O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 16: Advogada do diabo

De todas as possibilidades que pude imaginar em minha vida, a última delas seria encontrar outro demônio.

Sim, mesmo depois de ter me acostumado em andar pra cima e pra baixo com o Liel, ainda me surpreende quando descubro algo a mais sobre esses seres. Com os pactos, por exemplo, foi desse jeito; agora, minha reação não foi muito diferente.

Quando Trizz mostrou suas asas e chifres, aquele peso que senti antes ficou ainda maior, até o ponto que eu me ajoelhei no chão. Tentei pensar alguma maneira de fugir dela, mas era inútil.

Eu conseguia escutar gritos, muitos gritos. Era impossível de raciocinar em meio a tanto barulho. A única coisa que vinha em mente era os milhões de coisas que a loira poderia fazer.

— Você é mais resistente do que eu pensava. — Trizz falou em tom de tédio. — Que saco, acho que o único jeito de te levar vai ser te dando uma surra.

A atitude dela, por mais do tipo valentona que parecesse, me trouxe uma sensação de desconforto. Não que ela fosse uma pessoa assustadora. O que me dava nos nervos era a falta de controle, sensação de impotência.

Sensação essa que me fez sentir medo.

Quando ela se agachou e me puxou pela gola da camisa, só fui capaz de fechar os olhos e esperar a pancada. Primeiro veio um tapa; depois outro; depois disso, um empurrão que me derrubou; após cair, ela continuou me chutando e me socando até cansar.

Não tinha nem como me defender. Na minha cabeça ficou se passando uma contagem de quanto tempo fiquei nisso, mas cada golpe fazia o contador reiniciar. Não sei o quanto demorou essa surra, mas pra mim, foi uma eternidade.

Qual foi a última vez que passei por isso? É até difícil lembrar, pois foram poucas. Mas é humilhante. Não posso fazer nada a respeito, e seja lá o que ela queira, com certeza vai arrancar de mim.

— Ainda respirando? — Ela aproveitou que eu estava caída no chão de costas pra cima e me usou de banco. Só consegui dar um grito pela dor que senti devido ao seu peso. — Vem cá, qual o problema em só me seguir e responder algumas perguntas? Cê não tá ocupada, está?

Tentei responder, mas o meu fôlego foi pro caralho. Tomei umas boas pancadas na barriga antes dela ficar por cima. Continuei puxando ar pros meus pulmões pra ver se pelo menos conseguia mentir, mas ela tirou suas próprias conclusões.

— Ah, deixa eu ver se eu entendi. Você tem um compromisso com aquele demônio, não é? — De repente, ela sorriu com interesse. — Aqui, deixe eu te mostrar algo.

Antes que eu pudesse me questionar de como ela sabia dessa informação, Trizz colocou a mão no meu bolso e pegou meu celular. Ela começou a fuçar sem parar algo pela tela. De relance, a única coisa que consegui ver foi ela discando no telefone.

Depois que ela digitou o número, ela iniciou a ligação. Passou-se pouco tempo e ela logo colocou o celular no meu ouvido para eu escutar. O primeiro som que saiu do alto-falante foi:

Hmm… Uhhh!

Era alguém tentando gritar. Dava pra escutar umas leves pancadas e a respiração pesada do outro lado. Tentava falar, mas parecia que sua boca estava amarrada.

Não tive coragem de falar nada. Fiquei me perguntando o que significava aquilo, mas logo tive minha resposta.

M…Marcy… Socorr…

E a ligação desligou.

Fiquei paralisada. Não sabia se a voz que tinha escutado pedindo ajuda era realmente quem eu estava pensando ou se era outra alucinação. Nem fodendo que aquela voz era a dele. Nunca que ele se deixaria ser levado dessa forma por alguém que essa loira do cacete ordenou.

— Só pra sanar sua dúvida. — Trizz notou o choque em meus olhos. — Aqui está a última ligação e o nome do contato.

Não me restou dúvidas quando ela me mostrou o telefone. A última ligação feita no meu celular agora pouco dava no número que não acreditei que fosse. E a voz…

E a voz era do Liel.

— O que que você…?! Cof, cof! — Antes que eu conseguisse dizer alguma coisa, fiquei sem ar por um momento. — O que você quer, caralho? O que você vai fazer com o Liel?!

— Não me faça repetir, humana. E sobre seu amigo, ainda não tenho planos. Só sei que as coisas não ficariam muito legais pra ele se você continuar sendo teimosa.

