O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 21: Meu passado, meus problemas

Quando acordei, estava tudo escuro. No momento que abri os olhos, não senti a presença de ninguém por perto. Liel já tinha levantado, como de costume, e pelos sons que vinham do lado de fora, não parecia ter muita gente de pé. Provavelmente era umas seis ou sete da manhã. Acabei dormindo cedo, então era de se esperar que eu acordaria nesse horário.

Enfim, saí do quarto. Tava tudo um pouco escuro ainda e, como imaginei, quase ninguém acordado. Decidi andar pela casa para ver se encontrava alguém, mas não teve nenhum sinal de vida nem na cozinha, muito menos nos corredores. Somente quando cheguei na sala, foi que encontrei algumas pessoas de pé. Alex estava de olho na televisão, vendo um programa estranho sobre agricultura que sempre passa no início da manhã. Já o demônio, estava desenhando.

Ambos estavam em silêncio, focados em suas próprias atividades. É até estranho ver isso, pois me acostumei com o caos que é viver com essa galera maluca. De qualquer forma, vou aproveitar. Não é todo dia que acordo e posso saborear um pouco dessa tranquilidade.

— Opa, Marcy. Bom dia. — O loiro percebeu que eu estava ali. — Como foi essa noite. Dormiu bem?

— Sendo sincera, melhor do que eu esperava. Fazia tempo que eu não dormia na sua casa.

— Pois é. Cê sempre foi problemática quando era pra passar a noite aqui. Ainda tem medo do bicho papão?

— Acordou e a primeira coisa que fez foi comer carne de palhaço, né? Desgraçado.

As vezes lembrar dos meus traumas de infância é uma experiência dolorosa. Ainda mato esse loiro.

— E você, Liel? É a primeira vez que dorme aqui. Como foi a noite? — ele mudou de tópico.

— Foi boa. Nem vi que tinha dormido. Aquela cama é bem confortável.

— É, realmente. Do jeito que minha mãe é, se tu tivesse acordado com dor nas costas ou coisa do tipo, ela ia processar a loja que vendeu. A coisa que mais deixa a mulher puta da vida é quando alguém de fora não se sente bem aqui.

— Sua mãe se preocupa muito com visita, né? — comentei. — Sabia que ela era bem receptiva, mas não imaginei que fosse pra tanto.

— Acho que essa preocupação dela é mais uma forma de desestressar. Ela trabalha demais e o que mais gosta de fazer é ver outras pessoas felizes. Cê lembra daquela vez que ela faltou soltar foguetes porque falamos que o macarrão que ela fez tava bom?

— Nossa, sim. Nunca vi a coroa tão feliz na vida dela.

E pensar que pessoas com uma condição melhor do que a minha se alegram por coisas tão simples. É, tendo tanto dinheiro, acho que eles podem valorizar outras coisas por não terem nenhuma preocupação quanto ao financeiro. Ai, se caísse quinhentos reais no meu pix, seria a pessoa mais feliz do mundo.

— Ei, Marcy. Se incomoda de ir ver como está o restante do pessoal? Quando cheguei, a sala tava vazia. Uma galera deve ter ido pro porão.

— Cê não viu alguém passando pelo seu quarto de noite?

— Pior que não. Digo, escutei uma gritaria de madrugada vindo do estúdio, mas não fui ver o que era.

Isso tá estranho. Trizz e Cassidy dormiram na sala, mas foram pro porão? O que fez elas irem pra lá?

— Algo deve ter acontecido. Vou dar uma olhada.

Alex concordou com o que falei. Então, logo fui pro quarto, onde Aspen estava dormindo, e desci as escadas. Durante o início dos degraus, não cheguei a escutar nada, mas da metade do caminho, aos poucos ia vindo um som estranho. Era uma voz feminina que não parava de choramingar.

Por que raios alguma das meninas estaria chorando?

