O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 19: Esboços

Finalmente, sexta-feira. Não sei se é só eu, mas toda vez que chega esse dia, parece que acordo mais indisposta que o normal. É como se toda a preguiça do mundo habitasse o meu corpo e dissesse “hoje tu vai dormir até as duas da tarde”.

Quem dera eu pudesse fazer isso. Ultimamente, as coisas têm sido um pouco mais corridas que o normal. É saída pra lá e pra cá, escrever ideias pra música, lidar com aulas e trabalho. É bem complicado. E, pra variar, ainda nos finais de semana, vou ter que ir pros ensaios na casa do Alex. Hoje vai ter um durante a noite, e é provável que a galera durma por lá.

Por conta disso, o único horário que sobrou pra bater o ponto na cafeteria foi pela manhã. Como já disse, odeio estar aqui nesse momento do dia por simplesmente ser abarrotado de gente, mas não me restou escolha. Meu trabalho era mais cuidar da dispensa e do armazém, então era mais tranquilo; nada que um par de fones de ouvidos não resolvessem. Só que ver tanta gente aglomerada em um único lugar ainda me dá nos nervos.

Introvertida desde sempre.

— Marcy, acho que o Liel atrasou. Tem como você trocar esses coadores aqui?

Era um dos funcionários da cozinha. Os coadores e todos os equipamentos aqui nunca eram limpos em horário de serviço pelo tanto que isso demorava pra ser feito. Era melhor só pegar outro e substituir e deixar pra fazer a manutenção em outro momento.

— Tá, estou indo.

Agora eu tinha que ir no depósito e achar os benditos negocinhos de metal. No caso, no meio de uma enorme bagunça de caixas pra lá e pra cá pois tinham feito o favor de mexer em tudo sem a porcaria da minha supervisão. Se alguém trabalha no depósito, é pra essa pessoa trazer as coisas de lá, não é? Sempre tem um incompetente pra foder com tudo.

Fiquei procurando por uns minutinhos, ao som de Highway to Hell, nem vi que o tempo tava passando. Quando eu encontrei a desgraça do coador, a única coisa que senti foi algo batendo em minha cabeça enquanto estava agachada olhando uma das caixas. Tirei o fone pra ver se tinha alguém perto, mas no final, foi só algo que caiu na minha cabeça mesmo.

Que porra é essa?

Olhei de perto e era a tampa de alguma coisa, talvez duma máquina de café. Fui procurar na estante que estava na minha frente, pois era o único lugar de onde isso podia ter vindo, e olhando todas as caixas da primeira e da segunda fileira, não achei nada, nem mesmo algo que desse pra encaixar essa coisa.

Fui pra terceira, nada também. Enquanto investigava a quarta fileira, escutei algo em outra prateleira. O som do metal que ecoou era fino, ou seja, o que quer que tenha feito o barulho, era pequeno.

O ruído continuou se repetindo de novo e de novo. Fui perseguindo o diacho do barulho até que parou em um cantinho do quarto. Quando afastei a caixa com todo o cuidado do mundo…

Eu encontrei um gato.

Não, não é a primeira vez que encontro um felino no depósito. As vezes alguns funcionários esquecem a porta dos fundos aberta e esses pequenos sentem o cheiro do presunto no freezer de muito longe e acabam presos aqui. Não é culpa do bichano, mas tenho um pouco de pena dele.

— Vem cá, garotão. — Estendi as mãos devagar, tentando pegar o gato. — Vou te tirar daqui.

Ele ficou bem receoso, mas com paciência, consegui pegar ele em mãos. Com cautela, fui andando com ele até a porta dos fundos do armazém, onde eu planejava abrir e deixar o gatinho sair.

Só que, na hora que passei pela porta de metal, encontrei uma pessoa um tanto quanto suspeita pra explicar o que estava acontecendo aqui. Ela tava segurando um saco gigante de ração nos braços e estava quase caindo com o peso daquilo. Quando eu vi essa cena, não sabia onde enfiar a cara pra não ver tanta idiotice.

Eu ainda mato esse moleque.

— Marcy! Você achou o gatinho!

Pra variar, quando o felino viu o Liel, ele saiu correndo e se escondeu na esquina da cafeteria.

— Garoto, que merda é essa? Como que esse gato veio parar aqui?

— Foi no turno de ontem. Eu encontrei ele se escondendo mas não consegui chegar perto. Aí hoje mais cedo comprei ração pra ele comer.