Ela não estava brincando. Diferente das outras vezes que nos encontramos, seu tom de voz e seu olhar não eram de sarcasmo. O que quer que ela dissesse que planejava fazer, seria verdade. Tudo era uma brincadeira, um jogo, e eu estou fazendo parte dele e tenho que seguir as regras.

Agora não tem como tomar nenhuma decisão precipitada. O garoto está sendo feito de refém.

Minha alternativa foi negociar. Tentei procurar uma maneira de conseguir falar estando naquela situação e perguntei quais eram as intenções dela para onde quer que me levasse. De novo, ela só repetiu que fazer algumas perguntas, mas o caralho que ela só ia querer isso.

Fiquei um tempo pensando e respirei fundo. Ainda estava relutante, com medo, mas não tinha muito o que fazer. Era melhor entrar no jogo dela.

— Se eu for com você, vai deixar o Liel em paz?

Seu sorriso ficou mais destacado em seu rosto quando fiz a pergunta. Ela fechou os olhos, rindo em silêncio. Puta proposta idiota a minha, mas fazer o que.

— Vou pensar no seu caso.

No final, ela aceitou.

Sem muita escolha, minha única opção foi acompanhá-la. Depois de muita dificuldade, consegui ficar de pé, mas isso não mudou o fato que ela teve que me arrastar até metade do nosso percurso por eu mal conseguir andar. No final, eu me sujei inteira. Minha calça e minha camisa foram pro caralho e meu cabelo ficou todo bagunçado.

Quando chegamos no destino, notei que tinha algo de errado. Era uma zona nobre da cidade, em um local bem diferente dos que eu frequentava. Pela localização, parecia ser o lado oeste, ou seja, na mesma direção dos apartamentos universitários, só que muitos mais longe e, obviamente, fora do campus. Olhando em volta, só tinha estabelecimentos e lojas de grife ou de marca. Nunca que eu viria aqui em uma situação normal do meu dia a dia.

E falando nos estabelecimentos, eu estava em frente a um deles. Nesse caso, era um restaurante, conhecido como Boutary Restaurant, um dos melhores da cidade por servir comida francesa. Sua fachada luxuosa, com uma entrada com uma porta de vidro imensa e ainda guardada por seguranças, entregava o status do local.

Assim que chegamos, a primeira coisa que encontramos foi uma sala fechada. Era o primeiro cômodo do restaurante, onde ficava um homem de colete formal — terno sem mangas — atrás de uma pequena bancada de madeira. Quando ele notou nossa presença, ele chamou a atenção de Trizz, que logo me puxou até perto. 

— Boa tarde, senhoritas. Possuem algum horário reservado?

É, era de se esperar. Eles prezavam tanto pela qualidade que só funcionavam com horário marcado para os clientes. Nunca que iam deixar qualquer pessoa entrar.

— Sim — Trizz respondeu.

— Me diga seu nome, por gentileza.

E ela falou: Trizz Deveraux. O homem foi mexendo em alguns papéis em cima de sua bancada e logo encontrou o que procurava.

— Trizz Deveraux. Reserva feita para o dia 20 de Maio. Sua mesa é a de número 9, senhorita. Seja muito bem-vinda.

Terminada as palavras do atendente, alguns seguranças que estavam perto dele se aproximaram da gente e começaram a nos guiar. Passamos por uma porta dupla de madeira, essa que dava num extenso corredor que parecia o de um hotel cinco estrelas. No final, uma outra porta dupla de madeira nos aguardava, essa a qual os dois seguranças se posicionaram próximos, um de cada lado.

E, em um gesto sincronizado, cada um deles abriu uma aba, revelando o que era de fato o restaurante.

Quando as portas se abriram, deu para ver que a área era bem grande. Todas as cadeiras e mesas eram de madeira, mas daquelas que pareciam ser bem refinadas e do tipo nobre. Além disso, havia uma grande janela que tomava de conta da parede inteira. Dava pra ter uma vista completa da avenida da cidade com os prédios ao fundo.

Foi perto dessa paisagem que estava a mesa que Trizz reservou. Quando me aproximei, ela fez questão de afastar a cadeira para mim e esperar eu me sentar, antes que ela fizesse o mesmo. Assim que me acomodei, nos encaramos durante um tempo, em silêncio. De repente, pequenos rádios que estavam no teto começaram a tocar uma música clássica, que foi o que deu início à nossa conversa.

— Então, senhorita Marcy. — Ela colocou os cotovelos por cima da mesa e entrelaçou os dedos das mãos, apoiando o rosto por cima delas enquanto sorria. Apenas os seus chifres estavam visíveis. — É a primeira vez que vem num lugar como esse?

