Volume 1

Capítulo 1: O fim do dia

Horas após o incidente, Moacir chegou numa casa no meio do distrito residencial. Sem a bicicleta ao lado, ele lançou um breve olhar pensativo na residência de dois andares antes de limpar as solas dos tênis no tapete da entrada e entrar.

— Quase nove da noite. Por pouco não perco o toque de recolher — murmurou ao checar o celular.

Ele então guardou o chapéu no porta-chapéus ao lado antes de adentrar a sala de estar, da qual gritos tipo “Iá!” vinham. Ali encontrou Tainá sentada de ponta cabeça no sofá, assistindo TV ao balançar animadamente os pés descalços para fora no móvel, cheirando à amarílis. Encarando a forma viva da palavra “deboche”, ele agarra o pé da garota. 

Ela se puxou para cima numa só contração do tronco.

— Ih! Tira essa mão gelada, fantasma! — protestou Tainá, agarrando o peito.

— Boa noite para você também. — Moarcir a cumprimentou num tom sério, soltando-a. — Você sabe que nossa mãe não gosta que comamos no sofá, não sabe? — A evidência marrom estava à vista nos lábios e dedos da garota.

— Disse aquele fedendo à solda — respondeu ela, abanado o cheio ao rolar os olhos.

Ela logo se puxou de forma se sentar no encosto. Agora mais alta que Moacir, ela joga o cabelo solto para o lado com a mão sorrindo de queixo erguido.

 — É aquilo — prossegui ela — Basta limpar tudo antes que ela chegue e podemos fazer o que…

— Antes de quem chegar? — Uma voz firme abocanhou a atenção deles.

Num reflexo medular Moacir se virou. Como os pelos eriçados já sabiam, uma mulher morena, alta e corpulenta vestida num pesado traje de polícia preto estava ali a os encarar.

— Mãe… — murmurou Moacir pelos lábios duros, pregado no lugar junto a irmã.

Sem tirar o intenso olhar dos filhos, a mulher guarda a boina no porta chapéus e se aproxima, rangendo o chão com o peso do equipamento.

— Antes de quem chegar? —  Ela repetiu, pondo mãos nos quadris armados.

Ao apertar os olhos, a singularidade deles se destacou. Suas írises castanhas claras eram anisocorias, com um terço parecendo faltar. Nesse espaço ardia um vermelho sangue.

— Ah… bem… sabe…— gaguejou Taina, os olhos tentando escapar. Pressionada, ela agarrou o irmão pelo cabelo — Foi ele que teve a ideia!

— Que!? Sua... — Ele a agarrou de volta, puxando com força.

— Ai! Já falei para tirar a mão de mim!

— Chega, os dois! — exclamou imponente a mulher ao bater a bota no chão, transformando a briga num abraço tenso — Eu cansei de dizer que não isso de “interpretação” das regras desta casa: Não é não e ponto! Além disso…

— Acalme-se, Ju. — Um tranquilo pedido vem da cozinha. — Esse é o último dia de férias deles. Por que não deixar eles aproveitarem?

Junto a bancada da cozinha jazia um homem asiático esguio de cabelo marrom longo, liso e naturalmente desarrumado, vestindo com roupas simples e um avental vermelho. Sem parar de mexer o conteúdo de uma panela soltando vapor, ele se virou. Um sereno sorrisinho no rosto, um par de óculos com lentes retangulares, cujo reflexo escondia seus olhos, e a frase “The king of the kitchen” estampado em letras capitais na peça de roupa resumia o homem. Vendo aquilo, mulher espremeu a testa com os dedos.

 — An Chao. Você é um dos motivos deles não aprenderem… Você é muito brando! E eu já falei para não me chamar de “Ju” na frente dos outros! 

 — É mesmo, amor? — disse An ao erguer o queixo de forma que o reflexo da luz saía das lentes, revelando os charmosos olhos castanho-escuros. — Moacir, vá tomar um banho. O jantar está quase pronto. — pede ele num tom gentil.

 — Sim, pai — respondeu Moacir, mais calmo.

Ele logo pediu licença com a cabeça para subir as escadas, Tainá seguindo-o ao murmurar música animada. Antes que pisasse na escada, porém, a mãe pôs a mão no ombro da garota.

— Eh? 

— Não me venha com “eh” — disse a mulher, o afinco no olhar fazendo a filha suar  — A ordem foi só para ele.

No que a garota estendeu os braços para guinchar por ajuda, Moacir já sairá de vista, deixado para trás apenas uma silenciosa e distante prece.

(...)

A água fria do chuveiro escorria pelo magro mas forte corpo de Moacir, seus largos ombros destacando-se. Enquanto ensaboava o cabelo com as mãos calejadas os eventos do dia retornam à mente.

A força do homem contra o corpo marcado por poucas cicatrizes, a deslumbrante beleza da garota, o contraste entre o temor e a paz que o par o infundiu e a expressão receosa da garota ao ir embora. Essa, somada ao ferimento no braço dela, o fez fechar os olhos com força e bater a testa na parede.