— Aham, entendi. — A intenção é boa, mas o gato parece ter ficado traumatizado com a personalidade energética do garoto. — Cê sabe que a nossa chefe vai matar a gente se encontrar ele aqui, né? Não é a primeira vez que um desses entra no armazém.

— Sim, sim, eu sei. Mas pelo menos deixa eu alimentar ele. Ele tá magrinho. Não deve comer a muito tempo.

Olhei pro gato que estava escondido e realmente, ele não parecia bem. Até agora, ele correu por puro instinto pra se esconder, mas duvido que ia conseguir fazer isso por muito tempo.

— Tá, me dá essa ração. Vou dar um jeito nisso.

Com muito cuidado, peguei aquele saco e pedi pro demônio ficar perto de mim, sem fazer qualquer movimento brusco. Fui até o depósito de novo, peguei aquela peça que encontrei e utilizei ela com um pote pra por a comida do gato. Deixei ela ali e me distanciei, com cuidado. Pouco tempo depois, o felino veio e começou a comer, mas quando terminou sua refeição, ele simplesmente fugiu, sem deixar rastros.

— Ele fugiu! — Liel ficou frustrado. Ele tá achando que somos o que? Caridade dos felinos?

— Aquele gato deve ser do tipo medroso, por isso saiu correndo. Deve aparecer por aqui uma hora ou outra, mas não vá ficar aí esperando. Você tem trabalho pra fazer.

Por mais triste que ele estivesse, sabia que o que eu estava falando era verdade. Por conta do seu atraso, algumas pessoas tiveram que trocar suas funções na cafeteria, e geralmente isso causa uma puta dor de cabeça.

De qualquer forma, passamos pro lado de dentro. Como já estava fazendo o que seria a função do demônio, o garoto ficou responsável por cuidar da limpeza dos corredores. Depois dele ter vestido o avental na sala dos funcionários, não vi ele durante boa parte da manhã. Fiquei reabastecendo a cozinha e de quebra ainda tive que consertar a cafeteira que descobri que estava quebrada. Inclusive, aquela peça que encontrei era dela.

Quanto tudo isso terminou, fiquei no caixa. Cunningham já tinha terminado a limpeza e estava atrás do balcão, junto comigo. Pensei que estivesse atendendo, mas ao invés disso, estava com um caderno em mãos, totalmente distraído. Como não tinha ninguém na fila, aproveitei a brecha para ver o que ele estava fazendo. Quando vi a folha, me deparei com um desenho de um gato. Um pouco cartunesco, mas até que realista. Não era uma obra de arte, mas considerando o nível de detalhes, parecia que o garoto já desenhava tinha um tempo.

— É o Cappucino? — perguntei. Os traços foram feitos a lápis, então presumi que fosse o nosso novo gato pela tonalidade escura do desenho.

— Ah! — Ele tomou um susto. Não deve ter reparado que eu estava perto. — Sim, é ele. Tentei desenhar de cabeça, mas não ficou muito bom.

— Pra alguém que diz ter feito de cabeça, tá bem fiel. Que memória fotográfica boa a sua.

Não é como se tivesse muito o que dizer sobre sua arte. Minha especialidade é música. Se fosse o Alex no meu lugar, ele saberia o que dizer.

— Mas e aí? Cê desenha a quanto tempo? Nunca te vi fazendo isso.

— Tem alguns meses. Faculdade me obrigou a aprender.

— Te obrigou? — Foi uma pergunta um tanto quanto idiota. Ele faz design de moda, óbvio que ele vai precisar saber projetar e estilizar roupas. — Você falando assim até parece que não gosta do que faz.

— Nem é isso. É só que… 

Liel abaixou a voz de repente. Ele ficou meio cabisbaixo, sem dizer nada, mas logo virou algumas páginas do seu caderno e me mostrou alguns modelos de roupa que estava desenhando.

— Aqui. Minha professora tinha pedido para fazer algumas peças, mas ficou uma merda. O esboço está todo estranho. Próxima semana vai ter um ensaio fotográfico com as roupas que a turma desenhou, só que não saiu nada que me agrade até agora.

Fiquei observando tudo que ele falava e o desenho que me mostrou e entendi o que ele queria dizer. Sua arte não estava ruim, longe disso, o problema é que nada parecia muito exótico e não era chamativo. Eram roupas simples demais, algo que provavelmente eu ia usar pra passar despercebida por todo mundo. Conhecendo o moleque e sabendo o tanto que ele gosta daquelas coisas alternativas, foi uma surpresa ele não ter colocado isso no papel. Ou talvez ele não colocou por não poder ou por falta de técnica.

