O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 20: Cordas desafinadas

— Chegamos.

Depois da longa estrada, finalmente paramos em frente à casa do Alex. Passei a viagem toda pensando, como uma forma de focar em algumas coisas para não vomitar. Aspen sempre dirigiu igual um animal e não foi uma carteira de motorista que mudou isso. Ainda sentia enjoo quando ele pilotava.

Quando saímos do carro, fomos direto para a entrada do casarão. Já tinha alguém esperando pela gente, pois conseguia sentir uma presença de trás da porta; até pensei que fosse a Cassidy, só que era bem diferente. Assim que abriram a porta, vi uma mulher alta, de cabelo preto e curto, um tanto quanto familiar. Demorou um pouco pra cair a ficha, pois fazia tempo que não a via, mas quando percebi…

— Marcy! Quanto tempo! — Era mãe do Alex. Ela é uma mulher de mais de quarenta anos com uma carinha de trinta; uma modelo super famosa na nossa cidade e que carrega um sorriso do tamanho do mundo no rosto.

— Senhora Frittenden! Quanto tempo. — Não me contive em dar um abraço.

— Já disse que você pode me chamar pelo primeiro nome, pirralha. É “Carolina” pra você.

O nível de liberdade que essa coroa me dá quando estou na casa dela é brincadeira. Daqui a pouco ela me adota e vou fazer o filhinho dela morrer de inveja.

— Hm, vejo que tem rostinhos novos por aqui. — Carolina encarou o Liel à distância, com curiosidade. — Qual seu nome, garoto estiloso?

— Ah, me chamo… Liel.

— Ei, mãe! — Alex interviu. — Vai com calma. Você deixou ele com vergonha.

Não tinha reparado, mas realmente o demônio ficou envergonhado na presença da mulher. Não sei se é porque ele a tem como referência na sua área da moda ou se foi pelo elogio da roupa gótica dele. De qualquer forma, foi engraçado ver o moleque ficando recluso.

— Ok, ok. Vamos entrar? Os amigos de vocês já estão esperando.

Por um momento quase me esqueci do porquê de ter vindo aqui. A presença dessa mulher sempre foi algo de outro mundo. De qualquer forma, concordamos, então passamos pro lado de dentro.

Enquanto andávamos pelos corredores da casa, pude notar que algumas coisas estavam diferentes. Alguns quadros tinham mudado de lugar, havia móveis que não me lembro de estarem aqui da última vez que vim, e por aí vai. Não ousei perguntar, mas tinha quase certeza que era a mania estranha da Carolina de mexer na casa inteira toda vez que voltava de viagem. A mulher amava uma reforma. Mesmo tendo dinheiro pra construir um prédio só pra ela, preferia fazer tudo do seu jeito. Gente rica tem uns hobbies estranhos.

Mas, apesar disso tudo, isso não mudava o fato de que a senhora Frittenden sempre foi uma pessoa muito receptiva. É até estranho esse tipo de tratamento pra mim, ainda mais pelo fato de eu ter uma criação totalmente diferente da do Alex. Ter uma mãe durona e pé no chão como a minha tem suas vantagens, mas a sinceridade dela às vezes me assusta.

Enfim, fomos pro estúdio. Na hora que passei pela porta com desenhos de LED, a primeira coisa que vi foi toda aquela galera. Cassidy fazendo solo com sua guitarra desafinada, Spencer ajeitando os pratos na bateria e Leonhart testando o seu baixo nos amplificadores.

Pensei que fosse só eles no cômodo, só que acabei sentindo uma outra presença. No canto da sala, sentada num banco perto do armário dos equipamentos musicais, vi aquele cabelo loiro com mechas roxas um tanto quanto familiar. Pensei que tava tendo outra alucinação, igual cogitei alguns dias atrás depois daquelas bizarrices, mas não, de fato aquela cobra estava aqui.

— Opa, e aí, Marcy.

Como foi que a Trizz chegou aqui? É uma boa pergunta. Provavelmente foi outra façanha dela com aquela magia ilusória. Nem adiantaria reclamar com os meninos sobre não trazer gente de fora pros ensaios, pois já devem ter caído em seu truque a muito tempo.

De qualquer forma, a cumprimentei, com muito desgosto; e ela retribuiu com um sorriso interesseiro, como imaginei que faria.

