O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 17: Pacto Sentimental

Quando Trizz falou aquelas palavras, a única coisa que pude sentir foi um choque. 

Meu peito começou a doer tanto que jurei que ia desmaiar. Minha respiração pesou de repente e não consegui recuperar o ritmo dela. Tudo pareceu girar em minha volta por conta de uma frase.

Eu vou matar o Liel, foi o que ela afirmou com toda convicção do mundo. Sua cara estava séria, sua voz também dizia isso com seriedade. Não tinha como ela estar mentindo.

O garoto vai morrer… o garoto vai morrer. Por que pensei que essa mulher fosse agir de maneira diferente? Por que fui acreditar em suas palavras? Ela mentiu durante todo o caminho apenas para conseguir mais informações. Eu deveria ter suspeitado de algo desde o início. Nunca que uma sequestradora cumpriria com um acordo de merda.

Você é uma idiota, Marcy. Uma incompetente. Agora não tem mais o que fazer. Acho que o que me resta é aceitar.

— Um humano se importando com um demônio. Que tolo.

Eu não consegui dizer nada. Minha boca, meu corpo, tudo ficou paralisado. Só conseguia escutar.

E isso fez com que nós ficássemos em completo silêncio. A música clássica que antes estava tocando no restaurante, parecia ter só desaparecido. Provável que ainda estivesse tocando, mas não conseguia escutar mais. Minha garganta estava seca, com um gosto amargo. Queria beber água, mas não teria forças pra pedir.

— Mesmo depois de tudo que te contei, por que você ainda se importa tanto com o Liel? Não consigo entender. — Ela interrompeu o silêncio e colocou um pouco de vinho no meu copo. — Você sabe melhor do que ninguém que ele é alguém difícil de lidar e… a notícia da morte dele pareceu um soco no estômago pra você.

E ela não está errada em pensar assim, mas mesmo que ele seja alguém difícil, nunca que justificaria ele ser morto.

— Por algum acaso… — Ficou enrolando um fio do seu cabelo com o dedo, — tem algo nele que te prende?

Quando ela fez essa pergunta, veio uma resposta na ponta da língua. Por um momento, tive vontade de falar, mas não saiu. Ao invés disso, tive uma lembrança, uma que nunca saiu da minha mente.

“Em troca de aprender a ter bons modos e agir como vocês, eu serei o seu amigo e prometo não fazer nada que te incomode ou te deixe mal.”

É uma memória vivida. Aquelas palavras dele antes da merda do contrato que parecia mais uma promessa de criança, virou uma ferida eterna no meu dedo. Durante todo esse tempo, pensei que fosse uma mentira esfarrapada, que aquele pestinha iria continuar me infernizando todo dia, mas meio que as coisas não aconteceram como eu esperava.

“Obrigado pelo urso e pelo casaco. Acabei me esquecendo de agradecer.”

Continuamos implicando um com outro, como de costume, mas as coisas até melhoraram um pouco. Ainda o odeio, eu não nego, só que não acho que ele seja a mesma coisa de antes, mesmo que eu queira dar um tapa nele de vez em quando.

Quando foi que fiquei tão apegada? Na verdade, acho que esse termo é um exagero pro que sinto. O foda é que se ele for morto, eu não vou conseguir simplesmente ignorar.

E não saber o motivo disso é o que mais me dá nos nervos.

— Acho que… ele não é tão ruim assim — respondi por impulso. Não sabia a razão de dizer isso.

As minhas palavras pareceram impressionar um pouco a Trizz, que logo fez outra pergunta:

— Você realmente o odeia ou apenas finge, Marcy? 

— Não acho ele alguém horrível, só me dá nos nervos o tempo todo.

Eu fechei os olhos e respirei fundo. Ainda me sentia sobrecarregada com tudo o que estava acontecendo. Antes que eu pudesse raciocinar, comecei a escutar um barulho estranho que chamou minha atenção.

Clap! Clap! Clap!

Quando olhei, ela estava batendo palmas.

— O que significa isso? — Voltei a encará-la, sem jeito.

— É tão difícil assim admitir o que sente?

Isso parecia mais uma piada dela pra aliviar o clima de merda. Assim que parou de bater as mãos, ela voltou a beber do seu vinho. Não sei o porquê, mas senti que sua cara era a de alguém que gostou do que ouviu. Não parecia que era a mesma pessoa que disse que ia matar o Liel a alguns minutos atrás.

