Volume 1
Capítulo 10: Brainstorming
“O que eu devo fazer?” questionou-se Moacir ao vento.
Uma brisa indiferente o respondeu acariciando seu rosto.
Sentado no todo do lance das escadas de incêndio ele apertava o curativo testa, seu estômago cutuca com força suas entranhas. Moacir tolerou as duas dores.
Horas se passaram depois que descobriu sobre a operação paraíso, cujo início se aproximava.
“A Anna ainda não apareceu, mas isso é até bom: Não sei se consigo encará-la agora.”
Durante esse tempo, muitas possíveis respostas apareceram, mas todas falharam ainda no rascunho, resultando numa grande pilha mental de papel amassado que só servia para ser ateado fogo.
— Por que as coisas chegaram a esse ponto? — pergunta-se Moacir, com uma expressão melancólica. — Quem estou querendo enganar. Se eu fosse um gato a curiosidade já teria me matado…
Ele então suspirou profundamente e seguiu a pensar. Nisso, ele pegou dois bonecos de sucata, uma ovelha e um lobo, e os pôs ao seu lado junto a uma caixinha de porcas.
— Vejamos. O que minha mãe faria… Ela simplesmente abriria a cabeça deles com o cassetete e os espremeria no furgão — afirmou com uma infeliz ausência de dúvida na voz. — A primeira parte seria difícil, mas não impossível. Se desse para resolver isso sendo surrado seria ótimo…
As palavras de André voltaram a Moacir: “Ele não tem direito de fazer algo”. Chacoalhando a cabeça, ele voltou a atenção aos bonecos. Cuidadosamente, ele despejou mais algumas porcas na caixinha.
— Se os garotos tiverem sucesso, as garotas serão violadas. Isso acontece mesmo se elas não souberem, mas se eu intervir com o plano, eles vão saber que fui eu. Mas essa proporção está correta? — questionou apoiando o queixo no dorso dos dedos.
Após deliberar por algum momento, uma pequena fagulha tomou o filamento sobre sua cabeça.Com os dedos relachando, ele começou a retirar as pecinhas da caixa.
— Mas se eu deixar eles fazerem o quiserem, não vou precisar me importar com Hiroshi, então é só ajudá-las outras vezes depois para…
Ele parou subitamente. Um sabor podre o encheu do estômago até as narinas jogarem em pé.
— O que estou pensando? Ah!
O tinir das dezenas de porcas acompanhou sua fúria ao serem arremessadas escada a baixa. Ensurdecido pelo próprio coração ele começou a bater na própria cabeça no mesmo ritmo que ele.
O gosto não indo embora, ele socou até que algo o agarrou firme pelo braço.
— Me deixe em p- — disparou ele ao virar para o restritor, sangue descendo pelo lado da cabeça.
Pequenas mãos pálidas o seguravam e grandes olhos azuis o encaravam trêmulos. Ainda assim eles não desviam seu brilho gentil. O pavio do canhão apontado para a garota apagou instantaneamente.
— Anna… Desculpe por ter que ver… isso… — disse ele ao desviar o olhar, abrindo o punho sangrento.
O corpo amolecido sentou-se de ombros caídos, sentindo a alma corroer. Anna, porém, mantém segurando seu braço, a tensão no rosto de escalando com o pedido de desculpas. Ela então se sentou na escada, deixando os brinquedos entre os dois.
— Eles são bonitos — elogiou ela num tom calmo.
Os cantos da boca de Moacir ameaçaram subir, mas foram logo vencidos pela gravidade. Nisso, Anna escorregou de suas mãos para as do amigo. No que suas peles encostam, uma onda de serenidade se espalhou pelo seu corpo, do cerne para a superfície.
“Essa sensação… É a mesma daquele dia. Não sinto dor, mesmo ainda notando a ferida. É tão estranho, mas é bom. Isso é outro poder dela?” pensou ele lentamente, levando a expressão surpresa para Anna.
Vendo que ela parecia se concentrar em suas mãos com certa tristeza, sem se importar com o sangue, ele se conteve em perguntar.
— Você está sofrendo, não está? — perguntou Anna num tom ameno, mas certo — É como se algo atritasse se dentro de você. Por favor, me conte. Eu quero ajudar.
Ele estava sem resposta. Ela acabara de dizer na cara dele exatamente o que ele sentia. Ele não sabia, porém se ficava mais surpreso por ser lido como um livro ou pela pura benevolência da pergunta.
