O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 24: Pessoas desagradáveis

— Espera… veneno de rato?

A pergunta que Liel fez depois de ter descoberto que aquilo era, sem sombra de dúvidas, veneno pra rato, foi a mesma que fiquei fazendo dentro da minha própria cabeça durante minutos. De todas as pessoas que imaginei encontrar no petshop, a última delas seria a Eliza, a patricinha que estudou comigo e fez um inferno na minha vida.

Nunca fui com a cara dela, por motivos bem óbvios. Na maioria dos casos, pessoas como ela se acham por ter muito dinheiro, mas no seu caso, é mais porque suas notas eram maiores. Muita gente tinha raiva dela na época por conta da sua personalidade de mandona. Não sei como estão as coisas hoje.

— A gente tem que fazer alguma coisa, Marcy! — o demônio sussurrou com certa raiva.

— Eu sei disso! Dá pra calar a porra da boca? Vão acabar te escutando.

Enquanto a gente ficava olhando para as meninas, me surgiu uma dúvida um tanto quanto intrigante: como que caralhos o demônio caiu no papo dela?

Tipo, o Liel é a pessoa mais insuportável que eu conheço. Não acho que ele é o tipo que ia se importar com alguém dizendo que o desenho dele é feio, muito menos aceitar uma ofensa calado. Talvez seja porque o demônio só ficou menos babaca convivendo comigo? Provavelmente, mas acho que não é esse o motivo.

— Ei, elas estão saindo — apontou.

— Tá, vem comigo.

Algo me fazia associar que a compra da ração era um tanto quanto suspeita. Poderia não significar merda nenhuma, só que conhecendo a ruiva e a sua relação estranha com animais, não tinha como só não me importar. Estava fora dos meus planos, mas assim que o demônio falou que as meninas estavam saindo, decidi segui-las.

E lá fomos nós. Primeiro, ficamos na loja esperando elas saírem. Quando passaram pela porta, eu e o Liel fomos correndo pro caixa pra pegar nossas coisas. Era o tempo que elas já se distanciavam um pouco e ficaria menos óbvio que estavam sendo seguidas.

Assim que guardamos tudo na mochila, fomos atrás delas. Como eram dez da manhã, não tinha tanta gente na rua, então sempre que as garotas diminuíam o ritmo da caminhada, nós dois tínhamos que diminuir também. Nossa sorte foi que a ruiva estava sempre se mantendo na avenida. Era quase certeza que ia pra universidade.

Dito e feito. Depois de um tempo, as patricinhas pararam em frente ao portão principal e entraram no campus. Continuamos seguindo elas pelos prédios. Passamos pelos quatro primeiros setores, onde ficavam dois prédios de coordenações de curso e as salas de biologia e fisioterapia, respectivamente. E, assim que passamos pela quinta sessão, viramos à direita, onde andamos até o estacionamento que ficava atrás do prédio do auditório.

Que porra elas tavam indo fazer ali? Fiquei pensando, mas logo caiu a ficha. Entre a construção que a gente tinha acabado de passar e o estacionamento, tinha um prédio menor com uma porta de vidro. Era o escritório do DCE, o Diretório Central dos Estudantes. Eles são a instituição que representa os alunos da universidade e também apoiam novas causas todo ano.

Alguns anos atrás, o foco principal deles tinha sido cuidar dos animais de dentro e de fora do campus. Foi um trimestre complicado por conta das chuvas e os abrigos não estavam dando conta de alimentar todos os animais que foram resgatados. Como forma de ajudar, a direção começou a aceitar água, ração e muitas outras coisas.

Mesmo depois da campanha, o DCE não parou com as doações e até estipulou algumas regras. Quando se tratava de doar ração, especificamente, tudo deveria ser entregue apenas em sacos lacrados que eram comprados em lojas. A razão é que isso garantiria que a comida não perdesse seu cheiro e essência, mas também que nenhum mal-intencionado colocaria algo na ração.

Já teve uma galera que tentou fazer isso, mas por conta das novas normas, foram pegos rapidinho.

E lá estavam elas. Assim que chegaram na direção, bateram na porta de vidro e ficaram esperando alguém atender, só que se passou alguns minutos e nada. De repente, uma delas olhou pro lado e pro outro e cochichou com uma das meninas. Pareciam estar se certificando que não tinha ninguém além delas ali. Quando confirmaram que estavam sozinhas, uma delas entrou no prédio com o saco de ração na mão.

— O que elas tão fazendo…? — Liel sussurrou.

Depois de alguns segundos, a menina que tinha passado pro lado de dentro voltou, sem nada em mãos.

— Liel, algum sinal daquele veneno? Não tô conseguindo enxergar.

— Não vi nada. — O moleque negou com a cabeça. — Espera, e se aquela mulher tiver escondido no bolso?

— Escondido ou não, a gente tem que dar o fora daqui. Elas estão voltando.

