copo. “Não parece uma má ideia, e eu meio que devo ele depois de ontem. No entanto…”
O som estourado vindo do teste do microfone do diretor estapeou os tímpanos de todos no palco, recordando-os que a reunião estava para começar. Deixando o copo que derramou sobre si própria de lado, Laura sentou com as pernas juntas e pôs a mais digna máscara que conseguia. Entre os colegas a encarando com o canto dos olhos e a possível presença de Rafael metros a frente, ela passou pelo discurso como uma boneca de cera.
...
— Concluído, a combinação de nossa metodologia extenuantemente testada, nossas instalações de qualidade e nossos profissionais capacitados promoverão o ambiente perfeito para preparar seus filhos e filhas para o futuro. Isso é tudo — terminou o diretor para a plateia, que lhe concedeu uma chuva de aplausos.
Enquanto seus colegas contribuíam para o barulho, Laura suspirou com a mão no peito.
“Finalmente. É só sair de fininho e…”
— Agora teremos uma pequena confraternização no fundo do ginásio. — disse ele ao apontar para a mesa cheia de comida nos fundos. — Aproveitem a oportunidade para tirar quaisquer dúvidas que tenham com nossos educadores. Tenham uma boa noite.
“Minha fuga!” Desesperou-se Laura ao olhar ao redor. As portas ainda estavam fechadas. Notando o nervosismo da caloura, Surya forçou um sorriso no rosto dela com indicadores.
— Não se preocupe, você não precisa falar nada. Basta ficar do meu lado sorrindo assim que tudo vai ficar bem. — disse ele num tom confiante.
Surya então se ergue, oferecendo o braço para Laura. Não muito certa, mas sem melhores opções, Laura o pegou e acompanhou o homem até a multidão se formando do outro lado do ginásio com um doce sorriso falso no rosto.
Múltiplas conversas se uniam ao som de bebida e comida, que desciam junto a uma suave bossa nova de fundo. Surya adentrou o pequeno mar de pessoas de peito aberto, rapidamente iniciando e tomando o centro de diferentes diálogos vívidos.
“Ele é realmente carismático” pensou ela, ouvindo tudo como um poste.
Nisso, um grupo de homens de cabelos brancos empurrou a mulher para longe sem perceber ao se aproximar de Surya. Jogada no meio da multidão, calor de mais e ar de menos enfraqueceram suas pernas, fazendo-a tropeçar contra algo duro e quente. Atordoada, ela olhou para cima ao agarrar o apoio.
Olhos escuros como um abismo, preenchidos de malícia, a fitavam com uma indiferente seriedade.
“Eles… não brilham mais. São opacos, como se absorvessem toda a luz que vem. No entanto, não há dúvida.” Sentindo sua força escorrer pelos poros, a realidade acentuou sobre seu instável corpo, menos de um terço do porte homem.
— Rafael — murmurou ela com os olhos imóveis como se feitos de vidro, nada em sua voz fraca a não ser terror.
Não reagindo ao busto dela contra seu tronco, o homem passou a mão numa das cicatrizes do pescoço e empurrou a mulher pela testa com a outra, derrubando-a de bunda no chão.
— Ai… — grunhiu Laura ao se levantar com dificuldade.
— Laurinha? — falou ele mais para si mesmo do que para ela, uma colher de chá de surpresa na voz de densa como piche.
“Ele então se lembrou. Isso é bom ou ruim?” ponderou Laura sem tirar os olhos fixos do homem.
— Hunf! — resmungou Rafael, desviando o rosto neutro.
“Isso foi desgosto!?”
— Se soltando, Laura? — disse Surya num tom brincalhão, aproximando-se por trás.
— Surya…
Ao se virar, Laura notou a atenção que haviam chamado. Vendo Rafael olhar ao redor com fria atenção, ela ajeitou a roupa ao abrir caminho, sua gola parecem mais apertada que o usual.
— Haha, bom ver, bom ver… Amigo seu? — perguntou Surya tom relaxado.
Ele não esperou uma a resposta, porém, pondo-se medir Rafael ao se impor diante a ele.
— Fiu! Você tem uns belos músculos aí, grandalhão. Um fisiculturista? Um strongman? Luta livre, talvez? De toda forma, prazer em conhecê-lo, meu nome é…
Com o olhar longe da conversa, Rafael seguiu em frente, esbarrando na lateral do tronco em Surya antes que ele terminasse. Sem aviso, sem falar nada e sem olhar para ninguém, ele cortou a confusão aglomeração e seguiu em direção a uma das portas no momento que um faxineiro a abriu.
Após a saída do brutamonte, todos voltaram às suas atividades. Tendo acompanhado Rafael com os olhos, Laura logo relaxou os ombros com um sorriso fino no rosto.
“Ninguém se machucou…”
Com um estresse a menos, Laura se aproximou do veterano, o qual permanecia parado oferecendo a mão para o ar.
— Bem, vamos comer alguma coisa? — convidou Laura num tom mais casual — Ah, e quanto ao seu convite…
Ele, porém, saiu correndo pela mesma saída de Rafael. Reparando a expressão atônica no rosto ao fazê-lo, Laura correu, com dificuldade, atrás dele, deixando para trás um ginásio que não notou sua ausência.
…
Sob as luzes dos postes, apenas o ranger de botas de Rafael e os cantos de alguns insetos são ouvidos. Ao andar, ele olhava sem compromisso para o céu estrelado.
