Volume 1

Capítulo 12: Fenômeno

Apesar do ácido cheiro de suor residual, o ambiente logo adquire um clima mais feminino.

As garotas aproveitavam o tempo para trocar novidades, planejar o que fariam pela semana, consolar e buscar consolo diante a evidência do seu crescimento (ou a falta dele), cultivar raciocínios pessoais ou apenas descansar. Seja como fosse, a maioria dos olhos brilhavam em vida e seus mais diversos rostos carregavam, cada um, um tipo próprio de beleza. Uma dessas, uma angelical reluzente, se encontrava ao mesmo tempo pensativa e dispersa.

— Anna, é sua vez tomar as medidas. — chamou Laura num tom cansado — Anna?

— Ah! Sim,estou indo — respondeu Anna, tendo a atenção puxada de volta ao presente.

Ela logo entrou no cubículo de biombos e subiu na balança. Enquanto a professora ajeitava o estadiômetro, a mente da garota voltou a viajar.

“A situação deve estar piorando. É melhor procurá-lo assim que acabar aqui” Decidiu Anna, soltando uma silenciosa prece ao apertar as mãos mais forte contra o peito. 

— Agora vamos medir o busto — disse Laura ao esticar a fita métrica.

Não tão discretamente, ela alternava a atenção com os peitos da aluna e a expressão preocupada dela, que não percebia o quanto a postura os realçava.

— Estão vendo aquilo? Aposto 10 reais dá 90 — disse uma jovem de pele escura para as amigas num tom implicante.

O trio, no qual a jovem de marias chiquinhas pretas e luzes cinzas estava no meio, fazia questão que o “assunto” escutasse a discussão. A garota morena de mechas loiras ao lago então enquadrou Anna entre os dedos.

— Não sei, eles parecem menores para mim. Eu boto 15 reais em 85 — opinou ela, mal segurando o riso nas bochechas estufadas.

— Hunf! É uma ilusão óptica! Não passa dos 80, 20 reais — retrucou uma jovem clara de tranças pretas, encarando Anna com o canto dos olhos apertados.

— Você sempre joga essas coisas para baixo, por que será, hein? — comentou a líder com um sorriso zombeteiro ao abraçar a forte amiga.

— Cala a boca — respondeu a jovem, mantendo o rosto emburrado.

Ela, porém, não se afastou do gesto apesar da “pressão” contra ela. As duas companheiras riram juntas abertamente.

— Vocês poderiam, sabe, não colocar apostas no meu corpo?  — Anna se pronuncia sem olhar para elas num tom calmo mas com as bochechas vermelhas.

Ela perguntou se era assim que uma vaca a leilão se sentia.

— Hihihi, estamos só brincando, Aninha. Não se preocupe — disse a líder, abanando o pedido com a mão — A propósito, eu sou…

— Parem de atrapalhar o exame — ordenou a professora com vestido de vinhas para a aluna estufando o largo peito.

— Guya! — Emitiu o trio ao se juntarem num trêmulo abraço sobre o olhar regulador da professora.

Anna dirigiu um momentâneo sorriso para a educadora antes de voltar-se para Laura. Sem ter como escapar daquilo, ela suspirou ao enfiar o braço por dentro da camisa, tirando por ali um sutiã florido, cujo tamanho alarmou alguns jovens que espiavam. Deixando a peça de lado, ela arrancou a camisa de baixo para cima num só puxão.

Em geral seu corpo não chamava muita atenção, sendo magra mas longe de ser atlética ou sexy. O que estava acima do abdômen, no entanto…

Um poeta habilidoso poderia gastar a Amazônia em papel descrevendo e não se daria por satisfeito, procurando palavras em outras línguas. No entanto, Anna já estava constrangida o bastante. 

Sendo simples: Eles eram bem grandes e bem redondos. O jeito que ela o segurava com os braços para cobrir os mamilos apenas salientava aquilo.

— Oh… — proferiu Laura, perdendo parte do equilíbrio quando os montes caem.

— Oh… — proferiu o resto da plateia em coral.

Com o resultado da aposta definido, a garota de tranças cutucou a líder na bochecha, que travará no abraço com a boca semi aberta.