Só daria pra saber indo lá. Quando girei a maçaneta e espiei o cômodo, tive a visão mais estranha da minha vida. De um lado do estúdio, estavam os meninos sentados no sofá, com cara de quem não tinha conseguido dormir direito essa noite. Do outro, estava Trizz e Cassidy abraçadas. A morena estava preocupada e a demônia não parava de se contorcer no chão. Demorou pra cair a ficha, mas quem tava berrando desde a madrugada foi a loira.

— Que porra tá acontecendo?

Minha pergunta chamou a atenção de todo mundo. E advinha? A chorona foi a primeira a responder:

— Tinha um bicho ontem de noite! Um monstro! Ele ficou em cima de mim, arranhou o meu rosto e…

— Ei, Trizz. Se acalme. — A morena tentou acalmá-la. — Não aconteceu nada ontem. Certeza que não foi um sonho ruim?

Ver essa desgraçada desse jeito é um tanto quanto confuso. Mas independente do que tenha deixado assim, bem feito, rapariga.

— Sinceramente, não estou entendendo nada — afirmei.

— Pelo o que parece, alguma coisa ontem passou pela sala e assustou a coitada — comentou Spencer. — Nem sei se você ouviu ela gritando a madrugada inteira. Nem tem como dormir desse jeito.

— Pior que não escutei. O quarto de hóspedes é do outro lado da casa. O que foi que assustou ela desse jeito?

— Tá atrás de você.

Antes de olhar para as escadas, a primeira coisa que escutei foi um miado. A loira começou a surtar mais ainda por só ter ouvido o som e os meninos ficaram com um rosto incomodado. Parecia só questão de tempo até rolar uma briga.

Quando vi o que tinha ali, de fato era um gato. Só que sua aparência era um tanto quanto familiar. Pelagem preta, olhinhos azuis e uma marca de machucado na orelha esquerda. Foi o mesmo que encontrei na cafeteria no dia anterior. Ele estava aqui, bem na minha frente. Tentei me aproximar com cuidado para pegá-lo, mas ele subiu as escadas igual um foguete.

Isso vai dar mais trabalho do que eu pensava.

Decidi seguir o bichano. Passei pelo quarto do loiro, fui andando pelos corredores, pela cozinha. Não estava correndo atrás dele, pois se o fizesse, isso aqui ia virar um episódio de Scooby-doo. Nunca que eu ia pegar essa pantera na corrida.

No final, paramos na sala. Quando o gato viu o Alex, a primeira coisa que ele fez foi pular no sofá onde estava deitado e se esconder entre suas pernas. Assim que Liel viu o felino e reconheceu de onde ele era, não deu outra, o moleque deu um berro de felicidade. A reação do moleque fez o gato miar de maneira furiosa.

— Ei, ei, ei. Não gritem. Tão deixando ela estressada. — Alexander se sentou e começou a fazer carinho na cabeça do bichano. — Por que toda essa animação por causa da Luna?

— O nome dela é Luna? — o demônio perguntou. — Mas ontem de manhã a gente encontrou ela lá na cafeteria. O que ela tá fazendo aqui?

— Ah, eu encontrei ela na rua enquanto ia pra faculdade e terminou gostando de mim. A bichinha não parecia ter dono, aí decidi adotar. Ela é medrosa, por isso vocês não viram ela ontem por aqui.

— É a do tipo que não gosta de visitas?

— É, possivelmente.

Luna parecia menos estressada agora com o carinho que o loiro estava fazendo. Ela não parava de ronronar.

— Mas e aí? O que aconteceu lá embaixo? O pessoal tá acordado já?

— Ah, longa história. Em resumo, seu gato assustou a Trizz e ela não deixou ninguém no porão dormir.

— Oshe, ela tem medo de gato, por acaso?

— Eu sei lá, porra. Pelo o que parece, deve ter. Ela tá toda histérica e parece que vai infartar.

Alex ficou descrente com o que falei. Acabaria sobrando pra ele ter que arrumar toda a bagunça.

— Tá, tudo bem. Fique aqui tomando conta dela. Vou lá resolver isso. Ainda temos que ensaiar hoje.