Depois que falei com todo mundo, deixei a minha mochila e meu case da guitarra num canto do quarto e fui começar a botar ordem na casa, pois afinal, sou eu que estou organizando e escrevendo a música. Quando consegui chamar a atenção de todos os integrantes e enfim nos reunimos no meio da sala, começamos a discutir nossas ideias e o que cada um tinha feito nesse meio tempo. Como já era de se esperar, nenhum dos três que iriam tocar tinha praticado ou feito alguma coisa de útil, pois não tinha instruído eles a fazerem algo.

Burra pra caralho, Marcy. Parabéns.

Parando pra pensar, eu poderia ter adiantado alguns preparativos a pelo menos uma semana, só que né, o estrago já tava feito. O jeito seria fazer todas essas preparações ainda hoje, na primeira noite de ensaios. Conversar com cada integrante separadamente e definir as prioridades.

Então, sem enrolação, pus a mão na massa. Primeiro, comecei pelo principal: a guitarrista. Como é um dos instrumentos que mais se destaca numa música — sem contar que é o único que realmente tenho um conhecimento vasto, achei melhor dar prioridade a ele. Antes de qualquer coisa, trocamos as cordas da Cassidy, pois com os arranjos que eu tinha em mente para ela fazer, aqueles fios frouxos e desgastados que ela usava iam quebrar rapidinho.

Quando fizemos a troca, peguei a minha guitarra e fiz alguns testes para ela entender como ia funcionar. Descrevi para ela o sentimento que eu queria com a música e então passei as principais notas da canção.

A morena nunca foi do tipo de musicista que se dá bem com nomes de acordes ou conhecimentos concretos no mundo musical, então passar a ideia subjetiva antes da parte lógica e objetiva a faria performar melhor.

Assim que ensinei o jeito que Cassidy teria que tocar, já fui direto bater um papo com Leonhart. Ele é quem toca no baixo, um instrumento que pode funcionar de forma independente, mas como a sua principal função é servir de fundo para ditar uma parte do ritmo da música, eu não poderia deixá-lo só tocar como bem quisesse. Deveria guiá-lo para condizer com o tom que estávamos buscando para assim criar uma grande harmonia entre sons agudos e graves.

E, por fim, fui instruir o baterista. Pra ele ditar seu estilo de tocar, precisaria ter o som da guitarra e do baixo. Não tinha muito o que dizer para ele, exceto que procurasse o melhor ritmo na música que iríamos fazer.

Spencer é um tanto teimoso, mas entre os três, sua função é uma das mais difíceis e ele até que realiza com maestria. Geralmente sabe o que está fazendo e sempre performa bem quando os outros integrantes têm uma ótima sincronia.

Agora, é só questão de prática. Eles viram o som que a Cassy precisa fazer, o que resta é ela praticar para fazer com facilidade e os outros acompanharem. Simples na teoria, quero ver como vai ser na prática.

— Certo. Acho que isso deve servir. — Me sentei no sofá, observando os três, cada um em seu canto do quarto com seus instrumentos. — Cassidy. Manda ver. 

E lá foi ela tentar fazer o que pedi. Quando a paleta tocou as cordas em frente ao corpo da guitarra e ela segurou algumas notas no braço do instrumento com a mão, antes do som sair por completo, só escutei um grito.

— Ai!

Como imaginei, a garota machucou o dedo. Todo o guia que fiz sobre os acordes que planejei é que ela deveria tocar com delicadeza, porque na primeira parte da música ela teria que literalmente puxar a segunda e a terceira corda da guitarra um pouco pra baixo com os dedos, dando um efeito suave no som. Mas, pelo jeito, vou ter que ensinar de uma maneira um pouco mais paciente.

— Ok, vamos tentar de novo.

E lá fui eu me sentar do lado dela e chamar Spencer e Leon para ver tudo de perto. Pensei que eles fossem ser um pouco mais independentes, mas as coisas vão ser um pouco mais difíceis do que pensei.

 

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Algumas horas se passaram. Chegamos aqui às 18:30 e já eram quase nove da noite. Fiquei todo esse tempo ensaiando com os três, dando pequenas pausas entre as longas sessões para aliviar um pouco a barra. Nosso progresso, apesar de mínimo, foi satisfatório.

Cassidy pegou o jeito dos toques iniciais com a guitarra. É uma sessão de 10 segundos que se repete até começar o som do baixo e das batidas da bateria. Por mais que o intervalo seja pequeno, exige um certo esforço pra repetir mais de 4 notas diferentes de maneira consistente.