— Por favor, que não fique uma marca… — pediu ele para quaisquer deuses que estivessem ouvindo.

Incerto da eficácia daquilo, ele logo terminou o banho, vestiu um pijama e foi se juntar à mesa de jantar, sentando-se ao lado da irmã, largada na cadeira com a expressão de um cadáver ao olhar para o nada. Com a família reunida, An pôs a mão na tampa da travessa.

— E… Tadá! — Ele revelou o prato principal:  Assado de pernil porco na manteiga com arroz de brócolis.

O adocicado aroma da manteiga misturou-se a da macia carne, ambos complementados pelo brilho do firme arroz a realçou a vitalidade dos brócolis. Ressuscitada pelo baque de sensações, Tainá se debruça para frente ao as inalar.

— Hum! Você acertou em cheio, papai! 

 — E quando foi que eu desapontei vocês? — perguntou An ao calmamente encher o peito com os aromas, observando atentamente o rosto dos presentes.

— Quando suas “obras” mal parecem comestíveis, talvez? — respondeu a esposa num tom irônico ao cruzar os braços.

O tecido mais fino do pijama destacava seus hipertrofiados e definidos músculos, além da cicatriz diagonal  do pescoço até o queixo. Apesar das partes anisóricas de seus olhos não brilharem no momento, o olhar sério da mãe faz Tainá senta direito, contendo o sorriso.

Nisso, porém, a mulher sente algo vazar do canto da boca. Era a saliva que tentava esconder, que foi revelada quando o marido pressionou sua bochecha com o dedo.

— Curioso… Você não parece desapontada, Jussara — disse An no ouvido dela, sem perder o bom humor.

Ela logo o afasta com um braço ao limpar a saliva com seu guardanapo da mesa. O balançar dos cabelos pretos a bater no mento revelava rubor em suas orelhas. Os filhos conseguiram, por pouco, conter a riso com as mãos.  

— Coff! Vamos comer logo — declarou ela ao se recompor.

Logo eles começaram à jantar Apesar do evidente esforço e paixão do pai, o gosto do alimento diluía em meio às dúvidas de Moacir, que comia em silêncio e sem olhar para a família.

 — Moacir. Moacir! — chamou Jussara, puxando-o de volta à realidade num curto espasmo. — Onde você conseguiu esse hematoma? — Ela o interrogou num tom firme, apontando para a lesão no ombro do filho.

 — Eu caí de bicicleta — respondeu ele ao apertar um dos ferimentos em sua perna. “Nem eu sei o que aconteceu lá direito…” 

Com os olhos nos da mãe, ele fazer um esforço monumental para manter a respiração sob o opressivo julgamento da mãe, cujos olhos ameaçavam acender de novo.

— Hi, você é mesmo desajeitado. — Tainá o acertou um tapa nas costas doloridas ao rir.

— Cala-se — resmunga Moacir, continuando a comer.

Ele desviou os olhos, aproveitando a interrupção para escapar. Jussara tenta persegui-lo ao abrir a boca, mas essa recebe um pedaço de carne do garfo do marido.

— Mudando de assunto, amanhã você vai estar no primeiro ano do ensino médio! Ansioso para a nova jornada?

— Sim... — Entre uma garfada e outra, uma fraca resposta sai.

Engolindo o alimento, Jussara encarou o marido com um olhar irritado antes de limpar a boca e voltar a atenção ao filho.

— Sigh… O centro educacional Nipo-Brasileiro Antônio da Garça Ferreira tem um bom nome, então garanta aproveitar ao máximo a oportunidade. Isso é para o bem do seu futuro. — A mãe o instrui, o tom mais suave.

— Eu vou — afirmou Moacir com mais energia, ajeitando a coluna. — “Não sei se tenho mesmo um, mas se é isso que quer ouvir…” Ele refletiu atrás da máscara.

— Ótimo. Agora quanto a você… —  Ela cerrou os punhos em cima da mesa ao endurecer a voz.

Tainá, que estava para enfiar um pedaço grande de carne na boca, trava quando a voz da mãe entra nos ouvidos. Na distração, a carne no prato num “paft”, sujando seu pijama. Perfeitamente ciente do que viria, ela se virou para mãe com um sorriso nervoso.

— Você quase repetiu de ano da última vez — continuou Jussara, encarando a filha — Trate. De. Estudar!

— S-Sim! — concordou Tainá num pulo, freneticamente limpando sua bagunça.

An riu de leve ao pôr o cotovelo na mesa e apoiar o rosto na mão, observando tudo em silêncio em sua usual serenidade.

A família terminou de comer em alguns minutos e resolveu finalizar o dia, An desejando “Boa Noite” aos filhos antes de entrar em seu quarto junto com Jussara, beijando-a no rosto ao passar o braço ao redor de seus ombros largos. 

Os irmãos se despediram antes de entrar nos quartos e Moacir, por sua vez, caiu na cama e pôs as dúvidas de lado a fim de descansar daquele dia, sua única expectativa sendo no quão mais cansativo o seguinte seria.

 



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