— Você é uma mulher 45 reais mais rica agora. Está feliz, Maria?

— Honestamente? Eu não tenho certeza — afirma ela num tom poético, olhando para a luz.

Sob os holofotes, Anna se destacava cada vez mais contra os panos brancos dos biombos.

— Professora… você pode se apressar, por favor? — pediu ela, espremendo as palavras.

— Ah! Desculpa! — disse Laura ao voltar ao trabalho.

Após suspirar de braços cruzados, a professora mais velha afastou as curiosas e assim o exame continuou. Enquanto isso, as sementes de um incidente mais sério estavam para germinar.

— É isso, rapazes.Mais um pouco e teremos o tempo de nossas vidas! — disse Vitor vigorosamente para os membros da operação.

Organizados em frente à entrada secreta, os jovens empunhavam os equipamentos. Apesar das finas trepidações, ninguém saiu da linha sob o duro olhar dos veteranos e dos colegas mais valentes.

— Muito bem. Vamos! — chamou Vitor ao adentrar o palco do ginásio.

Assim, os alunos os seguiram em duplas, uma de cada vez. Thomas, porém, parou ao pôr o pé dentro, olhando pensativo para baixo ao morder os lábios. Nisso André bateu em suas costas, mantendo o olhar decidido para o breu ao avançar.

Ele então ergueu o rosto, deu alguns tapinhas na bochecha e voltou a andar, seguindo o companheiro em meio à escuridão.

Enquanto as garotas passavam pelo exame físico e os garotos a espiavam, Moacir seguia a passos moribundos em direção a enfermaria, apoiando a mão nas beiradas das janelas abertas dos quase desertos corredores.

Com um olhar vazio encarava o chão e os fracos ventos vindos de fora retiravam-lhe o equilíbrio. 

“Elas estão sendo violadas porque falhei. Eles estão a violando porque sou um fracasso.” 

Clicando a negatividade em sua cabeça, ele escorregou a mão e fraquejou. Ao levantar, ele olhou para fora. Era o segundo andar e as pedras do calçado do jardim pareciam duras.

— Me pergunto o quão alto é aqui… — comentou Moacir como se fora do próprio corpo.

Sem energia para levar além o raciocínio, Ele suspirou, apoiando a mão junto a coxa para se firmar.

Nisso, ele sentiu algo duro em seu bolso.

— Hum? 

Ao checar, ele tirou dali a bala que Anna o deu, debaixo do lenço da professora. O tato do doce refrescou o gesto gentil em sua memória.

— Anna… — murmurou Moacir, apertando a mão fechada com a bala contra o rosto distorcido.

Comparado a como estava, aquilo era quase um sonho. Nisso um fragmento da lembrança voltou aos seus ouvidos.

— “Estou fazendo isso porque quero”. Porque quero…

Recordando a frase solta, ele tropeçou numa revelação.

— É isso! Eu estava tão focado no que devia fazer que esqueci o que eu quero fazer  — declarou ele consigo próprio ao cerrar a mão com força ao redor da bala — Eu não quero que elas sejam violadas por eles, ponto.

Tomando sua decisão, Moacir desembrulhou e jogou a bala na boca, dando meia volta ao guardar o papel e o lenço. A quantidade de açúcar era ínfima, mas a fornalha do jovem transbordava em chamas.

Com olhar penetrante em frente, ele voltou correndo para o ginásio. 

...

— Ah! Que tédio! — bocejou penosamente um garoto do 2° ano com cabelo preto tipo tigela.

O guarda estava escorado na parede ao lado da entrada, passando um rádio comunicador de uma mão para outra despretensiosamente.

A Operação Paraíso encontrava- se em plena fase efetiva, com os membros revezando para fazer as capturas em uma área preestabelecida.

— Olha só aqueles melões! Aquela polpa também não é nada mal… — cochichou um dos jovens, batendo fotos em rápida sucessão.

— Valeu a pena pagar caro nessas coisas, dá para vez por entre os panos do outro lado do ginásio!

— É meio difícil pegar uma boa imagens dos pés,no entanto…

— Que? — soltaram vários dali em um abismado uníssono.

