O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 14: Adorno violeta

Trimm! Trimm! Trimm!

De novo, outro dia. Apesar da vontade que tenho de dizer que esse som de alarme todas as manhãs é um pé no saco, hoje não achei irritante. Quando o celular tocou, me sentei na cama e me espreguicei, levantando meus braços e tirando toda aquela sensação de peso do corpo. Assim que terminei de fazer isso, me levantei e fui me ajeitar, pois hoje era outra dia de meio de semana.

Como era terça-feira, eu era obrigada a ficar de manhã no Centro Acadêmico na universidade, especificamente das 8:00 até às 11:00. Como acordei às sete, os primeiro vinte minutos foram apenas para me arrumar. Tomei um banho, arrumei o cabelo e vesti as roupas que sempre gosto de usar: camisetão, calça larga e qualquer tênis que combine. Depois que terminei de fazer todas essas coisas, saí do quarto e fui para a cozinha preparar meu café.

Só que, no meio desse caminho, por alguma razão, encontrei o Liel em casa. Sempre que acordava, ele nunca estava aqui devido às diferenças de horários da faculdade. Imaginei que estivesse lá e não em frente à televisão velha do cômodo dando tapinhas nela. Talvez estivesse tentando fazer com que ela funcionasse, mas era claro que isso não ia dar certo.

— Essa merda tá quebrada? — O demônio parou por um momento de bater na televisão de tubo, olhando ao redor. — Não era só apertar o botão que isso funcionava?

— Acho que não é na base do tapa que você vai ligar ela.

O garoto escutou minha voz e logo notou que eu estava ali, de braços cruzados, apenas observando.

— Mas e aí? O que você está fazendo aqui pela manhã? Hoje você não tem aula? — perguntei enquanto me desencostava da parede e me aproximava.

— Ah, não. O professor de hoje cancelou. Como tenho a manhã inteira livre, queria fazer alguma coisa pra não morrer de tédio, aí vi que tinha essa tralha aqui na sala. Só que ela não tá funcionando!

Enquanto ele berrava, fui na parte de trás do eletrônico ver se não tinha nenhum cabo com defeito. Na verdade, não tinha nada de errado, exceto o plug que não estava conectado na tomada. Preferi ignorar tamanha falta de atenção e apenas liguei em segredo, sem dizer nada pro moleque.

— Cara, cê consegue ver o que você quiser pelo celular. Uma televisão é quase inútil hoje em dia. — Andei em direção à cozinha, ainda falando. — Deixa isso pra lá. Você não vai morrer por causa de uma TV.

Minha fala pareceu ter sido o suficiente para frustrá-lo, pois logo escutei o garoto se jogando no sofá. Quando olhei por cima do balcão que dividia os dois cômodos, notei a sua feição irritada, igual a de uma criança quando não está passando seu desenho favorito. Fiquei pensando em como não fazer o garoto ficar mais puto do que já estava, mas não veio nenhuma ideia senão optar pela pergunta mais óbvia que alguém que mora com você faz pela manhã:

— Ei, Liel. Cê já tomou café?

Não obtive resposta. Ao invés disso, ele só virou a cara, com os braços cruzados.

Por que esperei que a resposta seria diferente? Não era de hoje que Liel sempre era um frescurento pra comer. Nossas refeições durante a semana ele comia pelo menos o almoço e a janta que a universidade oferecia; já nos finais de semana, onde tínhamos que fazer tudo em casa, era uma odisseia inteira pra ele colocar algo na boca que não fosse chocolate. Eu até me dava o esforço de cozinhar algo que fosse do seu agrado, mas muitas vezes ele nem beliscava o prato.

As vezes isso me fazia pensar que aquele papo de o corpo de um demônio funcionar de maneira diferente era pura balela. Talvez fosse verdade, só que pela sua atitude, parecia mais outra desculpa esfarrapada para não comer.