— Sabe por que te perguntei isso, Rosenheim? — Ela começou a balançar o copo em movimento circular. — Toda essa história é muito intrigante. Você diz odiar alguém, sabe o quão problemática é esse alguém, mas mesmo assim, continua perto.

Trizz se inclinou pra frente, se apoiando na mesa.

— Eu estive observando vocês dois. O dia que brigaram na cafeteria, o que foram pro mercado… Vi tudo. Desde que começou a conviver com ele, é como se toda esse papo de se odiarem fosse só uma faixada. Não senti a mesma raiva de antes em você agora. Cê já deve ter percebido que aquele menino não é normal, né?. Ele não faz rituais como nós, não se disfarça ou esconde sua identidade corretamente e as vezes nem age como um demônio de fato. Ele só… — Trizz colocou a taça por cima da mesa. Enquanto a segurava, começou a apertar com um pouco de força, — não se parece com a gente.

Seu olhar ficou monótono. Não no sentido de tédio, mas sim de parecer irritada com alguma coisa.

— O que isso quer dizer? — perguntei.

— Você ainda não entendeu? — decepcionou-se. — Sigh. Marcy, você realmente conhece o Liel? Ou apenas acha que o conhece?

Ainda não entendo onde ela quer chegar. Tudo só virou um grande enigma de repente e isso começou a me deixar puta.

— Eu acho que o conheço sim.

— Não teria tanta certeza se fosse você.

— Se você vai ficar duvidando de mim, por que ainda pergunta, cacete? — indaguei.

— E o que te garante que até agora tudo que ele te contou é verdade?

A esse ponto, eu já tinha até me levantado da cadeira e tava pronta pra descer a porrada nela, por mais inútil que fosse.

— Demônio do caralho, ele já me contou sobre a vida dele. Ele não mentiu sobre nada! — Bati a mão no peito, com confiança no que dizia.

— E ele te contou tudo mesmo, ou tem algo que ainda te incomoda em toda essa história?

— É claro que…

Quando ela falou isso, antes mesmo de continuar o que ia falar, eu me calei. Não passou pela minha cabeça que muitas coisas que o garoto me contou poderiam ser só a “faixada” de algo maior. Pior do que isso, que sou apenas uma humana que pode ser facilmente usada por um demônio se ele quiser, mesmo que estejamos nos referindo ao Liel.

Parando pra pensar, o que sei é um pouco de sua trajetória até aqui e os seus gostos. Viveu somente com o pai e saiu de casa quando ficou mais velho. Ele sempre viveu no mundo dos humanos, então é provável que tenha fugido do inferno por ter quebrado regras ainda novo e ser um demônio diferente. Ou não.

E falando nisso, quem são os pais dele? Se não me falhe a memória, sempre que toquei num tópico desse, ele fugiu do assunto ou pareceu desconfortável pra caralho. Parecia que eu tava cutucando uma ferida sua sempre que tentava descobrir um pouco mais desse assunto. E o que faz ele ser anormal? Pensei que todos os demônios fossem frescurentos com comida e tivessem manias estranhas. Pelo visto, as coisas não são do jeito que pensei.

Que inferno… — Me sentei de volta na cadeira.

Pensei que Trizz fosse dizer mais alguma coisa, mas ela ficou em silêncio, observando minha feição frustrada. Ela ganhou a discussão, mas não pareceu feliz com isso.

Pouco tempo depois, antes mesmo do que imaginei, o garçom começou a vir em nossa direção enquanto empurrava um carrinho. Quando se aproximou da nossa mesa, ele pegou os pratos e os talheres e também a comida que pedimos, ajeitando tudo na mesa.

— Aproveite para comer um pouco, Rosenheim. Imagino que esteja com fome.

Por mais certeira que a loira tivesse sido em saber o tanto que minha barriga roncava, nunca que eu conseguiria colocar algo na boca. Era um filé à parmegiana, bem diante dos meus olhos. Dava agonia de ver pois não conseguia parar de salivar, só que se eu comesse, provavelmente vomitaria.

Ainda não me esqueci do que ela disse.

— Eu… vou esperar um pouco — afirmei.

