Volume 1

Capítulo 4: A sós - Parte 2

Após as desculpas e agradecimentos, os dois decidiram almoçar juntos. Moacir desembrulhou novamente seu sanduíche, que agora foi umedecia a boca dele, especialmente com a implicância do estômago.

No que ele ia morder, porém, ele notou Anna rezando ao seu lado, as mãos juntas e os olhos fechados. Vendo o rosto pacífico da colega, ele decidiu acompanhá-la no silêncio espiritual, juntando as palmas ao rezar. 

Pouco depois ambos abriram os olhos, e Anna revelou o conteúdo da marmita em seu colo: Uma brilhante salada de macarrão dourado com frango desfiado e um toque de vermelho vindo do tomate em cubinhos.

— Isso está com uma cara ótima. —  O frescor acariciou o olfato de Moacir no que a colega misturou a comida antes de a levar à boca.

— O seu também. Por acaso são sobras?

— Exato. A carne é uma das invenções do meu pai.

— Invenção? Ele é cozinheiro? 

— Na verdade ele é farmacêutico, mas segundo ele não há muita diferença entre manipular remédios e cozinhar… — Ele viu um grande ponto de interrogação surgir acima da cabeça da colega. — Eu não entendo bem a lógica, mas ele ama cozinhar e frequentemente inventa novos pratos. Às vezes dá certo, outras vezes… temos coisas como lula e gergelim tostados no vinagre —  explicou ele com um sorriso amarelo.

— Hi, seu pai parece legal. — Anna riu de leve ao cobrir a boca com a mão.

— Ele é. — Moacir voltou a comer, lavando as memórias traumáticas com o umami do almoço — Isso foi feito hoje? Parece fresco.

— Quer provar? 

— Posso mesmo? — encara com receio o garfo já usado enfiado em meio aos pedaços de pene.

— Claro. — confirma Ume num tom despreocupado.

— Nesse caso, obrigado.

Ele pegou a marmita em mãos ao mesmo tempo que ofereceu o sanduíche, que a colega aceitou com um sorriso. Sem mais tardar, ele se serviu uma garfada generosa. O frescor dos ingredientes martelou o paladar de Moacir, lançando um choque até a base da coluna. Ele e a quantidade quase traumática de pimenta.

Apesar da queimação, a mistura realçava o melhor de cada sabor e textura e cobriu os déficits nutricionais de cada componente. Com esforço, conteve o impulso de mandar todo o resto para dentro, mas não a expressão do julgamento em seus lábios.

— Fico feliz que gostou — comentou Anna, a própria opinião a respeito do almoço do colega manchando a boca.

— Hum, digo o mesmo. — Riu ele de leve ao oferecer um guardanapo. — Você que fez?

— Eu? Não — ela balançou a cabeça ao limpar a boca — Meu irmão acorda cedo para cozinhar. Eu geralmente contribuo com as ervas do canteiro.

— Seu irmão faz isso? A única coisa que minha irmã prepara é maneiras de me fazer passar raiva. — brincou ao devolver a marmita, pegando de volta o sanduíche com três pequenas mordidas a menos.

— Ela é mais nova?

— E bem mais energética.

Os dois riram de leve, continuando a comer. Um tempo depois, porém, Anna começou a entortar o garfo nas mãos, para as quais fixava o olhar.

— A propósito… — Moacir parou de mastigar a fim de prestar atenção. — Em relação à sua bicicleta…

— Está tudo bem, eu já a consertei. — Moacir a confortou, logo voltando a comer.

— Hum? Concertou? — Pergunta Ume inclinando a cabeça para o lado.

“Bem, não é de se estranhar: Consertar uma corrente solta por conta própria é bem diferente de consertar aquilo.” Ele passou a mão atrás da cabeça, vendo que teria que se explicar. — Eu sei mexer com metal, madeira e essas coisas por causa do meu hobby.

— Hobby? 

Vendo a curiosidade da colega apenas aumentar, ele pegou a mochila em mãos.