De qualquer forma, mesmo ele dizendo que não tomava café pela manhã, ainda me arrisquei a perguntar o que ele gostava. O moleque respondeu “doce”, e é óbvio que eu não ia levar essa resposta ao pé da letra, muito menos dar guloseimas pro tampinha comer às 7:30 da manhã. Pra não desagradar seu paladar infantil, fiz um achocolatado, que seria menos prejudicial, e depois coloquei alguns pães na sanduicheira para ele ter o que comer.

Em poucos minutos, tudo ficou pronto. Com o copo e o prato dele em mãos, fui até a sala e deixei tudo em cima da mesinha que ficava perto do sofá.

— Se realmente não estiver com muita fome, pelo menos belisque. Vai melhorar esse seu humor de criança.

Ele apenas me deu língua e voltou a ficar abraçado com a almofada, olhando de canto para a comida.

Não tinha tempo pra sua chatice, pois hoje de manhã tinha obrigações como uma estudante universitária fodida. Então, só ignorei e voltei para a cozinha, onde fui preparar algo para comer e não desmaiar na hora que colocasse os pés fora de casa.

Enquanto fritava alguns ovos, peguei o celular para ver se tinha alguma notificação. Quando liguei a tela, como era de se esperar, havia algumas mensagens da minha mãe e também uma conversa rolando num grupo da faculdade. Fui descendo a tela para ver qual era a fofoca da vez e, na mensagem mais recente, encontrei uma do professor da matéria que eu teria aula hoje. O recado dele era simples e direto: as aulas de hoje haviam sido canceladas e haveria reposição em algum outro momento.

E óbvio, como qualquer jovem adulto cansado, isso foi uma ótima notícia. Não me importava de ter que pagar aula em outro horário. Desde que não fosse na terça-feira de novo, que sempre é o dia mais cansativo da semana devido às aulas e ao meu trabalho, estaria de boas. Hoje eu poderia me dar o luxo de trocar de turno e ter a noite para descansar ao invés de ter que limpar maquinas de rosquinhas.

— Marcy? Cê vai sair? — Liel perguntou ao ver eu passando para o quarto e voltando com o case da minha guitarra e outras coisas em mãos.

— Vou ir pro Centro Acadêmico daqui a pouco. — Voltei para a cozinha após isso e comecei a comer a minha comida que estava em cima do balcão. — Vou ter tempo de sobra pela manhã, então vou tentar elaborar algumas coisas.

— Mas e sua mochila? Você não vai voltar pra pegar ela?

— Não. Não vou precisar. Hoje nem vou ter aula mesmo.

Ele ficou olhando para mim fixamente por um tempo.

— Marcy, eu posso ir com você?

— Pro Centro Acadêmico? Nem a pau. Só pra você aprontar uma igual ontem e quase foder com a gente?

— Ei! Aquilo foi sem querer! Eu só queria pegar o urso na prateleira!

A afirmação dele foi tão duvidosa que até meu café doce ficou amargo. Era óbvio que levar um tapinha desse pra um lugar tão importante era pedir pra me lascar, ainda mais se ele quebrasse algo. Mesmo imaginando que ele fosse insistir, ainda neguei e, de novo, acabei cedendo. Dessa vez, o moleque ficou com cara de gatinho triste, o que fez eu me sentir a pior pessoa do planeta por não deixá-lo vir comigo.

Puta que me pariu… — Coloquei minha mão sobre a testa. —  Tá, tá legal. Eu posso te levar. Só me prometa que não vai sair se transformado do nada e causar problemas pra gente, entendeu? A galera da coordenação é chata pra cacete.

Sua feição alternou para a de um sorriso genuíno, aquele que vai de um canto ao outro da boca. Minha reação foi suspirar, pois essa palhaçada sempre me cansava.

— E aliás… Tem outra coisinha que você precisa fazer pra eu te deixar vir — afirmei.

— O quê?

— Coma a porra da comida que eu fiz. Não quero que estrague.