Antes do nosso atendente sair, ele colocou um terceiro prato na mesa, de um dos lados que tinha cadeira. Imaginei que fosse pra servir de apoio pra cortar a carne ou separar o arroz, mas considerando que só tinha eu e Trizz aqui, não seria necessário.

Foi engano do garçom? Pois logo depois da nossa mesa, ele foi em outra deixar a comida de outros clientes. Se bem que não faz sentido; não deixariam o atendente cometer um deslize desses, ainda mais em um restaurante tão caro. Se fosse pra trazer outro prato, o cliente teria pedido. Até onde eu saiba, Trizz não falou nada na hora que entregaram o cardápio pra ela.

Será se…

Tururu! Tururu!

De repente, um telefone começou a tocar. Não era o meu, ainda mais porque o som era de um daqueles antigos.

— Alô? — Do nada, a loira puxou um daqueles telefones flips da década passada. Só podia ser isso mesmo. — Sim, a gente tá aqui. Pode deixar ele entrar.

Mais alguém viria para a nossa mesa, um convidado da Trizz. Mas quem poderia ser a essa altura do campeonato? Mais um demônio pra me interrogar?

Independente de quem fosse, chamou minha atenção. Fiquei olhando fixamente para a porta dupla de madeira do salão, com uma certa expectativa. Conforme os segundos iam passando, parecia que a tal pessoa que a loira convidou nunca ia chegar. O corredor era longo, então dependendo do ritmo que a pessoa andasse, demoraria um tempinho.

No fim, escutei a tranca. Quando a porta abriu, de longe, só deu pra ver um cabelinho curtinho e preto. Não dava pra saber quem era, mas era uma pessoa baixinha. Conforme foi se aproximando, fui notando uns detalhes vermelhos no cabelo da pessoa. Chegou um pouco mais perto e enfim senti a presença familiar…

— L-Liel?!

Eu me levantei na hora e dei um berro quando o vi. Assim que escutou minha voz, ele veio correndo até a nossa mesa.

— Liel, você está bem?! — Segurei seus ombros e o puxei pra perto. Averiguei seu braço, rosto e pescoço e não parecia ter nenhuma marca de agressão ou sequestro.

— Ei, Marcy! Eu estou bem. Por que você tá me olhando desse jeito?

— Espera, como assim? Você não tinha sido…?

Antes que eu pudesse terminar de falar, Trizz chamou nossa atenção com um sshhh enquanto colocava o dedo em frente a boca. Ela fez um sinal com a mão para que nos sentássemos para comer, então eu e o Liel só obedecemos, pois tinha uma galera olhando pra gente depois do escândalo que fiz.

Enquanto comia o filé, ainda um pouco contra minha própria vontade, algo ficou martelando na minha cabeça: que porra acabou de acontecer? Primeiro, fui perseguida por uma loira do capeta que, por algum motivo, era conhecida por todos os meus colegas; depois fui praticamente espancada no meio do corredor da universidade por um demônio e simplesmente ignoraram; e agora o meu amigo que jurei ter sido sequestrado está do meu lado batendo um rango como se nada tivesse acontecido. O quê?!

O pior disso tudo foi que após o garoto chegar na mesa, ele e a Trizz começarem a conversar casualmente. Tipo, agora eles se conhecem? Eu to alucinando nesse caralho? O que é coisa da minha cabeça e o que é real?

Sinceramente, eu desisto de entender. Liel está aqui sem nenhum arranhão, então já fico aliviada por causa disso. Acho melhor eu só aproveitar minha comida em paz e fingir que foi outro dia bizarro da minha vida.

 

═─────── ☕︎☕︎☕︎ ───────═

 

Por volta de uns trinta minutos depois, com o Sol já quase se pondo, eu, a loira e o garoto terminamos de comer e fomos em direção à saída do restaurante. Durante todo caminho do corredor, fiquei vigiando os dois. Sei lá, vai que a Trizz decidia dar a louca de sequestrar o moleque de novo. Mesmo que não fosse servir de nada, queria estar aqui pra impedir.

E por um momento pensei que isso tinha acontecido. Quando passei pela entrada, só eu e a demônio estávamos lá. Olhei pro lado, olhei pro outro, e nada do baixinho. Pensei em voltar pra dentro do restaurante pra caçar ele, mas fui interrompida.

— Relaxa, ele só foi no banheiro.