— Cê já tentou fazer alguma peça parecida com as roupas que você usa? Sei lá, algo mais gótico?

— É, já. Só que a professora disse que era muito exagerado. A instrução foi que o conjunto deve ser algo do dia a dia; uma coisa simples, mas com certo charme. Não entendi o que ela quer, só sei que não consigo fazer nada.

— Por que você não tenta pegar uma roupa simples como essa e trazer pro seu estilo? Sei lá, colocar mais acessórios ou coisas que valorizem o conjunto.

— Eu já tentei, Marcy. Não acho que isso vai funcionar.

— Mesmo? Então olhe isso.

Decidi pegar o caderno e o lápis da mão dele e tentei desenhar. Fiquei com uma motivação aleatória de tentar, com confiança de que iria conseguir, mas depois de alguns esboços básicos, a miniatura de roupa que desenhei tinha ficado um lixo. Não tinha volume e nem sombra. Se me dissessem que foi uma criança que desenhou isso, eu acreditaria.

— Ignore o desenho feio. — Mostrei a folha pro Liel. — Esse é o tipo de roupa que gosto de usar. Camisa de manga longa e calça. Bem simples.

— O que vejo aí é uma camisa de manga normal e um calção — tirou sarro.

— Quieto, moleque!

Já me arrependo amargamente de querer ajudar esse desgraçado.

— Se for pra usar só isso no meu dia a dia… — Continuei desenhando para ilustrar, — não vai ser nenhum pouco chamativo. Mas veja o que acontece se eu decidir juntar isso com alguns acessórios.

Tracei algumas linhas tortas e fiz um colar, uma pulseira e uma corrente, que poderiam dar um charme a mais no look.

— E voalá! Ficou algo mais atraente aos olhos, não acha? Quando quero chamar um pouco mais de atenção, foco mais nos pequenos detalhes. Funciona de certo modo e não atrai tantos olhares estranhos. É discreto.

Liel, por mais estranho que pareça, não falou nada durante toda a minha explicação. Eu comecei a sugerir já imaginando que ele fosse saber de tudo que expliquei, como um senso comum; só que ele ficou com um rosto pensativo, como se estivesse tentando entender o que eu disse. Talvez não passou pela cabeça dele tentar a possibilidade que sugeri e só teve vergonha de admitir.

Quando falei tudo o que tinha pra falar, entreguei o lápis de volta. — Tente fazer e me mostre depois. Vou avaliar. — Foi o meu aviso antes de voltar pro caixa, já que apesar de tudo, ainda estava no meu turno de trabalho. Por mais estranha que minha atitude pudesse soar pra ele, foi uma forma que pensei de retribuir por esses dias que saiu comigo pra procurar novas ideias. Não somente isso, mas de quebra, também mantinha aquela coisa de “ensinar ele a ser um humano” que falamos no nosso pacto demoníaco.

Acho que se ele quer tanto assim que eu faça isso, o primeiro passo é entender que não tem como só fazer o que a gente gosta. Odeio quando minha professora de sexta-feira enfia um trabalho nada a ver com a matéria no rabo da turma e obriga a gente a aprender tudo sem a ajuda dela. É um inferno, mas ainda assim, tem coisas legais no meio disso. Já ganhei alguns trocados pra comprar lanches e também coisinhas na internet.

É, nem tudo é tão ruim. É legal de vez em quando.

— Ei, alô? Caixa? — Demorei pra perceber, mas era uma cliente me chamando.

Durante o restante da manhã, fiquei por ali e atendi a galera, pois aparentemente o outro funcionário que trocou de função comigo simplesmente sumiu. Fiquei nessa brincadeira até dar o meu horário, ali perto das onze. Quando chegou a minha hora, simplesmente vazei da recepção e fui procurar o Liel, que por motivos óbvios, não ficou comigo o tempo todo.

Assim que nos encontramos, saímos da cafeteria e fomos pro refeitório. Ficamos um tempo lá discutindo sobre as ideias de roupas do garoto enquanto almoçávamos, até que nos separamos devido à minha aula. O que quer que o moleque tenha feito nesse meio tempo, é um grande mistério pra mim.

Depois da janta, lá pelas 18:00, nos encontramos de novo e fomos pro apartamento. Como já havia sido combinado com a galera da banda, passaríamos o final de semana lá, então eu e o demônio decidimos voltar e pegar algumas coisas para levar e também cuidar do gatinho que adotamos. Quando terminamos de fazer tudo isso, ligamos pro Aspen e, após alguns minutos, ele chegou de carro com o seu namorado e nos levou para a casa do Alex.

 

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