— É mais fácil mostrar do que falar… 

Com Anna olhando, ele abriu e começou a esvaziar o pertence. Dali saíram várias esculturas, brinquedos de corda, bonecos, mini catapultas e outros lançadores. Porcas, parafusos, placas, estacas e pregos juntavam-se para formar as elegantes figuras, cada pequeno detalhe esculpido realçado pelo cuidado com o qual o criador os colocava no chão, ajeitando suas articulações a fim de deixá-los em seu melhor estado como um pai a arrumar um filho para a escola.

— Eu passo a maior parte do meu tempo livre no ferro velho da cidade, então não falta material. Vascular sucata, polir peças, juntá-las, ve-las desmoronar as vezes… Eu posso passar, e passo, horas fazendo isso. Carregar algumas dessas obras comigo me faz sentir um pouco mais seguro, sabe? — explicou ele num tom claro e calmo, apesar do rubor nas bochechas.

Não recebendo resposta de imediato, ele se virou para a colega, antecipando uma garota só de corpo presente. O que o esperava, no entanto, era uma garota a admirar a legião de sucata pelo chão com os olhos a reluzir ainda mais que os metais. Inclinada na direção da arte, suas inquietas mãos agarravam a saia.

— Você pode tocá-los, se quiser… — Palavras escaparam pelos soltos lábios do jovem, que esqueceu de piscar diante à tanta luz

Sem se segurar mais, as mãos da jovem saltaram em direção a um passarinho de metal movido à corda.

Ela ergueu o animal próximo do rosto ao o envolver com cuidado entras as palmas, admirando o pequenino com tanta vida que não seria surpresa se o brinquedo saísse voando sozinho. Mais uma vez Moacir é incapaz de impedir a felicidade de chegar à boca.

— Você gostou mesmo deles, não é?

— Sim. Eu amo esse tipo de artesanato! — declarou Ume sem hesitar enquanto acariciava a ave metálica — Eles são lindos!

— O-Obrigado — agradeceu Keiyoku, timidamente coçando o rosto corado — Eles são bem inúteis, no entanto.

Ao ouvir aquilo Anna ergue os olhos do pássaro e o colocou no colo, juntando suas mãos. Reparando o gesto, Moacir trouxe o rosto para o dela.

— Anna? — chamou ele, perguntando-se o que ela via que motivava a expressão preocupada em seu rosto

Após alguns segundos com as firmes contra o peito, a feição dela aliviou num pequeno sorriso ao mostrar os objetos.

— Moacir, eu sei quase nada sobre você, mas me escute: Eu acredito que tudo feito de boa fé merece ao menos gratidão. Seja comida, o solo ou seu artesanato… nem que seja apenas alegrar um pouco o dia de alguém, tudo tem uma utilidade, especialmente se feito com tanta paixão. Por isso… — Por um breve momento, olhar dela desviou para o chão — não se menospreze. Você tem talento.

— Eu vou tentar. — prometeu ele com a mão no peito — Eu tenho vários outros guardados no ferro velho que mencionei. Se quiser, posso te levar lá um dia. 

— Eu adoraria — respondeu ela com calmo entusiasmo, pegando de volta o pássaro em mãos.

No que a promessa foi carimbada pelas partes, o sinal da escola gritou, pegando-os desprevinidos. 

— O sinal! — Moacir se pôs a guardar as obras o mais rápido que podia sem danificá-las.

— Eu ajudo! 

Os pares de mãos logo colocaram a mochila cheia nas costas de Moacir e o que sobrava do almoço  nos estômagos. Antes, porém, de saírem correndo para as salas havia mais um assunto a ser resolvido:

— Obrigado de novo — agradeceu enquanto limpava a poeira das roupas. — A propósito, minha apresentação lá na sala não foi das melhores, então vou repetir: Meu nome é Moacir Palmeira, mas pode me chamar só de Acir. 

— Eu sou Anna Alvares do Semeador, mas só Anna está bom. Prazer em conhecê-lo — comprimentou ela de volta, o astral bem melhor do que da última vez.

— O prazer é todo meu. Agora vamos! — chamou ele num tom animado ao tomar dianteira.

— Sim! — Ela apressou o passo para segui-lo.

Assim, um novo início para aquela etapa em suas vidas foi criado, e ao menos uma certeza os apoiava: Eles não passariam por ela sozinhos.







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