O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 23: A curiosidade matou o gato

Triim! Triim! Triim!

Quando o despertador tocou, só senti os meus olhos arderem pra cacete. Estendi a mão por cima da cômoda e desliguei o celular, mas ainda fiquei deitada.

Era terça-feira. Em teoria, seira outro dia que ia passar no Centro Acadêmico, mas o pessoal decidiu me dar uma folga desde a semana passada. Poderia dormir mais um pouco se quisesse, só que meus planos pra hoje, mesmo tendo dormido mal, não eram esses.

A ideia, pra começo de conversa, era me levantar, mas desde o momento que desativei o alarme, só fiquei sentindo um peso por cima do meu peito. Tá, eu tava indisposta, como de costume, mas era algo muito além de uma simples preguiça e falta de sono. Não era o gato, era pesado demais pra ser um felino.

Decidi olhar pra baixo. Na hora que vi o que era, foi o fim da picada pra mim.

Liel…?

Como ele veio parar aqui? Se me lembro bem, ele tinha dormido no sofá, não na minha cama agarrado no meu braço. Não duvido que o moleque tenha algum hábito noturno estranho, ainda mais levando em conta todas as bizarrices que presencio diariamente. Mas caralho, porque ele não subiu na beliche e foi pra cama dele? Pior do que isso, por que caralhos o Cappuccino tá abraçando a minha perna?

Quando penso que já vi de tudo nessa vida, chegam esses dois e mostram pra mim que não sei de merda nenhuma.

De qualquer forma, não tinha tempo pra ficar reclamando. Precisava sair, pois se não fosse em alguns lugares agora de manhã, não teria tempo em outra hora do dia. Ainda tinha que passar no petshop e também resolver uns problemas no banco.

Fui me arrastando e me desprendendo das garras dos dois. Com muita paciência, consegui ficar de pé e ir pro banheiro, não sem antes pegar minhas roupas no armário. Depois de um belo banho, passei direto pra cozinha, onde fui preparar meu café da manhã enquanto escutava música no celular.

Enquanto pegava o coador pra preparar o café, escutei a porta do quarto abrindo. Liel e o gato tinham acabado de acordar.

Uaahh… Bom dia.

Ele tava com o cabelo todo zoado. Ficou coçando os olhos sem parar.

— Bom dia — respondi. — Dormiu bem? Cê parece meio acabado.

— Tô com dor. Quero bater a cabeça na parede.

Duvido que se lembre de ter ido pro meu quarto. Nem deve ter percebido que tava na minha cama. É meio doido, mas sempre que ele fica com os chifres expostos tarde da noite, é como se virasse outra pessoa. E, pra variar, ele esquece de quase tudo que aconteceu.

— Quer que eu faça algo pra você? — perguntei. — Pelo menos um café pra despertar.

O demônio só me ignorou e se jogou no sofá. Não me dei o esforço de insistir. Continuei preparando minha comida e, assim que terminei, me encostei no balcão e comecei a comer enquanto olhava as mensagens no grupo da faculdade. Depois disso, passei pro quarto, fui escovar os dentes e pegar minha mochila.

Ao passar pela sala e ir para o corredor que dava na porta do apartamento, parei por um instante e fiquei com uma dúvida na cabeça. Pelo o que eu me lembre, as turmas do Liel sempre eram pela manhã. Poderiam ter cancelado, mas por via das dúvidas, decidi perguntar.

— Ei, garoto. Cê tem aula hoje?

Até então ele só tinha ficado deitado com a cara enfiada na almofada, mas no momento que fiz a pergunta, vi ele se sentar e olhar pra mim com um rosto sério. Era aquela cara de desespero de alguém que esqueceu um compromisso importante. “Ok, eu me fodi” é o que eu diria numa situação dessas.

Ele ficou me encarando por um tempo, isso até a ficha dele cair e…

— Eu tô atrasado!

— Então corre, demônio!

Ele pulou do sofá e foi pro quarto se arrumar. Enquanto fazia isso, pra poupar tempo, fui pegando alguns de seus cadernos que estavam em cima da mesa da sala e coloquei de volta em sua mochila.

Fiquei esperando sentada, achando que ele não fosse demorar demais, mas fiquei de saco cheio e decidi ir ver o que tava acontecendo.

— Ei, calma lá! Deixa eu colocar o tênis!

— Vai assim mesmo, cê se ajeita no caminho.

Foi complicado, mas assim que terminou de amarrar o cadarço, segurei em seu braço e saí correndo. Descemos as escadas tropeçando em todos os degraus possíveis, mas por sorte, saímos do prédio e chegamos nas ruas, onde continuamos correndo o máximo que a gente conseguia.