No caso do Leonhart, ele tocou algumas vezes nos testes que fizemos e seu som pareceu seguir a linha que eu esperava, então não tive muita dificuldade com ele. Já o Spencer, ele fez o que sabe de melhor e criou um próprio ritmo pra parte inicial; o cara manda muito bem.

Depois de todo o estresse, a única coisa que fiz foi me jogar no sofá e respirar fundo. Precisava recuperar um pouco do meu fôlego. A essa altura do campeonato, quase todo mundo tinha saído para comer, então fui uma das únicas que ficou aqui.

— Meu senhor, não imaginei que seria tão estressante toda essa parada de ensaio. — Peguei a minha garrafa de água e bebi até matar a sede.

De novo, senti uma presença desagradável. Quando olhei, era a Trizz.

— Admito que estou impressionada, Rosenheim. Você manda muito bem na guitarra. — Ela se encostou no braço do sofá.

— E você, tá fazendo o que aqui?

— Ah, tive um papo com o Alex e ele me contou sobre o projeto. Aí decidi vir. Fiquei interessada.

— Do jeito que você mente, duvido muito que o interesse seja só pela música.

— Não me leve a mal. Minha função aqui ainda é vigiar seu amiguinho. Ninguém sabe o que ele pode acabar aprontando se você tirar o olho dele.

Todo esse papo dela de “vigiar” mais me incomodava do que me passava segurança. Talvez realmente a função da loira fosse impedir o garoto de fazer merda, mas nunca faria isso da maneira que eu gostaria.

— Faça o favor de não meter a gente em uma furada de novo. — Me levantei. — Seu olho gordo só me cheira a encrenca.

Ela apenas riu, tirando sarro. Só andei em direção à saída pois não queria aturar a presença dela, mas antes de passar pela porta, ela me parou.

— Acho que você não se esqueceu do que falamos, certo? Se quer tanto assim o proteger, pense bem no que vai fazer.

Só respirei fundo pra manter a minha própria sanidade. Que vontade de meter a mão na cara dela, mas o mais provável é que no caso de verem uma briga, todo mundo ficar contra mim.

Quando nossa conversa terminou, subi as escadas e fui atrás da galera. Depois de passar pelo quarto do Alex e ir para a sala, encontrei todo mundo lá que antes estava no porão.

A galera que tocou estava visivelmente cansada, então um ou outro tinha se jogado em um dos grandes sofás e cochilado pelo estresse; já os outros, estavam comendo pizza enquanto assistiam algo na imensa televisão. Tipico ambiente de gente extrovertida que iria prefirir passar longe, mas como são meus amigos, não tem porque fugir.

Me sentei em alguma das poltronas vagas. No caso, fiquei justamente na que o Liel estava, bem do seu lado. Quando Aspen viu que eu tinha chegado, o cara simplesmente tentou falar de boca cheia e quase criou uma nova língua.

— Meu amigo, termina de comer primeiro, depois você fala!

Ele parecia estar bem animado pra não ter pensado nisso. Típico do careca.

— Relaxa, Marcy. Ele só ficou empolgado em ver toda a galera reunida de novo — comentou Alex. — Cê sabe, a nostalgia bate forte nesses momentos.

E pior que o loiro tem razão. Fazia tempo que não reunia toda essa galera pra ensaiar como nos velhos tempos.

— Mas e aí? Já decidiram onde cada um vai dormir? Não vi vocês falando disso até agora! — Liel estava desenhando e fez a pergunta de boca cheia.

— Ah, sim. Estávamos esperando as outras duas chegarem pra decidirmos isso.

Não sei porque dessa enrolação. Alex já sabe melhor do que ninguém minhas exigências na hora de dormir, mas tudo bem.

Enfim, quando todos chegaram na sala, o loiro começou a falar com todo mundo para decidir onde cada um ia ficar pela casa. No total, eram 8 pessoas. Além de ter que comportar toda essa gente, precisavam levar em conta quem não se incomodaria de dividir espaço com outra pessoa. Por exemplo, eu não dormiria perto da Trizz mas nem que a vaca tussa.

