Volume 1

Capítulo 7: O genuíno e o falso, parte 2

“Tudo que eu sempre quis foi uma vida pacífica…”

Em um parquinho, uma nuvem de poeira misturava-se a grunhidos e resmungos de dor masculinos, a melodia acompanhada por uma aberta risada infantil.

O pó abaixou aos poucos, revelando vários jovens, seus uniformes de escola pública e corpos cobertos de cortes e sujeira. Ainda consciente, um deles se arrastava por areia e farpas de madeira o mais rápido que os braços cobertos de hematomas o permitia.

Ele, porém, não vai além de um metro antes de ser agarrado e puxado para trás pelas órbitas até a coluna virar um “C”. Os gritos internos de seus ossos a ponto de estourar eram, no entanto, a menor de suas preocupações.

— Vocês estavam certos: Isso foi mesmo muito divertido! — falou uma criança bem-humorada ao retirar o viscoso cabelo preto do rosto.

Sua voz, porém, era a única prova de sua idade. Apenas pouco menor que o jovem, ele o observava com um sombrio olhar cintilante, o uniforme grudento de sangue e areia destacando os músculos encorpados, sem um arranhão no corpo.

Grunhindo a dor para fora, o jovem se debateu. Bastou, porém, um puxão mais forte para coibir.

— Não tão rápido, seu pedófilo de portão de escola. Cadê o resto de vocês? Eu quero mais. — falou a criança na orelha do jovem.

Sob o bafo daquelas palavras cheia de infatil animação, o jovem, com o rosto torto pelos hematomas e angústia, soltou:

— Pu… 

— Oh! Tem algo a dizer? — provocou a criança, esfregando o rosto sujo no do refém.

— Maldita… seja a puta… que te pariu.

Raiva, terror, esperança, tudo que o jovem guardava foi instantaneamente esmagado pelo agouro emanado pela criança, que agora o encarava com a expressão frígida. A escuridão em seus olhos, no entanto, revoltou-se.

A última coisa que o jovem sentiu foi o gelar das mãos do garoto deslizando por sua cabeça. 

Crack

O corpo do jovem caiu olhando diretamente para trás, uma das vértebras rasgando a pele. Após contemplar a arte em silêncio, a criança olhou friamente para as próprias mãos, Depois, a indiferença derreteu num largo e distorcido sorriso.

— Hahahahugh...Hahahaha! — riu ele com as mãos ao ar, como se ninguém pudesse ouvir.

Uma menina normal, porém, testemunhou o evento. Essa escondia-se, em posição fetal, atrás dos arbustos 2 metros dali. A imagem do jovem desfigurado queimou em sua memória.

“Isso, claro, não era tão fácil”.

Laura encontrava-se na enfermaria da escola, desmaiada sobre uma das macas com seu blazer dobrado ao lado. Sob a luz do ventilador de teto a atrair mariposas, ouviu-se apenas um aparelho de pressão enchendo.

Surya acompanha o trabalho de uma velhinha na casa dos oitenta de uniforme branco de enfermeira e óculos finos. A idosa examinava Laura atenciosamente com um olhar sereno.

— Como ela está, Judete? — perguntou Surya, apertando os olhos para seu relógio de pulso.

Fazia uma hora desde o desmaio e uma hora que nenhum dos dois saiu do lado de Laura.

— A pressão dela ainda está um pouco baixa, mas em geral ela está bem. Ela deve acordar logo — respondeu a idosa, guardando os aparelhos. — Entretanto, não sei dizer o que fez ela acabar assim.

— Também não faço ideia. — Ele deu ombros. — Um segundo ela estava bem e o outro parecia ter visto um fantasma.

— Huhu, um fantasma? Eu tenho uns três morando comigo lá em casa, excelentes companhias. — brincou ela, rindo de leve.

— Eu tinha um, mas ele devia 14 meses de aluguel, então o exorcizei — disse ele, entrando no ritmo. — De qualquer forma, obrigado pela ajuda e desculpe te segurar aqui até tão tarde. 

— Não precisa se desculpar, esse é meu trabalho. Falando nisso… 

A enfermeira tirou uma chave etiquetada do bolso e jogou para o homem. O arremesso saiu torto, mas ele pegou o objeto acima da cabeça sem problemas.

— Eu tenho um compromisso agora. Você poderia, por gentileza, ficar aqui até ela acordar? Caso ela se mantenha desorientada, a leve ao hospital.

— Eu já pretendia fazer isso: As ruas a essa hora são perigosas para uma mulher, então vou levá-la para casa — declarou ele em bom som, batendo o punho no peito.

— Você é realmente um homem nobre, Su. Me faz lembrar do meu marido quando ele ainda estava aqui. Até segunda, vocês dois. — Despediu-se ela num tom amoroso.

— Você me bajula. Até. — Retribuiu ele com sorriso tranquilo.

Com tudo guardado, a enfermeira foi embora, fechando  a porta atrás. Surya escutou atentamente os passos lentos da senhora sumirem aos poucos. No que não os ouvia mais, ele voltou a atenção para a Laura.

— Agora que estamos sozinhos… — começou ele, o tom mais sério.