Enquanto isso, tudo que o guarda via era a floresta do outro lado da grade, bem diferente do que imaginou ao aceitar participar do esquema. Ele chutou um formigueiro próximo.

— Tsk! É bom mesmo que eu receba as melhores fotos, senão denunciar anonimamente esses caras. Bem, pelos menos vou poder aliviar bem essa raiva hoje a noi-

Nesse momento, ele foi atingido por uma incorpórea nevasca e eu rosto sudoreico foi puxado na direção da sensação. Um homem gigante com uma cicatriz enorme cortando o rosto  o encarava a menos de cinco metros. A mente tomada pela escuridão tremulante sobre ele, o jovem, sem respirar, ergue o aparelho até a boca.

Ele piscou e nisso Rafael agarrou sua face e bateu sua nuca na parede, da qual deslizou para o chão, rachaduras deixadas no lugar do impacto. O som seco não foi ouvido pelos outros membros da operação devido ao barulho do exame físico.

Confirmando que o aluno estava com sangue saindo pelos ouvidos, Rafael o deixou de lado para examinar a entrada. Vindo de dentro, ele ouviu a respiração e os batimentos acelerados dos jovens. Mantendo uma expressão indiferente, ele agachou-se e adentrou o interior do palco.

Não tardou para ele ver os garotos agrupados em uma região da frente do palco. Com a presença oculta, ele manobrou suavemente por entre os pilares de madeira que sustentavam o palco, encurtando a distância aos poucos. As baratas e ratos, residentes do breu, fugiram ao senti-lo. 

Então, com a mesma calma com a qual se carregava um morteiro, ele focou em um ponto além do aglomerado e ergueu o braço direito, puxando-o para trás em um formato de gancho ao tensionar os membros inferiores.

Nesse momento, Vitor e seu subordinado voltam para trás do grupo, checando os frutos do plano nas telas do equipamento com sorrisos satisfeitos nos rostos. O subordinado então ergueu o rosto a fim de checar o caminho de volta e viu os contornos monstruosos na escuridão.

Uma sirene disparou em seu interior e ele imediatamente largou a filmadora e saltou para lado,  derrubando o líder junto com si para fora da investida de Rafael.

Quando o estrondo das pernas dele chutando o chão chegou aos ouvidos dos membros da operação um pesado lariat  se encaixou no agregado como se fosse uma única grande massa de carne e osso, forçando-a para frente com pura força física.

No ponto de vista das jovens, num segundo tudo estava normal, e no outro a parte da frente do palco explodiu espontaneamente. Detritos de madeira, plástico, vidro, além dos jovens, caem sobre os biombos, por pouco errando as presentes.

— Para a parede! Todo mundo! — gritou valentemente a professora de vestido de vinhas, guiando os alunos com o braço.

— Po-po-po-por aqui! Vem comigo… — disse Akihana enquanto tremulamente ajudava algumas alunas a se levantar

Todas eventualmente chegam até a aglomeração junto a parede, auxiliando a idosa enfermeira da escola a fazer o mesmo. Retiradas do perigo imediato, todas olham ao redor, tentando fazer sentido do que acontecia.

Uma grande nuvem de poeira as impedia de ver o que se passava do outro lado. De lá, elas ouvem vários gemidos de dor masculinos. Com dúvidas empilhando, elas decidiram esperar a poeira baixar. No entanto…

— Ei, gente… As janelas estão abertas, não estão? — pergunta a veterana de tranças para as colegas, limpando os óculos de mal jeito — Então por que a poeira não está sendo soprada pelo vento?

De fato, elas sentiam a agradável brisa do verão austral em suas bochechas, mas a poeira a sua frente não podia se importar menos, não apenas permanecendo em suspensão mas também ficando mais alta e grossa como argila sendo moldada.

Várias jovens mais trêmulas juntaram-se em grupos, apertando as roupas e as unhas diante ao inexplicável fenômeno. Maria pôs as amigas encolhidas atrás dela, encarando o muro de cabeça erguida.

— Que droga está acontecendo aqui? — disse ela à poeira num tom irritado. — Anna, vem pra cá também! Anna?