— Ei, Marcy. A gente não pode…

Só puxei o garoto pelo braço e voltei pra parte da frente do auditório, onde seria menos suspeito caso elas encontrarem a gente. Quando chegamos, me sentei num dos bancos em frente ao salão e esperei.

— Marcy, o que a gente tá fazendo aqui?! —  O demônio andava pra lá e pra cá sem parar, batendo os pés. — Por que a gente não foi até lá ver o que elas estão fazendo? E se…

— Se quiser arrumar mais encrenca pro teu lado, pode ir. Alguma câmera deve ter pegado elas entrando sem permissão na coordenação.

— E se ninguém tiver visto? E se não forem ver o que aconteceu?

Puta que pariu… — Suspirei. — Tá bom, tá bom. A gente vai dar uma olhada quando elas saírem.

Ele ficou com uma feição frustrada, e com razão. Minha atitude parecia que eu só não me importava, mas o ponto não era esse. Se a gente acusasse as meninas sem ter certeza de nada, ou pior, déssemos a cara tapa igual o Liel queria fazer, a gente só ia arrumar problemas. Imagina só, fazemos todo um escândalo pra no final não ser nada demais. Nossa vida ia virar um inferno. A melhor alternativa era esperar.

E foi o que fizemos. Enquanto eu e o Liel conversávamos, como imaginei, as garotas voltaram pelo mesmo caminho de ida. Elas passaram pela gente, mas nem se importaram tanto. Quando finalmente terminaram de passar, foi que eu e o demônio corremos pro DCE pra ver o que tinha lá.

Assim que chegamos na entrada, lá estava o saco de ração. Virei esse e mais alguns que estavam perto pra ver se não tinha nenhum sinal de um furo ou coisa do tipo. A conclusão que cheguei foi:

— Aqui não tem nada. Elas não colocaram veneno.

O moleque ficou meio receoso e começou a rodear a recepção, olhando todos os cantos possíveis do lugar. No final, ele não achou nada também, o que o deixou visivelmente frustrado.

— Acho que podemos ir embora. Já conferi tudo — afirmei.

— Tem certeza que não deixou nada?

Tsk… Garoto, eu olhei todos os sacos. Se não tem nada aqui, não vai ter em lugar nenhum.

Ele cruzou os braços e se encostou na parede com um olhar receoso. Não estava nenhum pouco feliz com a situação.

— Quê que tá rolando? Cê parece meio puto da gente não ter encontrado nada.

— Eu… queria achar alguma maneira de ferrar com elas — Liel desviou o olhar e ficou encarando o lado de fora. — Não quero passar pela mesma coisa de novo.

Me aproximei e toquei em seu ombro. Respirei fundo antes de dizer:

— Vamos sair daqui. A gente vai dar um jeito nisso.

Ele ficou meio cabisbaixo, como quem não acreditou no que falei. Mesmo assim, ele cedeu às minhas palavras e me seguiu. Então, quando colocamos todas as coisas de volta no lugar, saímos do DCE.

 

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Quando voltamos a andar pelo campus, tanto eu quanto o Liel estávamos “sem rumo”. O moleque tinha se atrasado pra aula; já eu, já tinha feito tudo que precisava fazer nessa manhã. 

Como já eram quase onze horas, o restaurante universitário ia abrir em breve. Queria passar em casa pra pegar algumas coisas, mas acabei mudando de ideia. Era mais provável que quando voltasse do apartamento, tivesse uma fila do tamanho do mundo na frente do refeitório. Nenhum de nós dois estava disposto a esperar minutos para comer o almoço, então ficamos por ali mesmo.

Nos sentamos em alguns bancos próximos de uma cantina, alguns quarteirões antes do RU. Ficamos lá olhando o tempo passar. Assim que o relógio bateu às 11:20, nos levantamos e fomos direto pra fila. Antes disso, o demônio parou no meio do caminho olhando o próprio celular.

— Liel, o que foi?

Ele apenas ergueu o telefone e mostrou a conversa de um grupo. Nele tinha uma mensagem escrito “Onde você está? Preciso falar com você”. Perguntei quem era, então o garoto logo me disse que era a Eliza.

— Francamente, você só se mete em furada — reclamei.

— O que eu faço?

— Chama ela pra cá. Vou dar um jeito nisso.

Liel ficou com a cara de alguém que queria recuar, mas mesmo assim fez o que pedi. Quando enviou a mensagem, apenas nos sentamos de novo e ficamos esperando. Não deu nem dois minutos e a ruiva apareceu lá na frente e veio até nós, junto de suas amigas.

Assim que Eliza chegou, ela ficou parada com uma postura autoritária: mãos na cintura, cara fechada e peito estufado. Já suas colegas, mais patricinhas do que sua líder, estavam do mesmo jeito. Tava bem óbvio que elas vieram aqui pra arrumar confusão. Por qual motivo, eu não sei, mas garanto que não vão muito longe com isso.