“Não é só curiosidade: Ela realmente se importa. Como que eu minto para alguém assim, ainda uma vítima do que vai acontecer?” perguntou ele sentindo o empático aperto da amiga, seu aperto visível na contração de seu rosto. Apesar disso, ele apertou de volta as mãos dela com a mesma leveza.
— Anna, eu… — forçou a cabeça a erguer — Imagine que alguém que você não necessariamente gosta ou odeia, mas tem uma história com, planeja fazer algo muito ruim, para os outros e para si próprio. Você não só sabe disso, mas pode impedir. Porém, por causa dessa história, você tem uma dívida imensurável com ele, uma que poderia ser aliviada ao deixá-lo seguir seu caminho. Nessa situação, o que você faria? E- Quer dizer, você teria o direito de fazer algo a respeito?
Após contar tudo e nada ao mesmo, Moacir notou primeiro o quão abertos os olhos dela ficaram. Depois, o quanto eles desviam dos dele ao soltá-lo, fazendo o ferimento voltar a latejar. Ignorando a própria dor, ele reparou no doloroso sorriso que ela lhe mostrava.
— Eu também queria saber… — afirmou ela, voltando os olhos para a dupla de metal no chão.
Vendo-a cair em conflituosos pensamentos, Moacir engoliu as lágrimas que ameaçavam sair e olhou para a mão.
“Todos têm seus problemas, não é? Pelo menos não estou sozinho nesse sentido.” Lembrou ele ao limpar o sangue com pano que trouxera.
— Muito obrigado por conversar comigo, Anna. Estou melhor agora. — vocalizou ele, respirando com mais tranquilidade.
Recebendo aquelas palavras, a energia de Anna , energizando um brilhante sorriso, o qual foi copiado pelo companheiro. O melhorado clima entre os dois foi então interrompido pelo indelicado sinal da escola. A bolha estourada, os dois logo começaram a arrumar seus pertences.
— Oh, parece que é hora de voltarmos — comentou, levemente corado.
— Verdade — disse ela, olhando preocupada para a marmita de Moacir — Você comeu?
— Acabou que não — responde Moacir com a mão atrás da cabeça, rindo sem jeito — Vou dar algumas mordidas no intervalo entre as aulas, não se preocupe.
— Entendi.
Ela então uma bala de hortelã genérica do bolso e a ofereceu ao amigo.
— Aqui, peguei no consultório que fui hoje de manhã. Eu almocei antes de vir — continuou ela, relaxada.
— Ah, mistério resolvido. Obrigado. — Agradeceu num tom brincalhão Pode ir na frente, eu vou limpar a bagunça aqui.
Apesar da melhora de seu humor, as consequências do seu chilique continuavam cintilando degraus abaixo.
— Não, tudo bem. Eu te ajudo — disse Anna, agachando-se para pegar os animais de metal no chão.
— Tem certeza? Tem muitas porcas para catar…
— Claro — respondeu ela sem hesitar. — Estou fazendo isso porque eu quero.
“Apesar de eu achar que você já fez o bastante” pensou Moacir, apertando a nuca com um pouco mais de força.
— Obrigado — agradeceu ele com um pequeno sorriso, deixando o desconforto no canto por hora.
Nisso, os dois botam os brinquedos de volta na mochila de Moacir e descem os degraus. Enquanto catava as porcas, Moacir se deixou distrair pela pacífica expressão de Anna a trabalhar.
“Não estou nem perto de uma resposta, mas pelo menos posso voltar a pensar com um pouco de clareza” conclui ele, dissolvendo-se no momento.
— Ah! — Emitiu Anna, virando-se para Moacir num tom mais ríspido, mas caloroso — É melhor pedir para enfermeira fazer outro curativo depois. E, mais importante, não se agrida mais, por favor.
— Eu prometo que não vou mais fazer isso, não se preocupe — jurou Moacir com a palma junto ao peito ao olhá-la nos olhos.
A leve raiva em suas feições se desfaz ao aceitar a promessa com a cabeça. Os dois chegam à sala de aula atrasados vários bons minutos.
…
Após quase uma hora de trocadilhos sobre hieróglifos, a sala de Moacir jazia num estado entre um torpor e um coma.
— Atenção, turma. Atenção! — chamou Laura, despertando a maior parte dos alunos — Como vocês já devem saber, hoje será realizado o exame físico da escola.