E o loirinho deixou a gata em minhas mãos e saiu. Ela não reagiu em primeiro momento, mas pouco tempo depois, tomei uma mordida de graça no braço. Por que sempre sobra pra mim tomar conta dos felinos?

Enfim, eu e o demônio ficamos cuidando da Luna na sala. Nesse meio tempo, Alex desceu no porão e, magicamente, todo mundo começou a levantar e se reunir na sala. Primeiro veio um, depois outro, mas logo todos já estavam de pé.

Quando todo mundo se reuniu, seja lá por qual mágica o Alex tenha feito pra resolver o escândalo, fomos tomar café na cozinha. Nos sentamos na mesa, parecendo aquelas famílias cheias de primos e sobrinhos, e começamos a comer. Eu, como de costume, fiz o café doce e comi alguns pães. Liel fez um amargo e ficou esperando Carolina, que já tinha acordado a essas horas, fazer ovos mexidos. Já os outros, esperaram a mãe do loiro servir mais coisas na mesa para não comerem só pão com presunto e queijo.

Não senti tanta fome essa manhã, então fui a primeira a sair e descer pro estúdio. Um tempo depois, os outros também vieram, pois assim como na noite passada, iríamos ensaiar. Hoje teria que ter paciência, pois os três integrantes tiveram uma noite conturbada. Se fosse pra ir no mesmo ritmo de ontem, eles iam ficar lelés da cuca em menos de uma hora.

Então, repetimos a sequência do dia anterior. Com um pouco de dificuldade, os meninos conseguiram tocar tudo de novo. Deixei com que eles ficassem à vontade. Já tínhamos metade do som do refrão ensaiado, ou seja, bastava ensaiar a outra metade e poderíamos ir pras partes mais complexas da música. Antes de começarmos, mostrei a letra para eles, pois assim saberiam do que se tratava a canção.

 

E sua voz ecoa no meu peito, noite a noite em vão.

E cada medo que guardei comigo, queima o coração.

Não precisa mais sorrir, não precisa mais mentir.

Vou levar as feridas do tempo, mesmo sem final feliz.

O meu brilho intenso não tem fim, os astros vão queimar.

O meu brilho intenso não tem fim, os astros vão queimar.

 

Somente pelo refrão no papel, ele dividiu opiniões. Cassidy, Aspen e Alex acharam interessante e um tanto quanto “diferente”. Spencer e Leon acharam meio melodramático pela leitura e preferiram escutar o som completo com a minha voz. Trizz não opinou, achou ok. A coitada ainda estava traumatizada por conta do gato e passou o ensaio todo encolhida no sofá.

No fim, ninguém foi necessariamente contra, então já estava de bom tamanho.

Fomos tocar a nova parte, a do “O meu brilho intenso não tem fim, os astros vão queimar”. Diferente da primeira parcela do refrão, onde o som é forte e agudo e traz um sentimento de nostalgia, o finalzinho tem que ter uma mudança de tom para algo que parece mais agressivo. É como se quem tivesse tocando e cantando ficasse com raiva ou ódio, porque assim toda a banda faria uma performance com uma vibe revoltada.

— Marcy, já que cê tá com isso aí, não acha que seria uma boa você já cantar? — Spencer sugeriu.

A sugestão do baterista era mais do que válida. Só uma descrição de como tocar é inútil.

Com o auxílio da minha voz, ficaria mais fácil deles não errarem o ritmo da canção. Porque quando cantamos algo, nossa tendência é a fazer o som de fundo com a própria boca e também regular o tempo e os intervalos da cantoria, igual acontece numa gravação real. Como já tenho mais ou menos a ideia de como serão essas pausas, mostrar elas na prática pro pessoal é mais cômodo.

E assim decidi fazer. Primeiro fiz alguns aquecimentos vocais com sopros e sons consonantais e, quando senti que não ia machucar minha voz cantando, comecei:

Sua voz ecoa no meu peito, noite a noite em vão… E cada medo que guardei comigo, queima o coração…

Todo mundo ficou calado enquanto eu cantava. Foi um pouco assustador todos aqueles olhares avaliando depois de tanto tempo. Admito que senti um nervosismo. Quando terminei, a galera ainda permaneceu em silêncio.