De novo ele ficou puto, mas dessa vez, obedeceu. Foi a maneira mais eficiente que achei de dar o troco, não é atoa que nesse meio tempo, no qual fui no banheiro escovar os dentes e pegar o estojo com as minhas paletas, quando voltei, o prato dele estava completamente vazio. Se ele não estava com fome, quem dirá o que aconteceria se estivesse.

De qualquer forma, quando cheguei no cômodo, ordenei que Liel fosse pegar suas coisas. Sem enrolação, ele voltou do quarto com sua mochila nas costas e com seus chifres, orelhas e o seu rabinho completamente escondidos. Depois que conferimos tudo que planejávamos levar, eu e o demônio saímos do apartamento e fomos em direção à universidade.

 

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Assim que chegamos nos portões da faculdade, seguimos pelos vastos corredores do local em direção ao setor onde ficava o Centro Acadêmico, ao leste da entrada. Por conta da localização, um tanto quanto longe dos prédios centrais do campus, era uma área vazia e que não tinha tumulto. O máximo que dava para escutar eram alguns dos funcionários que passavam limpando o corredor, e às vezes nem isso.

E bem, quando cheguei com o garoto, estava literalmente desse jeito. Depois que destranquei a maçaneta e passei pro lado de dentro com ele, a primeira coisa que fiz foi ligar o ventilador da sala para acabar com o silêncio absoluto do ambiente. Assim que fiz isso, senti um cheiro de mofo do cômodo se espalhar, sem contar que algumas coisas que estavam jogadas pelo chão começaram a ser arrastadas pelo vento.

— Eca, que nojo! Quando foi a última vez que alguém veio aqui?!

Era um questionamento mais do que válido, Liel. Só que pensar nisso me faria lembrar do quanto odeio os incompetentes do CA. Primeiro por me arrumarem esse bico de “semi-faxineira”; e agora por deixarem essa bagaceira toda pros outros arrumarem. Que merda é essa?

— Isso tá fedendo… Espera, o que é isso? — Ele se sentou numa das cadeiras e achou uma pequena coisa feita de látex.

— Moleque! Larga isso aí!

Pensei que fosse encontrar só lenços e copinhos jogados por aí, mas uma camisinha foi a gota d’água da minha manhã.

— Que negócio nojent… — O demônio não teve tempo de reclamar, apenas fez o barulhinho com a garganta de alguém que estava prestes a vomitar. Por sorte, tirei aquilo da mão dele antes disso e arremessei no lixo.

— Garoto, senta ali no sofá — ordenei. — Vou arrumar essa bagunça.

Respirei fundo ao ver toda aquela sujeira. Depois que o garoto se sentou, pude pensar na melhor maneira de lidar com toda essa merda. Infelizmente, não era a primeira vez que isso acontecia, então já sabia como limpar essa bagunça da maneira mais eficiente possível.

Enquanto eu recolhia alguns copos descartáveis no chão, percebi que o garoto se distraiu com a sala em sua volta. Ficou olhando para tudo que tinha no ambiente; o armário perto da mesa do escritório, o quadro branco na parede, o carpete vermelho, e por aí vai. Imaginei que nunca tivesse vindo aqui antes, então era de se esperar tanta curiosidade por uma sala tão minúscula.

— Ei, você falou sobre vir pra cá, mas não imaginei que ficaríamos dentro de… bem, um quartinho desses. O que você faz aqui dentro além de limpar? — perguntou.

— Na teoria, minha função aqui seria cuidar das reclamações de alunos e outras questões particulares do meu curso. Só que, como você já deve ter percebido, não é bem assim que as coisas funcionam.

— Sério? — Levantou as sobrancelhas. — Nem percebi.

A ironia dele me deixou com mais vontade ainda de pegar o filha da puta do coordenador na porrada. Tudo culpa dele.

— Mas e aí? — continuou. — O que pretende fazer hoje no seu tempo livre?

— Acho que só vou terminar de limpar e vou tentar escrever mais ideias para a música. Cê vai querer me ajudar, por acaso?

