Volume 1
Prólogo: O primeiro encontro
O universo era caótico. Suas fugazes leis não passam de interpretações. As profundezas do desconhecido eram capazes de engolir as migalhas do que se acredita entender. O mínimo deslocar do menor dos seus componentes era capaz de criar as mais imprevisíveis repercussões, das mais deslumbrantes as mais terríveis, num dominó cósmico.
Em algum lugar nesse vasto sistema, uma pedra flutuante servia de lar para seres com a benção e maldição de perceberem o quão pequenos eram diante ao que está tanto acima e abaixo de seus pés. Por toda sua breve existência eles viveram e morreram para encontrar as respostas elementares do mundo, cada uma mais agonizantemente próxima da verdade que a anterior, mas nunca raspando o limiar da perfeição.
Nesse planeta havia um país tropical, dentro do qual um vale cercava uma cidade que mistura o velho ao novo. Nas ruas do distrito residencial desse lugar escutou-se um som.
— Sigh… — O suspiro cansado de um jovem de cabeça baixa era ouvido pelos calmos ventos que passavam por ele.
O rapaz de camisa vermelha escuro e mangá dupla preta empurrava uma velha bicicleta, o som de suas rotas sobre o asfalto e o chacoalhar metálico vindo da mochila em suas costas suas únicas companhias, visto que seus próprios passos lentos não faziam barulho.
Num breve momento ele parou o andar e ergueu a cabeça ao ouvir um riso vindo da interseção à frente. Um casal passou ali, pacientemente recebendo uma enxugada de relatos animados de um garoto, que os segurava pelas mãos ao balançar, enquanto uma garota nas costas de um deles lutava e perdia contra o sono. O suave brilho nos olhos deles foi absorvido dentro do olhar distante do jovem, por trás das lentes dos óculos. Tão logo que a família foi embora, o jovem retirou o chapéu de pescador azul, fechou os olhos e ergueu o rosto ao respirar fundo, sua melancolia se aprofundando ao se banhar com o sol da tarde, deixando o longo e desarrumado cabelo marrom tremular ao vento.
Então, ao abrir os olhos letárgicos, algo o chamou a atenção. Perto do muro à direita ele viu um pardal bicando um pedaço de pão mofado, caído da lata de lixo ao lado. A imagem da ordinária criatura refletiu em seu olho esquerdo, o par desse escondido atrás de sua franja, fazendo brilho desabrochar ali. A expressão aliviando num sutil sorriso, o rapaz cuidadosamente escorou a bicicleta na parede próxima e deixou ali seu chapéu e mochila ao retirar um caderninho e lápis de um dos bolsos da calça.
Devagar, ele se aproximou da criatura com os calcanhares discretamente elevados e se agachou junto a ela em silêncio. Ele então abriu o cheio caderno e começou a rabiscar uma página em branco ao observar o animal comer sem pressa, não se importando com gigante ao lado. O olhar penetrante do jovem concentrou-se na ave, transferindo cada detalhe de sua simples aparência para o papel com rápidos, mas precisos movimentos. Com apenas ele e seu modelo no mundo, o castanho escuro em seu olho reluziu.
Subitamente um grosso jato de tinta branca manchou tudo. Suas roupas, seu cabelo, seus óculos, seu rosto, o desenho e o pardal, que saiu voando com um piar assustado. A bolha em que estavam se desmanchou, assim como o sorriso do jovem.
— Clareando um pouco essa sua aura, seu saco de tristeza! — disse num tom provocador uma garota de traços chineses e olhos castanhos como o dele. A jovem atlética, agachada no topo do muro, vestia de top de academia e leggings e possuía uma lata de tinta branca aberta, ainda pingando, em suas mãos.
Sob aquele olhar zombeteiro, o jovem em silêncio contraiu seus músculos, a expressaram distorcendo ao tentar respirar fundo. Ao falhar, seu lápis quebrou no meio dentro do punho cerrado.
— Tainá! — exclamou o rapaz ao arremessar as metades do lápis contra a garota, que desviou sem dificuldade com um pulo lateral.
— Vem me pegar, Moacir! — provocou Tainá, batendo na bunda antes de sair correndo sobre os murros ao longo da rua.
Ele guardou o caderno e segurou nas alças do lixo com uma pegada bruta, mas logo as soltas. Bufando, ele logo correu até a bicicleta, pôs de volta a mochila e chapéu e pedalou atrás da garota.
(...)
— Volte aqui, sua maldita! — gritou Moacir, no encalço de Tainá.
— Venha você aqui, seu lerdo! — respondeu a garota, mostrando a língua ao correr nos topos dos muros e cercas das residências do subúrbio.
— Sua… — resmungou o jovem, acelerando as pedaladas.
A perseguição já durava meia hora, mas nenhum dos dois deixava brechas. Tainá movimentava-se com graça pela paisagem urbana, saltando para dentro e para fora do terreno das casas em múltiplos atalhos improvisados. Mesmo assim, toda vez que ela eclodia do outro lado de um beco ou muro Moacir já estava lá, fitando-a nos olhos, como se com mapa da região implantado na cabeça. A cada vez que isso aconteceu a garota esticou mais os cantos da boca, e o garoto retribuiu apertando o olhar concentrado.