— Gente, foi tão ruim assim?

Minha pergunta fez alguns se atreverem a responder:

— N-Não. Digo… — Aspen parecia meio sem jeito, — é que faz tempo que você não canta, então acho que pra todo mundo aqui é como se fosse a primeira vez.

Não sinto como se ele tivesse falando a verdade. Parece que foi só pra me agradar

— É até estranho escutar sua voz depois de tanto tempo, Marcy — Cassidy acrescentou.

Alguns começaram a cochichar, concordando com o que os outros dois acabaram de dizer. Os únicos que não estavam fazendo parte disso era Alex e Liel, que apenas observavam. Isso começou a me dar nos nervos, mas antes que eu interrompesse todo mundo, o loiro abriu a boca:

— Marcy, pode vir aqui comigo, rapidinho?

Não tinha muito porque dizer não, então apenas o acompanhei, até o outro lado da porta que levava à escadaria.

— Vou ser direto contigo. — Ele se encostou na parede. — Acho que o pessoal não soube se expressar direito e talvez isso soou desagradável.

— Você disse que ia ser direto, Alex.

— Tá. Olha. Sua voz não é ruim, só que depois de todos esses anos, cê tem que praticar de novo pra conseguir cantar. Não é como se você fosse voltar ao que era no passado da noite pro dia.

— Sim, disso eu sei. Mas ainda não entendi porque me arrastou pra cá. Se fosse só pra falar isso, era só ter dito lá fora, não?

O loiro ficou me encarando por um tempo em silêncio, mas logo desviou o olhar para a porta que separava o corredor do estúdio. Dava pra ver o pessoal na outra sala pela janelinha de vidro.

— Eu li a sua letra e fiquei me perguntando de onde foi que veio a ideia dela. Não que não seja o seu estilo, mas faz muito tempo desde que vi uma letra tão nostálgica. Esteve pensando em alguém?

A coisa que mais odeio é como Alex consegue ver coisas nos mais pequenos detalhes.

— É, sim. Quando elaborei a letra com o Liel, fiquei pensando… naquela pessoa. Não quero fazer uma música especificamente sobre ela, só que acabo deixando escapar algumas coisas.

Enquanto eu falava, ele colocou a mão sobre o meu ombro e me encarou nos olhos, sério.

— Cê sabe que vai ter que cantar o que quer que esteja naquele caderno para diversas pessoas, certo? E também ter que expressar tudo o que sente nessa música?

— Sim, eu sei disso.

— Marcy, não quero que se arrependa de nada que fizer, pois temos pouco tempo. — Ele fechou os olhos e abaixou a cabeça. — Se aquelas coisas envolvendo a Lapiz ainda estiverem te incomodando…

Escutar esse nome me trouxe um desconforto na mesma hora. Era como se alguém falasse uma palavra proibida que te trouxesse uma memória horrível da sua vida. Só me afastei e tirei o braço dele de perto de mim.

— Alex. Não vamos falar sobre isso. Ela já se foi tem muito tempo.

Ele se encostou de novo na parede e suspirou. — É, tem razão — foi o que disse. Sabia melhor do que ninguém que ele e o Aspen eram as pessoas as quais eu poderia contar para desabafar caso meus fantasmas do passado me atormentassem de novo, e ele queria reforçar isso. Só que mesmo que eles sejam meus melhores amigos, não quero precisar fazer isso de novo, não porque não confio neles, mas porque eu não quero ser um fardo pros outros. 

Tenho que voltar a ensaiar e continuar a música que comecei. Seja lá o que vai sair disso, não quero voltar atrás. Quero mostrar do que sou capaz sozinha. Por mais que tenha sido aquela ideia que me fez começar a escrever, não vai ser ela que vai me fazer parar como o Alex pensa.

Isso é um problema só meu. Eu que resolvo.

 

Notas:

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