Sem pressa, ele seguiu até atrás da cabeceira e se apoiou nas barras de metal com as mãos afastadas ao encarar o indefeso rosto de Laura de cima.

— Como coloco isso… Você não presta como professora. Desculpe, mas não tem outra forma de descrever. Você é lerda para cuidar de papelada, seus próprios alunos têm vergonha de você, sua didática me faz questionar o nome da faculdade que você fez e... — Ele estalou os dedos algumas vezes perto da orelha ao forçar a mente — Ah, você também é desastrada ao ponto de dar pena. Me faz questionar o porquê você escolheu essa profissão, faltando tanto talento.

Terminando o lento desabafo, ele se pôs a passar os olhos por cima de cada uma das curvas de Laura.

— Se bem que, retirando suas habilidades chulas, suas ideias inúteis e essa persistência infrutífera, você é uma bela mulher.Bem o meu tipo, para falar verdade…

Ele então vagarosamente faz a mão rastejar até o pescoço da mulher e dali descer para dentro da camisa, abrindo os botões um a um.

—  Eu não me importaria — continuou ele, incapaz de segurar o amplo sorriso — que você me recebesse em casa com um “Bem vindo de volta, querido! Vai querer a janta? Um banho? Ou talvez…”

— Hum… — grunhiu Laura ao se contrair.

No mesmo momento, Surya retraiu a mão e voltou a se sentar na cadeira ao lado com as pernas cruzadas, como se nunca tivesse saído dali. 

— Onde… — perguntou ela com a voz grogue, os olhos hesitando em abrir.

— Você finalmente acordou! Isso é um alívio — disse Surya, suspirando com a mão no peito. — Você nos deu um belo susto apagando daquele jeito.

— Eu… apaguei? — perguntou, agarrando a testa ao se sentar. “É tanta informação que eu não queria voltar ao mesmo tempo que nem sei pelo que pirar…” 

— Quer ajuda? Eu te deixo em casa de carro — disse Surya num tom amigável, oferecendo a mão.

Ela, com receio, segurou-a com firmeza ao sair da maca, olhando ao redor..

— Onde está minha bol-

No que ajeitava a roupa, ela se deu conta do grande decote que mostrava, os botões da camisa quase todos desabotoados. Ela se cobriu com os braços sem hesitar, ficando até zonza com todo o sangue que foi para o rosto.

— Ainda está na sala dos professores, ninguém se lembrou de pegar ela por causa da confusão — disse ele calmamente ao devolver o blazer da colega.

— Me desculpe por causar tantos problemas… — disse ela, a voz quase não saindo.

Ele então bateu de leve na mão no ombro da caloura cabisbaixa.

— Eu te falei, pode contar comigo para o que precisar. 

— Obrigada, eu acho…. Posso ir pegar minhas coisas?

— Claro, eu espero você na frente do portão de funcionários — disse ele, mostrando a chave de uma Ferrari.

Laura se despediu com a cabeça e correu para a sala dos professores ao se arrumar. Logo atrás, Surya trancou a enfermaria e seguiu na direção oposta, girando a chave no dedo indicador.

— Ela acordou rápido demais… — resmungou ele.

...

No que a maioria se aconchegava em seus lares, Surya e Laura seguiam de carro pelas quietas ruas. Laura escorava na janela com uma expressão cansada, sem olhar para nada específico. Entre o eficiente motor do carro, o asfalto bem cuidado e a própria mulher, uma quietude astral se punha entre os dois.

— Está com frio, Laura? Quer que eu aumente o ar? — perguntou Surya, notando o silêncio.

— Não, estou bem — respondeu ela sem tirar o rosto da janela.

Ao voltar para sala dos professores, ela encontrou a ficha que a fez desmaiar. Só lembrar daquilo a fez agarrar a alça da porta com mais força.

“Ele está aqui, justamente aqui, depois de 8 anos sem eu ter nem que pensar no nome dele. Não é como se ele fosse morrer fácil, mas, ainda sim, é azar demais mesmo para mim. Bem, isso explica o incômodo que eu sinto ao ouvir o nome da Anna nas chamadas, apesar de não ter muitas memórias dela. O que será que aconteceu nesse meio tempo?”

— É aqui, Laura? — perguntou Surya, puxando a caloura de volta à terra.

Do outro lado da janela, estava um condomínio de concreto pintado de verde-escuro, visivelmente antigo com a pequena casa de tijolo da proprietária ao lado. Um sorriso lento naturalmente saiu dela.

— É esse mesmo. Muito obrigada pela carona. Boa noite — agradeceu ela ao sair do carro.

— Boa noite para você também — respondeu ele com o característico sorriso. — Descanse bem para o evento de amanhã.

— Hum? Evento?

— A reunião de pais e mestres, é claro! Que foi? Esqueceu quando desmaiou?Haha — brincou ele ao acenar. — Bem, bons sonhos! 

Após a despedida, Surya deixou a mulher sozinha sob a luz de um poste, os olhos imóveis como se feitos de vidro. Devagar, ela andou até o apartamento 101. Ela entrou, fechou a porta, ignorou a luz que vinha de dentro do quarto do primo, jogou a bolsa num canto qualquer do seu quarto e desabou na cama. Na esperança que o dia seguinte não chegasse, ela chorou até dormir.






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