Acelerados ao máximo, eles se aproximaram de um cruzamento em cruz. Então, da rua à direita, surgiu uma garota e um homem andando lado a lado.
No momento que os pedestres saíram do ponto cego criado pela tinta das lentes de Moacir, o jovem estava à menos de três metros do cruzamento. Tainá pulou do muro, passando por cima dos dois numa cambalhota, aterrissou na rua e continuou a correr. O homem acompanhou Tainá com uma expressão apática, enquanto a jovem travou no lugar ao notar a aproximação do jovem. Sem possibilidade de desviar, eles se chocaram, mal dando tempo de gritar.
(...)
Moacir estava no chão, a bicicleta e seus pertences esparramados. Ele falhava em firmar os membros a queimar, a vista embaçada não parando no lugar.
Desnorteado, ele ouviu passos se aproximando por traz. Porém, antes que se virasse, ele foi erguido do chão pelo ombro, cujo tecido rasgou na queda, como um boneco de pano e batido violentamente contra um muro.
Pelo seu tórax e costas uma dor lancinante se espalhou, vazando pela boca num grunhido infernal. Mordendo os dentes por instinto, Moacir ergueu os olhos para o agressor.
“Um… homem?” Dúvida agitou ainda mais das engrenagens em sua cabeça.
Várias cicatrizes escuras marcavam seu pescoço e fúrcula, mas apenas uma, em diagonal, cortava seu o rosto bruto. Seu cabelo negro, num corte militar, combinava com a jaqueta de couro preta, jeans, luvas sem dedos e botas militares de cano longo escuras, sendo a camisa branca a única fonte de claridade de seu traje. Tais roupas mal continham seus firmes e volumosos músculos, cuja anatomia era visível por elas.
Sobrepujado por um corpo capaz de tapar o sol, os olhos de Moacir se alinharam com os do homem. Um azul opaco o violou, a escuridão ali dentro revoltando-se como o mar aberto numa noite de tempestade. Sendo engolido pelas ondas, ele mal conseguia puxar o ar para dentro.
A dor aumentou à medida que o homem forçou o antebraço contra seu peito como uma faca cega, afundando-o mais no muro. Com sangue na boca e as costelas prestes a estourar, um frio etéreo agarrou sua nuca. A certeza do fim assentou em sua mente.
Então, quando o homem ia atingi-lo no rosto com o enorme punho, tudo parou. O punho do homem, seu olhar, a dor de Moacir e o medo que sentia. No lugar, uma misteriosa paz infundiu-se por ele, relaxando-o apesar de ainda estar contra parede.
Nisso ele percebeu a jovem, cuja mão estava na lateral do tórax do homem, por debaixo das roupas. Toda a sua atenção converteu-se nela.
Não havia como o contraste ser maior. Uma simples beleza angelical emanou daqueles grandes olhos azuis, claros e brilhantes como uma lagoa, o longo e volumoso cabelo loiro que parecia emanar luz os realçando junto ao rosto delicado. Seu vestido branco sujo de mangas curtas bordadas deixava transparecer a silhueta magra, mas saudável, com um volume considerável no busto. Mais importante, vermelho escorria de um corte em seu antebraço.
— Calma, Rafael. Eu estou bem. Foi só um arranhão — disse a garota em um tom calmo, mas os movimentos duros a traiam.
— Você… está… bem? Me d… — Suas as palavras chegavam devagar à boca semiaberta, lentamente soltando o ar que lutou para conseguir.
Antes, porém, que ele terminasse, o homem o soltou para examinar o braço da garota. No exato momento que a mão dele deixa de encostá-lo, a dor voltou como um soco no estômago, derrubando-o. O medo retornou também, no entanto ele conseguiu desacelerar as engrenagens.
Após olhar o corte, o homem abriu o kit de primeiros-socorros preso na cintura. Ele logo embebeu um pedaço de gaze com álcool, limpou o ferimento e fez ali um curativo simples, a expressão relaxando numa máscara de pedra.
— Com licença, vocês... — chama Moacir com as mãos no peito, recuperando o ar. As perguntas que tinha podiam preencher algumas boas páginas.
Ignorando o jovem, o homem foi até a bicicleta. Ele então a jogou para as mãos com a bota e a quebrou no meio como um graveto seco.
Sem dirigir um olhar a mais para o jovem a gaspear como um artista diante ao quadro vandalizado, o homem largou os pedaços da bicicleta e gesticulou com a cabeça para chamar a garota, seguindo seu caminho. Após uma breve olhada receosa para Moacir, a jovem seguiu o homem, mantendo a cabeça baixa e as mãos juntas contra o peito.
Abandonado, ele tomou seu tempo para se levantar e avaliou a bicicleta, sem se importar de bater a poeira das roupas. Aferindo o óbvio, ele suspirou, pegou os pertences e voltou por onde veio.
— Mas o que foi tudo isso? — Seus pensamentos vazaram por de baixo da respiração ao cobrir o rosto com a aba do chapéu. Isolando-se do vasto universo acima de sua cabeça, ele cozinhou novas incertezas.