— Ei! Espere um momento! — Surya chamou Rafael pelas costas, traços de irritação
Com dez metros entre os dois, Rafael parou, mas não se virou. Nisso, Surya tossiu na mão para preparar a voz.
— Coaf! Entendo que tenhamos começado com o pé errado. Afinal, vocês dois estavam num amável momento lá trás, hugh. Mas deixando isso de lado, você parece não saber quem eu sou, estranhamente. — apontou ele, num tom curioso.
Ele então encheu o peito e pôs a mão no peito, continuando o discurso com o queixo erguido.
— Representando o país e a cidade nas olimpíadas em seis ocasiões distintas e em dezenas de competições desportistas nacionais e internacionais, copatrocinador de centenas de obras públicas e privadas da região, eleito uma vez homem do ano pela revista HOUR, Surya Rodrigues. Prazer em conhecer.
Terminando, ele ofereceu a mão, porém Rafael nem olhou por cima do ombro.
— Se terminou de empilhar conquistas sem valor, eu não tenho mais nada a fazer aqui. Além disso, faça o que quiser com aquela mulher. Adeus. — disse ele num tom árido.
Pela segunda vez deixado de lado, Surya transforma sua mão de comprimento em punho fortemente cerrado.
— Pode parar bem aí, seu monte de carne — ordenou ele, o sorriso amigável se corrompendo em um raivoso — Sem valor? Eu conquistei mais em trinta anos do que você vai conquistar ao longo de toda a sua vida. Tem gente que entregaria os filhos por uma única assinatura minha. Se eu mandar o prefeito lamber a sola do meu pé, ele vai fazer com gosto.
A cada palavra, seus dentes brancos atritam-se e a veia na testa ficava mais evidente. Nesse momento, a ofegante Laura chegou no local pela calçada, se escondendo atrás de um dos carros estacionados ao notar os homens.
— Eu sou um guerreiro com centenas de vitórias no bolso! Um sem nome como você não é nada! Ouviu? Nada! — proclamou espantando os pássaros próximos.
Nisso, Rafael lentamente olhou por cima do ombro, cerrando os punhos. Sua expressão não muda, mas havia irritação em seus olhos, alimentada pelo tremular da escuridão que neles habitava.
— Hahaha, agora você tem algo para fazer aqui. — Surya riu com um sorriso satisfeito.
O coração de Laura não sabia se parava ou acelerava. No que Surya assumiu uma postura de boxe “philly shell”, Rafael se virou para ele e põe um antebraço à frente como um escudo e o outro junto ao corpo como uma lança, pisando meio de lado. Laura não reconhecia aquela postura, mas já sabia seu significado.
— Surya, não lute! Ele vai te matar! — berrou Laura ao bater as mãos no carro.
Ele virou os olhos assustado para a mulher, que o encarava como se fosse um doente terminal, mas não desfez. Apesar do imprevisto, ele abriu seu usual confiante sorriso.
— Não precisa se desesperar, minha princesa— falou galantemente. — Isso não vai demorar um minu-.
— Sua frente! Cuidado!
Antes que Surya reagisse, Rafael desferiu um chute frontal de direita em seu abdômen, o forçando cinco metros para trás ao arrastar os pés no chão.
Firmando-se novamente ele encarou o oponente sem perder o sorriso.
— Pouco espírito esportivo, né? — falou ele num tom bem-humorado, engolindo o sangue que acumulou na boca num movimento da língua. “Esse poder… eu teria beijado o chão se estivesse de barriga mole. Além disso, como ele chegou tão perto sem fazer barulho algum? Ele é mais habilidoso que o esperado”.
Rafael, parado no lugar, ergue o antebraço direito até um pouco acima da altura dos ombros, chamando Sutil para cima com a cabeça. Vendo-o aberto, Surya sorriu malandramente.
“Não fique se achando só por que me acertou uma vez. Um golpe assim vai só te deixar exposto, e aí… A vitória é minha!”
Surya chutou o chão, avançado contra Rafael. No que estava para chegar nele, ele lançou um jab. No mesmo instante, porém, ele é forçado para trás por um chute frontal de esquerda, que Rafael seguiu com um chute baixo com a direita. Vendo o golpe, Surya desviou recuando um passo e seguiu devolvendo um uppercut ao voltar para cima. Rafael, porém, ancorou o tornozelo do inimigo com o pé ao puxar a perna de volta, forçando-o a abrir os braços a fim de não cair. Um simples cruzado de direita entrou contra aquela postura quebrada.
No que Surya se deu conta do ocorrido, ele já estava caindo de lado, ao encontro com um uppercut de esquerda, que terminou de detonar sua mandíbula ao mandá-lo ao ar, os pedaços de seus dentes brilhando como estrelas à luz dos postes. Com o adversário inconsciente, Rafael andou na diagonal e desferiu um standing dropkick que o alojou na carroceria do carro atrás do qual Laura se escondia.
Aterrissando suavemente com as mãos, Rafael se ergueu do chão e, sem pressa, checou a tela do celular com o alarme do carro e os prantos desesperados de Laura no fundo. Ele então resmungou ao ver o horário, fechou o aparelho e foi embora dali como se nada tivesse ocorrido, guardando-o no bolso.
Apesar da vitória, um gosto ruim persistiu em sua boca. O que estava acontecendo nas sombras, estava além do alcance de seus ouvidos.