— Um amigo meu já me levou pra um restaurante chique antes, mas faz um bom tempo.

Enquanto falávamos, o garçom veio e entregou o cardápio para ela.

— Ah, sério? Então não acho que comida de gente rica é o seu tipo.

Pra falar a verdade, o arroz e o feijão que minha mãe faz dá de 10 a 0 em quase todos os pratos que cheguei a experimentar por conta do Alex. Se fosse pra me agradar, teria me levado num restaurante convencional.

— Mas me diga… — Trizz entregou o cardápio de volta para o garçom. Apenas apontou o que queria, — como anda sua vida? Suas notas na faculdades, seus amigos, seu trabalho…?

— Por que você quer saber sobre isso? Tem alguma relevância no que você quer?

— Ei, ei! Calma, Rosenheim. Acabamos de chegar. Aproveite o clima e a conversa. Só estou querendo te conhecer.

Eu perdi a calma por um momento. Óbvio, o moleque tá literalmente em cativeiro. Como que vou me acalmar? 

— Vou ser mais direta, então. Como anda sua vida depois que você conheceu o demônio? Ele tem sido muito problemático?

Ela está aqui em busca de informações sobre ele, como pensei. É melhor tomar cuidado com o que irei dizer. 

— Sendo sincera, ele é um arrombado de merda, o tipo que me irrita só de respirar perto.

— Nossa, imagino que seja difícil lidar com ele. Liel sempre foi muito levado em algumas coisas. — O garçom logo chegou e serviu um vinho na mesa. — Mas eu tenho uma dúvida, como foi que você se conheceram?

— Foi numa cafeteria próxima da nossa universidade. Um dia fui lá pra pedir um café e acabei encontrando ele.

— Ah, é? — Sua voz mudou de tom. — Interessante. E o que ele estava fazendo lá? Pelo o que eu saiba, Liel não se dá bem com comida.

— Ele estava trabalhando como garçom. Pensei que nem ia mais ver ele, só que no dia seguinte, colocaram o moleque como meu colega de quarto.

— Então foi assim que você começaram a viver juntos…

Depois de ter contado um breve resumo sobre minha vida, de novo, ficamos caladas. Toda essa conversa me fez perceber que ela já tinha um histórico de quem o Liel é. Não me atrevi a falar nada sobre, muito menos perguntar, pois independente dela o conhecer ou não, não mudava o objetivo dela de me interrogar para saber mais sobre ele.

A essa altura do campeonato, todo meu cuidado de não falar alguma besteira é em vão. Ela já tem uma ideia do que está lidando. Que merda! O que eu faço?

— Marcy, você sabe por que eu te chamei pra vir aqui?

— Você disse que queria me fazer perguntas — respondi de maneira monótona. — Era mentira?

— Não, mas meu foco não é só te interrogar. — Ela deu um gole do vinho que estava em sua taça. Depois disso, deixou o copo de volta na mesa. — Sabe, acho que é a primeira vez em muito tempo que vejo um caso como o seu. Um humano e um demônio convivendo juntos sem um consumir ao outro.

— Está me dizendo que demônios comem humanos…?

— Existem alguns que gostam de fazer isso, mas não é esse tipo de consumir o qual me refiro. 

Por alguma razão, tive outro mau pressentimento. Quando ela ia continuar sua fala e se inclinou sobre a mesa, minha barriga começou a se embrulhar.

— Estou falando de algo que você já conhece, Rosenheim. Algo que, inclusive, você e o Liel já fizeram. Não vem nada em sua mente quando falo isso?

Por mais óbvio que pudesse ser, não consegui pensar em nada. Minha falta de resposta fez com que ela simplesmente puxasse meu braço por cima da mesa e o virasse pra cima. Não entendi a razão disso, mas quando ela passou o dedo por cima da palma da minha mão, foi que caiu a ficha.

— Contratos. — Ela tocou com o dedo por cima do desenho no meu indicador enquanto segurava o meu pulso. — Isso é o que define a hierarquia demoníaca. É a nossa principal fonte de poder.

Ela se afastou depois disso, me soltando. Quando se encostou na cadeira de novo, cruzou as pernas e voltou a me encarar com certa seriedade.

— Toda vez que realizamos um contrato, a lógica é que iremos receber alguma coisa em troca, mas em contrapartida, perdemos algo. Você já deve saber disso, eu imagino.

Só acenei pra cima e pra baixo com a cabeça, concordando.

— E se eu te falar que… É possível realizar um contrato sem perder nada? Você acreditaria?

Baseado no histórico de coisas bizarras que já aconteceu, não duvidaria nenhum pouco.