Quando fiz a pergunta, Liel deu um sorriso. Independentemente da minha pergunta ter sido pra desencargo de consciência, era meio óbvia a resposta. Não tinha razões para deixá-lo de fora.

Um bom tempo depois, após terminar de tirar toda a sujeira, me sentei ao lado do garoto no sofá e abri o case da guitarra. Enquanto ia fazendo os ajustes nas cordas e posicionava o instrumento por cima da perna para que não caísse, pedi para o demônio pegar meu bloco de anotações e abrir numa página vazia, onde logo eu iria anotar qualquer ideia que tivesse enquanto praticava um pouco com qualquer música que viesse em mente.

Meu plano hoje era fazer um tipo de brainstorm. Ia tentar lembrar de alguma canção que já toquei antes e, se o tom ou qualquer outro aspecto dela servisse para a temática que estou produzindo, iria registrar no caderno; se não, iria para a próxima música até acumular o máximo de ideias possíveis.

Diversas bandas vieram em mente quando me recordei de suas letras. Algumas mais famosas do Foo Fighters, outras do The Pretty Reckless e até mesmo os sons mais esquisitos do Panic! At the Disco e do AC/DC foram os mais memoráveis. A questão é que isso tudo trouxe na memória uma música que foi inspirada nesses nomes. Não cheguei a terminar, muito menos a fazer um vocal, assim como foi a última canção que toquei com a Lapiz antes de abandonar tudo.

Como era mesmo? Meus tons favoritos sempre foram os graves, então acho que também os utilizei aqui. Não que eu vá saber racionalmente. Será se consigo tocar no puro instinto? Como se estivesse de olhos fechados?

Decidi arriscar. Tomei controle da minha respiração, peguei a palheta em minhas mãos e fui, sem pensar em mais nada a não ser a música. Quando toquei as primeiras cordas do instrumento, foi quase que instantâneo; senti a melodia ecoar nos meus ouvidos à medida que tocava cada nota. Se eu pudesse descrever ao certo como era a sensação, era como estar perdida em um lugar escuro, sem visão de nada, mas logo pequenas luzes irem surgindo e me guiando para cada ponto seguro, que eventualmente me levariam para o lado de fora…

E tudo isso num ritmo lento e calmo.

Em meio a esse breu, consegui me lembrar do motivo de ter feito esse som. Era algo que simbolizava o fim de alguma coisa. Os primeiros toques eram mais lentos e duradouros, e sua natureza era de tom grave e melancólico; só que logo na sequência, vinha uma pegada mais agressiva, ainda mantendo a temática do início. Era uma repetição de seis notas, três pra cada fase.

E a história da música? Bem, acho que era sobre… alguém que se foi. Alguém que deixou saudades e muito sentimentos até que bons. Só que era tudo idealizado. A parte boa estava apenas na imaginação…

No final, aquela pessoa foi o maior inferno que alguém poderia ter consigo.

Era desesperançoso sofrer por algo tão ruim. Só de imaginar o que era a vida próxima daquilo levaria qualquer um ao estado de completa loucura. Quanto mais se aproximasse das memórias turvas, menos sentido faria a nostalgia romântica. No fim, apenas existiria restos; pequenos pedaços de um presente grotesco que foi deixado para quem quer que tivesse isso tão longe.

E o presente seria você mesmo. A pior versão de si mesmo. Aquela que qualquer um sentiria asco.

Com algo tão ruim como herança de péssimas memórias, talvez a única coisa restava fazer era…

 

. . .

— Marcy?

Parei de tocar quando notei que me esqueci do restante da música. Quando Liel me chamou, acabei percebendo o tanto que havia ficado imersa. Me concentrei tanto que, mais uma vez, me esqueci do mundo fora da minha cabeça.

Merda, isso é bem mais difícil do que eu pensei — Encostei meu rosto sobre a guitarra, fechando os olhos por alguns instantes. Depois de falar sozinha, voltei a atenção pro garoto: — O que foi?

— Cê tá legal? Você tava mandando bem na música, mas de repente seu olhar… pareceu distante.