Entre neutralidade, antecipação, irritação e insegurança em relação ao exame, Moacir tendia para o estresse. Horas e canelones depois, seu brainstorming apenas sujou as páginas do caderno.
— Primeiro serão os garotos, que deverão se trocar nos vestiários. As garotas terão aula livre enquanto isso, e depois os as coisas invertem — continuou ela num tom tranquilo.
Sentindo que faltava algo, ela então bateu palmas e sorriu tortamente para a classe.
— Boa sorte.
A sala é acertada em cheio pela onda de vergonha alheia.
“Não é como se fôssemos para lá ganhar algo” pensou a maioria.
Anna e alguns outros alunos apenas sorriem constrangidos, aceitando o apoio. Moacir, por sua vez, discretamente encarou Yudi do outro lado da sala. Seus olhos se encontram e, em sincronia, voltam-se para Laura, disfarçando. Boa sorte: Algo que ambos precisam.
Apertando com força a alça da bolsa de educação física, Moacir levantou-se junto aos outros garotos e seguiu para fora sem olhar para a cara vermelha da professora, que a escondia atrás de um envelope.
— Hum, Moacir… — ela o chama, estendendo o envelope ao olhar para o lado.
Distraído pelos pensamentos, ele o pegou sem pensar.
— Pode levar isso para o diretor, por favor? Desculpe por depender tanto de você — ela pede, com voz fraca.
Ele aceitou com a cabeça e saiu em direção à sala do diretor, matutando com uma expressão séria enquanto Yudi o vigiava disfarçadamente por cima dos ombros.
...
Moacir logo chegou na sala do diretor, ainda sem encontrar uma resposta. Ele bateu na robusta porta de madeira, sustentando uma expressão estressada.
— Pode entrar — respondeu o diretor apressadamente.
Moacir abriu a porta. A sala era pequena, porém aconchegante. Estantes de livros de um lado e várias fotos, as primeiras preto e branco e as outras coloridas, emolduradas de homens no outro. No chão, um tapete grande de veludo vermelho vivo e no teto uma luminária antiga À frente estava uma mesa de cedro-rosa entalhada com colunas coríntias nas extremidades, sobre a qual uma papelada repousava.
Sentado numa ampla cadeira acolchoada, o diretor falava no celular com as duas grandes mãos. Seu terno branco encaixava justo no corpo cheio, realçando a careca brilhante que expunha sem medo.
— Quanto tempo ele… Entendo… — falou o homem ao mexer na apertada gola. — Sim, eu irei visitá-lo amanhã. Obrigado, doutor. — com um tom preocupado, ele desligou.
Notando Moacir, ele girou a cadeira para apresentá-lo um sorriso profissional, nem que um pouco duro.
— Boa tarde, caro estudante. O que o trás aqui? — perguntou ele, passando a mão na barba rala e acinzentada.
— Boa tarde, diretor. A Laura pediu para entregar isso ao senhor — responde Moacir, estendendo o envelope.
— Ah, o relatório! — exaltou o diretor ao pegar o envelope em mãos — Já estava na hora.
O homem retirou um bloco de folhas grampeadas de dentro e passou o olho, relaxando um pouco na cadeira. Após confirmar o conteúdo ele voltou a atenção ao aluno.
— Você é o representante de turma da sua classe, o…
— Moacir Palmeira. — O aluno terminou a pergunta por ele, olhando com um olhar vago para as estantes — E eu não sou. Nossa turma ainda não elegeu um representante, na verdade.
Perdendo a postura convidativa, o diretor logo se apoiou com um braço na mesa e começou a folhear os papéis burocráticos com a cara fechada.
— Ainda não? A maioria das outras turmas já escolheram. Diga a ela para se apressar, por gentileza. — disse ele, o tom ameno quase rachando.
— Vou dizer.
— Ótimo. Está dispensado.
Ciente que não era mais bem vindo por experiência, Moacir se despediu com a cabeça e foi para porta. Quando pôs a mão na maçaneta, porém, os murmúrios do diretor chegam até ele.
— Não bastava ter a mesma cara daquela mulher, tem que emoldurar a mesma atitude desagradável. Que coisa...
O diretor pretendia que ele ouvisse ou foi um acidente? De qualquer forma, ele apoiou a testa na porta e fechou os olhos com força e ao botar a mão sobre a franja antes de deixar o diretor sozinho.