Durante uma parte do caminho, vendo todas as construções e prédios que a gente passava antes de chegar na universidade, tive a impressão da gente estar indo rápido. Foi só uma impressão mesmo, pois na hora que peguei o celular pra confirmar…

— Já se passaram 6 minutos?! Só pode tá de brincadeira!

Por que isso tava acontecendo? Tentei entender o motivo e era até óbvio. Por mais que a gente estivesse andando rápido, eu sou maior que o Liel; ou seja, minhas pernas são maiores e, consequentemente, dou menos passos pra andar uma distância maior. Em resumo, esse tempo todo, o demônio não tava me acompanhando, ele tava era sendo arrastado. Isso tava me cansando mais do que o normal e também tava fazendo a gente demorar mais.

Parei pra pensar numa solução. Táxi ou Uber tava fora de questão; o tempo deles chegarem é o mesmo que a gente corre até a faculdade. Pedir caronas pra estranhos? Nem pensar. Sou nem louca de passar essa vergonha.

Ideia vai, ideia vem. Minha cabeça teve um plano idiota. Quando digo idiota, é o mais idiota que eu conseguia imaginar. Não queria recorrer a isso, mas na situação que o demônio estava, não tinha outra opção pra chegar rápido senão essa. Parei por um momento no meio da calçada, então coloquei meu plano em prática.

— M-Marcy… Marcy, me solta! O que você tá fazendo?! Eu vou cair!

— Seu idiota, cala a boca! Não vou conseguir te carregar desse jeito.

Peguei o moleque e o coloquei por cima do meu ombro. Antes mesmo de começar a andar, já senti o arrependimento dessa maluquice. Só que já tinha começado, então tinha que ir até o final.

O mais doido disso tudo foi que o plano pareceu perfeito na minha cabeça. Um moleque de um metro e meio que provavelmente pesa menos que uma pena. O que poderia dar de errado, não é mesmo? Tudo! Não levei em conta uma série de coisas e, por mais que a gente tivesse indo um pouco mais rápido, comecei a sofrer um pouco da metade do caminho em diante.

Primeiro, por conta do peso. Não do demônio, mas sim das nossas mochilas. Uma coisa era levar o moleque e a bolsa dele sozinhos; outra era carregar ele e as nossas coisas juntos. Não imaginei que fosse pesar tanto.

E pra piorar minha situação, o desgraçado não parava de me bater e de me xingar. Se já não bastasse toda a gritaria nos meus ouvidos, ainda tive que aturar a vergonha de ver todo mundo na rua olhando nós dois passando igual dois retardados. Por essas e outras que odeio ceder pros meus pensamentos intrusivos.

Foi um sufoco, mas por fim, chegamos na universidade. Com muita luta pra respirar e me manter de pé, coloquei o garoto de volta no chão antes que eu desmaiasse. Quando olhei pra sua cara, como imaginei, ele tava furioso, mas além disso, tava vermelho igual uma pimenta e com as mãos ao redor da cintura, como se tivesse escondendo ela.

— De nada pela carona, baixinho — tirei sarro.

— Ora, sua…

Minha fala foi o suficiente pra ele levantar a mão e me dar um tapa na cara. Um daqueles que faz a pessoa sair rodando. Se já não bastasse isso, ele ainda me chamou de…

— Idiota!

Enfim, ele se foi, deixando minha cara ardendo igual uma chaleira. Enquanto ele passava pro lado de dentro do portão e entrava no prédio, fiquei esperando pra ter certeza de que iria pra aula.

— Que tapa bem dado — uma pessoa aleatória na rua comentou.

Fiquei com uma cara de repulsa pelo comentário do estranho. Depois disso, saí dali. Tava me dando nos nervos ser observada por toda aquela gente

 

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Na lista das coisas que eu precisava fazer, a primeira e mais importante era ir ao banco. Poderia ter ido no petshop primeiro, mas como era mais longe, não compensava ir até o fim do mundo pra depois voltar.

O banco era pertinho da universidade, então em alguns minutos, cheguei no prédio. Após passar pela porta giratória e meio mundo de pessoas, fui pro caixa que tinha menos gente na fila e fiquei esperando. 

Enquanto fazia isso, fiquei observando algumas pessoas que passavam pelo local. A maioria no lugar era mais velha, dos trinta pra cima. Tinha um monte de idosos, tudo de cabecinha branca, mas havia outros que com certeza não eram tão novos se comparado aos velhinhos.