— Com licença. — Ela se aproximou. — Liel, tem um tempinho?

— Sim. Pode falar. Por que cê me chamou?

Uma veia saltou do lado da testa dela. Ela tava estranhamente calma até então, só que do nada, ela decidiu explodir:

— O que você tá fazendo aí parado, hem?! Esqueceu que cê tá devendo o projeto pra hoje de tarde?

— A-Ah, eu… — Ele tomou um susto com o grito repentino da mulher. — Eu ainda estou fazendo…

— Ainda está fazendo?! — indagou e respirou fundo. — Escuta aqui, cê sabe que a nossa nota nesse semestre depende desse projeto, né? Se você não entregar isso até hoje…

— O quê que vai acontecer? — decidi interromper toda a discussão dos dois. Até o momento, Eliza não tinha me dado atenção, mas a minha fala foi o suficiente pra ela mudar o foco e me encarar com um claro desgosto.

— Quê? Quem te chamou na conversa, Rosenheim? Cê sabe muito bem como é irritante ficar se intrometendo onde não é chamada. Por que não toma conta da sua própria vida?

— Quem sabe? — Me levantei. — Pensei que fosse você que gostasse de fazer isso, já que né, cê se acha tão melhor do que os outros e sempre quer meter o nariz onde não é chamada. Pra uma pessoa que fala que tô me intrometendo, acho que é uma atitude um tanto quanto curiosa vinda de você.

Ela cruzou os braços e deu um passo à frente, ficando cara a cara comigo. Como era menor, tinha que olhar pra baixo pra encará-la. Era um tanto quanto desconfortável.

— Quem é você pra dizer o que devo fazer, Marcy?

— Sua antiga colega de turma? — Coloquei as mãos no bolso e sorri de maneira debochada.

— Isso não quer dizer nada!

— Ah, é? E a matéria que cê não passou até hoje quer dizer alguma coisa?

Ela arregalou os olhos com o que falei. Um tempo depois, ela levantou a mão e tentou me dar um tapa, mas por sorte, seus bracinhos eram pequenos demais pra me alcançar, então apenas segurei e a puxei pra bem perto.

— Sabe, Eliza. Acho que se não usasse tanta maquiagem, você seria muito bonita. Já pensou nisso?

— Me solta, desgraçada. 

A ruiva começou a fazer drama e chamou atenção de todo mundo que passava por perto. O tempo todo ficava pedindo socorro e dizendo que eu tava chantageando-a e até mesmo a agredindo. Já tinha conseguido o que queria, então apenas soltei a mulher pra evitar mais confusão e disse:

— Se manda, garota. Vê se não enche mais o saco.

Ela não respondeu nada. Apenas se virou com o rosto todo vermelho e saiu correndo. Suas amigas, que até então pareciam querer arrumar briga, não se arriscaram a ficar também, então logo seguiram junto com a outra.

Depois que a poeira baixou, pude finalmente parar com minha atuação e focar no Liel. Ele estava bem, só ainda com medo de toda a situação. Nem tinha como julgá-lo pois ele não foi o único que sofreu com o comportamento autoritário da Eliza. Era uma atitude até que normal. Independente se o que sentiam era raiva ou medo, eram poucas as pessoas que iam com a cara dela.

De qualquer forma, fomos pro refeitório. Demorou um pouco pro demônio voltar a ser o garoto insuportável de sempre, mas foi só ameaçar colocar um alface no seu prato que voalá, ele quase me esganou. Ficamos discutindo sobre coisas aleatórias pra passar o tempo e, quando terminamos de comer, fomos esperar a minha aula começar perto do prédio do curso.

Nos sentamos em um banquinho. Papo vai, papo vem. Tava com vontade de perguntar algo pro Liel desde que fomos pro restaurante, mas até então não tive coragem. Faltando alguns minutos para as 14:00, foi que decidi abrir a boca:

— Então, cê vai se encontrar com aquela galera de novo hoje de tarde?

— Umas 16:00. Por que?

— Estive pensando… Cê se incomodaria se eu fosse com você, só por segurança?

Ele olhou pra mim desconfiado.

— Não é como se elas fossem parar de agir daquele jeito por sua causa. Elas ficaram me cobrando mesmo você estando perto.

— Eu discordo. Se cê prestou atenção, Eliza é uma pessoa facilmente irritável. Qualquer um que não obedece ao seu complexo de superioridade a deixa com os nervos a flor da pele.

— Tá, mas onde você quer chegar com isso?

Por mais que eu tenha dito para aquela ruiva se mandar, nada garantia que ela ia parar com a encheção de saco do moleque. Se fosse pra ficar desse jeito, não ser só uma ou duas, mas inúmeras vezes que o Liel ia chegar em casa chorando por causa daquela vagabunda. Não podia deixar barato.

— Então… acho que tive uma ideia — comentei. — Quer escutar?

— Tá, o que cê vai fazer?

 

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