Começamos pelos mais fáceis de serem colocados juntos. Alex e Aspen, por motivos óbvios, dormiriam no quarto do loiro. Spencer, Leonhart e Cassidy não tinham nada um contra o outro, mas os dois primeiros provavelmente surtariam com o ronco da morena devido ao seu sono pesado. Por precaução, deixaram os meninos dormindo no porão e a Trizz junto da outra dorminhoca na sala.

E agora, sobrou só eu e o Liel. Por mim, dormia em qualquer cômodo desde que não fizessem nenhum barulho. Já o Liel, não sei quais eram suas preferências na hora de dormir, mas qualquer coisa ele poderia ficar com o quarto de hóspedes que sobrou só pra ele.

Bem, foi o que sugeri. Todo mundo pareceu concordar com o que falei, mas a loira do caralho decidiu ser a do contra:

— Por que vocês não dormem no mesmo quarto juntos?

De primeira eu só fiquei “Tá, foda-se” pois eu tinha trago meu colchão inflável, mas quando lembrei que o espaço no quarto era curto e poderia não caber, quase tive um ataque cardíaco. Pior do que isso foi o demônio que ficou vermelho igual um pimentão. Esse porra pensou na mesma coisa que eu ou to ficando doida?

Tá, a gente dorme no mesmo quarto toda noite pois compartilhamos dormitório. Mas ainda era vergonhoso pensar na possibilidade do garoto dormir do meu lado. 

Achei melhor só não pensar nisso e ir pro quarto averiguar se teria que passar por esse perrengue. Quando cheguei lá, a primeira coisa que fiz foi medir o espaço pra saber se eu teria de compartilhar cama. Felizmente, não teria, então já fui logo pegar a caixa do colchão de ar pra encher e deixei a galera lá batendo um papo. Antes mesmo de terminar, o garoto entrou no quarto, fechou a porta e jogou suas coisas num canto do cômodo. Acho que assim como eu, provavelmente estava cansado.

Pra evitar briga, perguntei onde ele preferia dormir. Sem pensar duas vezes, o moleque se jogou na cama, como imaginei que faria. Ele não falava muito pois ainda estava concentrado em seu desenho, então o deixei quieto por um tempo.

No caso, até eu ver que ele expôs os seus chifres.

— Ei, caralho. Tu tá ligado que não estamos em casa, né? E se eles entram e te verem assim?

— A porta tá trancada.

A falta de atenção dele aos meus avisos me irrita.

— Você passou o ensaio todo desenhando. O que fez de tanto nesse caderno? — Me sentei na beirada da cama.

— Só algumas peças. Nada demais. — Ele virou o caderno e me mostrou o que tinha feito até agora.

— Hm, nossa! Melhorou bastante. Seguiu a sugestão que te falei? Pois achei essas roupas bem melhores que as primeiras.

— Cê acha? — Ele me encarou. Acho que estava esperando uma resposta sincera. — Parece estar faltando alguma coisa.

— Me parece ótimo. Não tenha pressa com isso. Com certeza amanhã você vai ter mais ideias.

Liel ficou olhando pro desenho em silêncio, com o rosto de alguém que estava em dúvida sobre o meu elogio. Ele apenas respirou fundo, jogou o caderno no canto da cama e se virou em uma posição de alguém que ia dormir.

— Cê quer que eu apague a luz?

Não tive resposta. Quando fui ver, o moleque já tinha capotado igual uma pedra. Esse demônio sempre me surpreende.

De qualquer forma, fui terminar de encher o colchão. Assim que terminei, antes de realmente cair no sono, fui apagar a luz e fiz o favor de ajeitar o moleque na cama. O ar estava ligado e com certeza sentiria frio mais tarde, então joguei o lençol por cima dele e coloquei um travesseiro embaixo de sua cabeça.

Antes de deitar, peguei aquele caderno e olhei o desenho mais uma vez. Quando perguntou o que tinha achado, respondi meio que no instinto; vi tudo um pouco de relance e avaliei com base nisso.

Mas agora que estou vendo com mais calma, é um tanto curioso. Liel é bem esforçado. Desde que entramos no carro para vir pra cá, ele não largou o lápis e continuou desenhando. Não é como se ele fosse ruim no que faz, mas acabo tendo a sensação que ele se despreza.

Pensando bem, essas roupas não estão tão ruins. Acho que cairiam bem no moleque.

Ahem!

Melhor eu ir deitar. Amanhã vai ser um dia longo. Não quero chegar parecendo um cadáver pro próximo ensaio.

 

Notas:

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