Ela não respondeu, permanecendo a encarar a poeira, aproximando-se a passos trêmulos

— Por favor Deus, que não seja o que eu estou pensando… — murmurou Anna num tom de negação ao juntar as mãos. 

Em poucos momentos, seus olhos arregalam-se a ponto de ficarem vermelhos.

Do outro lado, Rafael se revelou aos rapazes, erguendo-se em meio ao grande buraco que abriu no palco. Sua mão esquerda semiaberta apontava para o muro de poeira enquanto ele varria o interior do lugar com um olhar sombrio. Todos os jovens estavam conscientes, mas incapazes de se mover, seja pelo choque mental ou medular. Terminando de quantificar os alvos ele deu o primeiro passo para dentro do ginásio.

O encostar da bota com o solo foi perfeitamente silencioso, mas toda criatura viva dentre aquelas quatro paredes perceberam algo malicioso invadindo seus corpos. Sem espaço para aquela energia, algo precisa sair.

A veterana de tranças vomitou o almoço, caindo de quatro no chão e assustando as colegas próximas. Em consonância, outras alunas com saúde frágil passam mal, vomitando, perdendo o ar, desmaiando, coçando as erupções que eclodem em sua pele ou caindo no chão com os intestinos dobrando em si mesmos. Suas amigas e colegas movem-se para ajudá-las, as funcionárias e as jovens mais corajosas fazendo o que podiam para conter o pânico.

“É ele!” deduziram Anna e Laura em sintonia, pregadas eretas no lugar com o coração quase arrebentando o peito.

Rafael continua a andar em passos mudos, vendo alguns dos garotos adoecendo apenas com sua presença, um deles sofrendo uma convulsão. Ele então parou junto a um jovem de aparência atlética que tossia sangue. Como se diante de uma barata desesperadamente sacudindo as patas de ponta cabeça após a primeira chinelada, ele ergue sua grande bota e pisou com tudo no quadril da pessoa aos seus pés.

O som de ossos, músculos e articulações sendo esmagados como isopor é abafado pelo visceral grito de dor proferido pelo jovem. O exclamar horripilante ressoa nos ouvidos de todas, elevando a agitação em mais um degrau. Logo mais gritos igualmente agonizantes vêm do outro lado do muro, um após o outro, acompanhados dos mesmos sons viscerais.

— São alunos do outro lado! — gritou alarmada a professora do vestido de ramas ao disparar na direção das vozes.

— Yasmin! Não! — gritou Laura ao agarrar a colega pelos flancos.

Foi tarde demais. No instante em que os dedos da professora tocam na poeira Rafael  pegou um pedaço de madeira de meio metro e o arremessou, sem olhar, na direção de Yasmin antes de voltar a quebrar um braço.

Isso durou um segundo e terminou com a mulher sendo empalada do abdômen até as costas. A mulher se contraiu em aflição, sem conseguir puxar o ar. Sua novata, dá uma olhada na mão que a segurava. Ela estava inteira, mas coberta de sangue vivo. Ambas caem inconscientes no chão servindo como nutriente final para fazer brotar o caos.

Um coral aterrorizado cantou à capela o decaimento da esperança enquanto as cantoras corriam para todos os lados ou caiam de joelhos ao cobrir a cabeça quando não apenas caiam inertes.

— Merda, merda, merda! Eu falei que era melhor faltar hoje! — exclamou Maria ao cuidar das amigas mal despertas — Anna! Sai daí!

Ela, porém, não respondeu. Com uma amiga quase afogando em vômito e a outra recitando pedidos de morte, Maria logo percebeu que o problema estava em outro patamar.

— Anna? — perguntou ela, o olhar assustado sendo realçado pela maquiagem derretida pelo suor escorrendo pelo rosto.

A jovem hiperventilar sem pausa, tremendo como se imersa em gelo. A pele pálida gruda nas roupas e suas pupilas dilatam ao máximo para absorver tudo nos olhos desfocados. Ela apertava as mãos em reza contra o externo com força o bastante para machucar a pele, mas tudo que isso fez é reforçar que aquilo não era apenas um pesadelo.

A noção do tempo se perdeu.



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