— Eu to bem, relaxa. — Minha cara de cansaço dizia o contrário. — Não esquenta com isso. Só é meio difícil ainda ter que tocar com ela. Vou demorar um tempo pra me acostumar.

Aparentemente, o demônio percebeu meu estado e, de repente, ficou bem próximo de mim, me encarando com algo que imaginei ser preocupação.

— Olha, cê não acha que seria melhor fazer igual ontem? — sugeriu. — Sei lá, sair para vários lugares e se divertir para poder criar a sua letra?

Começou a ficar difícil manter o contato visual. Particularmente detesto aproximação nesses momentos.

— Isso… não é a mesma coisa do que aconteceu naquele ponto de ônibus. Não saí por diversão.

— Tá, tá, tá, eu sei. O ponto é que você só teve ideias porque deixou de ser tão reclusa. Se não tivesse ido pro mercado comigo e não tivesse chovido, você não teria ideia alguma.

Ser chamada de reclusa foi, de longe, a coisa que mais me tirou do sério nessa manhã. Não é que isso fosse mentira, mas a sensação de ter sido desmascarada tão facilmente foi horrível. Agora além do incômodo de alguém por perto, tinha a vergonha de ser tão óbvia.

— É, cê tem razão, eu acho. — Coloquei a guitarra ao meu lado, no sofá. — Talvez eu sinta menos estresse quando for criar o som da música se tiver… algo mais elaborado.

— Sim, verdade. Nós poderíamos sair hoje a noite pra algum lugar que você goste. De preferência, algum que te traga boas lembranças.

— Vai ser bem difícil. Não tenho memórias positivas de quase nada daqui.

O demônio parou para pensar um pouco e, após um tempinho, esboçou um sorriso um tanto quanto traiçoeiro em seu rosto. Não conseguia esperar nada de bom vindo dele.

— Que tal ir na sorveteria que fica perto da avenida principal?

— Na sorveteria?! Escuta aqui, cê tá querendo ir pra lá só pra comer sorvete, né?

— Não! Digo… tá, eu quero. — Foi fácil desmascará-lo. — Mas se você não vai escolher um lugar pra ir, me sinto na obrigação de decidir.

— Faça-me o favor… Não me diga que vai me arrastar pra comer sorvete.

Ele acenou com a cabeça pra cima e pra baixo, dizendo que sim. Minha única reação foi suspirar e colocar as mãos no rosto, escondendo a minha cara. Essa situação já estava me sobrecarregando e eu estava no ponto de explodir. Não é que eu tivesse algo contra doces, apenas queria ficar na minha zona de conforto e não correr o risco de lembrar de outras coisas. Se já não bastasse isso, ainda fiquei com receio da culpa que sentiria se Liel fizesse carinha de felino carente de novo.

Uf… Tá, tá legal. — Parei de me esconder. — Pode ser lá pras 18 horas? Tenho trabalho pelo turno da tarde hoje, então fica difícil sair antes disso.

O demônio sorriu após eu concordar, indicando que o horário que decidi estava ótimo. Depois disso, fiz um último pedido: — E aliás… Sai de perto de mim, pelo amor de deus. — E felizmente, ele obedeceu a ver que eu provavelmente estava com a cara toda vermelha.

Após toda essa confusão mental, voltei a tocar algumas músicas na guitarra; dessa vez, aquelas que não fossem me colocar em outra crise existencial. Enquanto fazia isso, Liel foi anotando algumas observações nos bloco de notas conforme eu ia pedindo. No final, quando fui ver o caderno antes de sairmos para o almoço, tinha até mais coisa do que eu havia pedido. O moleque foi bem detalhista e fez questão de descrever nos mínimos detalhes meu jeito de tocar.

Ele realmente quebrou minhas expectativas.

Por fim, depois de comermos do RU, ficamos esperando a hora de irmos pra cafeteria. Quando o relógio bateu 14h, seguimos pra lá e passamos a tarde toda em serviço até mais ou menos o horário que eu previ, que foi o momento que eu e o demônio saímos pra sorveteria.