De gente jovem, teve dois que chamaram a minha atenção. O primeiro deles foi uma loira de cabelo liso. Digo, loira é um termo muito forte. Aquele couro cabeludo tinha tanta química que um puxão faria tudo cair. Com certeza era aluna de odontologia.

O segundo, era um cara altão. Devia ter mais ou menos a minha idade, ou um pouco mais. Ele era bombadão, não é atoa que a manga da camisa dele tava quase rasgando de tanto músculo. Como era de se esperar, não tinha perna nenhuma, só braço. Parecia uma galera da minha sala que só pensava em academia e mulher.

E, deixando a galera mais nova de lado, encontrei o meu Nemesis em uma das filas. Era uma senhora; daquelas com o terço na mão e com uma bolsinha por baixo do braço.

Posso estar parecendo só uma chata que critica todo mundo pela aparência, mas já é quase certo o que vou dizer: se alguém encontra uma velha com qualquer acessório religioso e uma bolsa pequena, ou ela é testemunha de jeová, ou vai gritar nos seus ouvidos enquanto fala da roda de oração dela. Nas últimas dez vezes que vi esse estereótipo, foi o que aconteceu.

Enquanto pensava nisso, um telefone começou a tocar. Encarei aquela mulher de meia-idade que chamou minha atenção anteriormente. O barulho parecia estar vindo da bolsa dela.

Pelo amor de deus, não atende esse telefone. Não atende esse telefone…

Comecei a suar frio. Tinha esquecido meus fones em casa, então se ela começasse a gritar, eu ia quebrar no meio do banco. A senhora colocou a mão na bolsa pra conferir se era de lá que vinha o som da ligação. Quando pegou o celular?

— Alô?

O barulho parou e era o celular de uma pessoa que estava na outra fila, do lado dela. Era um assalariado qualquer.

Ufa...

Demorei pra perceber, mas todo esse tempo julgando as outras pessoas foi o suficiente pra galera que tava na minha frente sumir. Demorou menos do que eu pensava e, quando fui ver, já tava em frente ao caixa.

Nem perdi tempo. Abri a conta e comecei a procurar pelas operações de saque. Tinha que separar o dinheiro pra pagar a mensalidade do apartamento e também pagar as contas. Eles só aceitavam em espécie, então todo final de mês, tinha que fazer isso.

Fiquei um tempinho digitando a transação e resolvendo os problemas da fatura. De repente, meu celular começou a tocar. Pensei que fosse minha mãe já vindo me lembrar que era dia do pagamento, só que quando penso que não, era o número do Liel.

Era só o que me faltava…

Atendi o telefone e esperei pelo pior.

— Quê que foi? Por que cê tá me ligando?

Ficou um silêncio do outro lado. Só fiquei imaginando qual seria a burrada da vez, mas veio logo a pior de todas:

Não me deixaram entrar na sala.

— Cê tá de brincadeira comigo, né?

Haja cu pra tomar nessa vida. Depois de toda a vergonha que passei e todo o trabalho que foi arrastar o moleque pra faculdade, não deixaram ele entrar na sala de aula. Incrível, né?

Pra começo de conversa, por que fui inventar de fazer aquilo? Tava na cara que ia dar merda e era meio óbvio que o moleque ia ficar do lado de fora.

— Tá, e agora? O que você vai fazer?

Nada, ué. Tô livre pela manhã. Cê tá ocupada?

Até cogitei não falar nada, mas mudei de ideia:

— Tô no banco agora. Já já vou ir comprar mais ração e uma coleira pro Cappuccino.

Tem algum problema a gente ir junto?

— Se você não me der outro tapa…

Foi só falar no bendito tapa que escutei um grunhido do outro lado do telefone. Depois disso, fiquei lá com cara de cu ouvindo o moleque me xingar por cinco minutos ininterruptos; que eu era insensível, grosseira, idiota, incompetente e outros mil e um títulos que já não faço questão de lembrar.

Quando foi terminar a onda de ofensas, mandei ele vir me encontrar no banco. Assim que saí de lá de dentro, só vi o tampinha atravessando a rua todo irritadinho.

— Cê tá com fome, moleque? — perguntei assim que atravessou a faixa de pedestres, em um tom de raiva.

— Ahm?! — Ele cruzou os braços.

— É porque tu tá andando com cara feia pra cima e pra baixo, aí fiquei na dúvida.

— Por que você não se fode?

Descontei um pouco da minha raiva nele. Quase tomei outro tapa, mas valeu a pena.

Após discutir com o moleque por uns cinco minutos, saímos do banco e fomos em direção ao petshop. Ele ficava depois da cafeteria, ou seja, tinha que pegar o viaduto que passava por cima da avenida pra chegar onde ficava o estabelecimento. Não era tão longe quanto parece, mas se fosse pra correr com um moleque nas costas, eu morreria na metade do caminho.