Tive a sensação dela estar falando a verdade. Não que isso fosse sinônimo dela realmente estar sendo sincera comigo, pois já vi do que ela é capaz. De qualquer forma, preferi esperar. Ficamos caladas todo esse tempo, até que a loira decidiu abrir a boca:

— Você não tem nenhuma pergunta pra fazer? — Ela passou a mão sobre o cabelo na região da testa, escondendo os seus chifres.

— Na verdade, tenho várias, mas acho melhor só saber daquilo que é realmente importante.

Ela não deu nenhuma resposta. Ao invés disso, se encostou na parede de fora do restaurante e colocou as mãos no bolso do seu moletom cinza. Estava esperando eu falar.

— Então… O que foi isso tudo? As pessoas nos ignorando, todo mundo te conhecendo e…

— Ah, está falando disso? — Ela estralou os dedos e, de repente, algumas pessoas do outro lado da rua começaram a me olhar com nojo. — É minha habilidade. Não se preocupe, eles não viram nada que você viu.

— Isso é algum tipo de ilusão? Por que aquela galera tá me olhando estranho?

— Se fosse uma ilusão, eles não estariam reparando o quanto você está imunda com essas roupas

Acho melhor eu passar pra próxima pergunta. Daqui a pouco, vou receber um diagnóstico de esquizofrenia num psiquiatra por causa dessa mulher.

— E sobre aquela coisa de… matar o Liel? Você ainda vai…?

— Esquece isso. — Ela tirou um pirulito do bolso e colocou na boca. — Em teoria, eu deveria fazer isso, mas mudei de ideia.

Ah, ótimo! Ela teve piedade de mim. Já posso colocar mais um na lista dos demônios que encontrei e que não me mataram.

— Só acho que devo te alertar de uma coisa. — Trizz se desencostou da parede e me encarou de frente. — Tudo que acontecer a partir do momento que eu não estiver mais aqui, é responsabilidade sua. Mantenha seu demônio de estimação na coleira, ou na próxima vez que alguém vier atrás dele, não serão tão gentis quanto eu fui.

Sua voz tinha um tom bem sério. Foi um aviso e uma ameaça ao mesmo tempo.

— E mais uma coisa. — Com a outra mão, a mulher me entregou um cartãozinho com um número de telefone. — Se você pretende ficar perto dele, saiba o que de fato ele é para não acabar igual os outros. Acredite em mim, cê vai precisar saber bem mais do que só um pouco da origem dele.

A sensação que ela me passava era que eu estava sendo testada, tipo quando um cara quer convencer o pai da garota que ele gosta a deixar eles namorarem. Que tosquice.

Depois dessa conversa estranha, Trizz saiu andando e logo entrou na primeira esquina que tinha à nossa frente. Ela só acenou enquanto saia; nem se deu o trabalho de se despedir. Quando ela entrou no beco, sua presença sumiu de repente; até olhei para ver se ela ainda estava lá, mas como imaginei, ela também tinha sumido, como um fantasma.

E antes que pudesse tirar minhas próprias conclusões, só escutei Liel me chamando na entrada do restaurante. Ele veio até mim e ficou olhando pros lados, confuso. Acho que estava procurando a loira, então fiz o favor de avisar que ela já tinha saído.

— Ei, aquele jantar estava bom, né? — O demônio estava de ótimo humor. — Foi a Trizz que pagou? Onde será que ela arrumou tanto dinheiro?

— Sei lá. Vai ver ela é filha de um ricaço e ganhou um cartão de aniversário.

Parando pra pensar, ninguém veio cobrar a gente do valor da comida e nem cheguei a ver ela pagando o jantar. Quando foi que ela pagou?! Talvez seja algum dos truques dela. Tá, que seja.

— Aliás, Marcy. A gente não tinha combinado de sair hoje pra ter mais ideias pra sua música?

— Caralho! Eu me esqueci. — Óbvio que não. Foi culpa da Trizz. — Podemos ver isso amanhã? Hoje foi um dia cheio. Tô morta.

Ele ficou com uma carinha triste, mas logo vi um sorriso de filha da puta surgindo em seu rosto.

— Se você me levar pra tomar sorvete…

— Vai se foder.

Nesse ritmo, daqui a pouco vou ter que pedir dinheiro emprestado de novo. Mas tanto faz, depois do inferno de hoje, não é um sorvete que vai tirar o meu sono. É melhor voltar pra casa e descansar.



Comentários