 

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Bastou chegar na entrada do lugar que percebemos que estava cheio. Boa parte das mesas tinham gente e o pessoal do caixa estava a todo vapor por conta da fila. Apesar de termos chegado no finalzinho dela, não demorou muito para sermos atendidos. Quando chegamos no caixa, a atendente se aproximou de maneira bem educada:

— Boa noite. O que gostariam de pedir? — Me pergunto como ela não estava estressada com todo esse trabalho, mas tudo bem.

Não tinha ideia do que comer. Fiquei olhando para o cardápio com uma indecisão do cacete, pensando o que seria menos pior. No momento que olhei pro lado, Liel parecia ansioso pra dizer alguma coisa. Talvez estivesse esperando eu pedir primeiro, mas como tava estampado na cara dele que já sabia o que pedir, deixei que falasse primeiro:

— Moça, um milkshake de chocolate, por favor? De preferência, um bem doce.

Óbvio que seria chocolate. Vou fingir surpresa. Não me restou muitas opções depois de revirar o menu, então fui no mais básico e sem graça possível:

— Pra mim, uma casquinha de morango.

A mulher anotou os pedidos no computador e logo falou quanto custava. Como a pessoa gentil que sou, paguei toda a conta e logo recebi a nota fiscal com o número do nosso pedido, que logo deixei com o pivete por não querer me preocupar com um ticket estúpido.

Depois disso, nos sentamos perto da vitrine do lugar, e ficamos observando a rua movimentada do lado de fora.

— Nossa, nunca tinha vindo aqui pela noite. — Liel ficou olhando para a iluminação da rua e os carros passando. — Essas ruas ficam tão bonitas assim nesse horário?

— É um distrito comercial com uma influência asiática. Agradeça à eles por manjarem tanto de decoração. — Fiquei olhando para aquilo com tédio, mas logo voltei minha atenção pro garoto com os olhos arregalados. — Espera, você sabe quem são os asiáticos, certo? Não me diga que…

— Eu não sou burro, Marcy.

Foi só pra testar. Nem sei até onde a ignorância dele sobre o mundo humano vai. Ainda é um mistério pra mim pois tem coisas que ele parece ser muito maduro, já outras, uma completa criança.

Enquanto conversávamos, senti uma sensação familiar. No dia anterior, quando fomos pro mercado, tive a impressão de estar sendo observada; veio uma pequena pontada na nuca. Olhei para os lados e nada, olhei para trás, também não vi nada de anormal. Somente após alguns segundos que senti alguém cutucando meu ombro, aí confirmei que não era apenas uma impressão.

— Com licença. Eu poderia falar com vocês dois?

Liel também se virou ao escutar a voz da moça. Era uma loira estranha, bem alternativa igual o demônio; tinha mechas do cabelo pintadas de roxo, dois piercings — um na boca e outro no nariz — e um delineado bem simétrico.

E eu não conseguia sentir nada vindo dela. Ela não tinha cheiro, muito menos algo que me fizesse considerar ela um “perigo”. Na verdade, parando pra pensar, isso a tornava bem suspeita. Eu não a conhecia, e pelo olhar do garoto, com certeza não era uma de suas novas amizades. Quem é essa mulher?

— Ah, sim. O que foi? Podemos ajudar?

Liel tomou a dianteira da conversa, o que atraiu a atenção da outra. De uma hora pra outra, a opinião que tive sobre ela de não ser um perigo mudou completamente. Ela se aproximou do menino e o encarou bem de perto, com um genuíno interesse; de maneira bem invasiva.

Cheguei perto para intervir e fazer ela ficar longe, mas quando a afastei, um sorriso se formou de um canto ao outro de sua boca, daqueles bem maléficos. Estava me segurando pra não me estressar com gente intrometida, mas…

— Ei, garoto… — Ela ajeitou o cabelo. — Você é um demônio, não é?



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