Quando avistamos a placa enorme cheia de desenhos de gatinho e cachorro, passamos pro lado de dentro. A primeira coisa que dei de cara foi com as inúmeras estantes cheias de coisa. Potes, caixinhas de areia, pás, tudo que alguém puder imaginar. Antes mesmo de sair andando por aí, um funcionário veio nos recepcionar.

— Bom dia. Como posso ajudá-los?

Já senti que ia ficar perdida. Por sorte, quando falei que estava procurando a sessão de coleiras e de rações para gato, o homem foi direcionando a gente pelas sessões até chegarmos onde queríamos. Era mais fácil do que eu pensava. Quando encontramos o que a gente procurava, o homem deixou eu e o demônio a sós.

— Ok, acho que isso deve servir — falei enquanto pegava um saco de 10kg. — Liel, segura isso aqui.

— Tá bom.

Joguei aquilo em seus braços e pensei que ele fosse segurar. Ao invés disso, o moleque caiu duro no chão.

E pensar que foi esse mesmo garoto que quase me enforcou.

Foi um pouco difícil carregar todas aquelas sacolas, isso porque não podíamos pegar as maiores. A gente ia voltar a pé, então tudo tinha que caber na mochila.

Depois de pegar tudo que a gente tava procurando, fomos pro caixa. Enquanto a recepcionista passava as coisas, fiquei olhando as prateleiras em volta e vendo algumas coisas que chamavam a minha atenção.

— Liel. Espera aqui, eu já volto.

Decidi dar uma olhada. Andei por algumas sessões e fui até onde ficavam os brinquedos.

Tinha várias coisas, desde arranhadores, até pelúcias pra animais. Fiquei um tempo pensando no que o Cappuccino poderia gostar. Não tinha exatamente como saber, então na dúvida, peguei algumas coisinhas que não fossem tão caras: uma varinha com pena, algumas bolinhas e algo pro bichano passar as garras.

Fui em direção ao caixa depois de pegar tudo. Enquanto passava pelos corredores, algo chamou a minha atenção e quase tomei um susto quando percebi o que era. Eram três pessoas, um tanto quanto familiares. Me escondi atrás de uma das estantes porque não queria ser reconhecida por ninguém a essa hora da manhã.

Fiquei espiando. Uma delas era uma ruiva, que se não me falhe a memória, pagou matéria comigo em outro período. Seu nome é Eliza. Já as outras duas, eram as meninas que compunham seu trio. 

Fiquei ali escondida, me perguntando o que essas três estavam fazendo aqui. Fiquei tão distraída que não vi que passei tempo demais e, quando me dei conta, Liel tava do meu lado cutucando meu braço a meia-hora. Assim que percebi, dei um pulinho.

— Não me mata do susto, porra! — sussurrei. — Eu te mandei esperar no caixa.

— Cê tava demorando demais. — Ele tava usando a toca que dei pra ele. Seus chifres estavam expostos. — O que cê tá fazendo?

— Dá pra você esconder esse rabinho? Já te falei pra não se transformar num lugar desses!

Ele suspirou e logo todas as suas características demoníacas sumiram. Ele ficou espiando comigo pra saber o que estava acontecendo.

— Cê conhece elas, Liel?

— São minhas colegas de turma. É com elas que estou fazendo meu trabalho.

— Espera, o quê?! — Franzi as sobrancelhas. — Como? Você é do primeiro período. Ela tá pagando as mesmas matérias que você?

— Pelo o que parece…

E pensar que Eliza sempre tentou ser a aluna exemplar, mas não consegue passar numa matéria do primeiro período. Meu senhor.

— E como tu foi parar no grupo dessa cobra?

— Foi o único que sobrou. Não tenho amigos naquela sala.

— E você nem tentou sair dessa? Sei lá, conversar com o pessoal da sua turma pra fazer o trabalho com outras pessoas?

— São tudo farinha do mesmo saco.

Não sei porque ainda tento insistir com esse moleque. Ele é um caso perdido.

— Espera, o que é aquilo na mão dela? — falei enquanto fechava um poucos olhos pra ver se enxergava. — As meninas tão com a ração, mas aquele saquinho não parece comida de animal.

O demônio também ficou tentando ver o que era. O que ele descreveu que tinha ali era algo pequeno e rosa. Tava na cara que não era mimo pra cachorro ou gato. Tava mais para…

— Espera… aquilo é veneno de rato?

 

Notas:

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