Sigh…— Ela suspirou. — Vou te contar uma história. Acho que vai ser mais fácil de você entender.

Apenas me encostei na cadeira e comecei a escutar atentamente. Então, quando viu que estava prestando atenção, ela começou:

“Como já te falei, contratos são a nossa fonte de poder, mas também definem nossa hierarquia. Desde que existimos, a talvez mais de milênios, tivemos isso como uma regra; uma crença imutável. Uma coisa em troca da outra. Independente do objetivo de um demônio, ninguém até aquele tempo nunca ousou passar por cima disso. As coisas mudaram não muito tempo depois…

“Isso foi a 300 anos, quando um dos nossos veio até o mundo dos humanos. Até então, demônios não eram restritos de saírem do inferno e podiam vagar pelo mundo desde que não tivessem suas identidades reveladas. Um demônio, bem jovem, talvez até mais novo que você, amava viajar por aqui. Por conta da sua personalidade, ele era o que tinha menos contratos. Alguém doce, gentil, nem parecia que era um demônio de tão amigável que ele era.

“Só que tudo isso mudou quando ele se relacionou com uma humana. Ele firmou um pacto de casamento com ela, como nós também costumamos fazer. Pouco tempo depois, já casados, ele percebeu que não sofria as consequências de seu contrato. Quando sua mulher precisava de sua presença e ele estava ausente, nada acontecia; quando um desrespeitava o outro, só a jovem sofria.

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias de nossa vida. Uma grande balela. Todos esses acontecimentos o fizeram tentar firmar um contrato com outro humano, dessa vez forçado e com outros requerimentos. O resultado, assim como antes, foi o mesmo. Ele não precisava dar nada em troca. Se ele, de alguma forma, não desejasse ceder a sua parte, poderia fazer quantos pactos quisesse. E foi a partir disso, que todo o alvoroço começou.

“Ele começou a ficar insano. Mais e mais humanos, todo santo dia, iam perdendo sua humanidade em troca de concederem mais poder a esse demônio. Não demorou muito para que batesse o recorde já registrado de contratos feitos por todos os demônios do inferno em um só dia. As autoridades, os Sete Príncipes, que até então nunca tinha visto eles em ação, decidiram tomar uma atitude. Como punição, o capturaram e o prenderam

“No Grande Corredor do Julgamento, na vigésima segunda camada do inferno, ele foi julgado e condenado. Seus chifres foram arrancados à força, bem como suas asas. Seus contratos, todos marcados em sua pele, foram queimados e, por fim, ele foi expulso do outro mundo, fadado a viver na Terra até o dia de sua morte.

“Um ano depois desse incidente e outros que vieram a surgir, nossas leis foram refeitas. Nossa liberdade foi tirada e tudo se tornou uma questão de fazer contratos. Nosso cargo, nossa influência, tudo, tudo era definido pelos pactos. Antes, era apenas uma questão de número, agora, definia o valor da nossa vida. Essa foi só a primeira mudança, as outras e mais impactantes vieram logo depois.

“Uma delas é a de que demônios não poderiam vir ao mundo dos humanos sem permissão de um dos lordes ou alguém com muitos contratos. Mesmo com a passagem livre para a viagem entre mundos, o máximo de tempo que poderíamos ficar aqui era de duas semanas. Em casos raros, poderia se estender, mas é muito improvável que façam isso.

“Com a existência dessa regra, uma outra foi estabelecida: a relação entre demônios e qualquer outra raça, principalmente os humanos, se tornou proibida, independentemente do tipo. Qualquer tipo de contato físico, sexual ou contratual deve ser punido e repudiado; a punição é a mesma que te falei mais cedo.

“E a última na lista das duzentas leis, que foi criada devido aos casos mais recentes e também ao que diz respeito ao seu amigo…

Ela entrelaçou os dedos.

“É a dos demônios não-puro; os que fogem o padrão. Qualquer descendente fruto de uma relação entre um demônio e um humano ou qualquer um dos nossos que apresente um comportamento anormal de instabilidade e falta de razão, deve ser caçado e morto.”

Liguei os pontos na minha cabeça sobre toda essa história. Estar no mundo humano, realizar um contrato com um humano, ter um comportamento que foge o padrão…

— Por acaso, você…? — preferi não acreditar. Comecei a sentir uma tontura só de imaginar a possibilidade do garoto ser caçado.

— Marcy, acho que já ficou bem claro qual é meu objetivo aqui…

Trizz me olhou no fundo dos olhos e disse: — Eu estou aqui para matar o Liel.



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