O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 09: Não foi só um sonho

Dring! Dring! Dring! Dring!

Quando escutei o barulho do celular, acordei e me sentei na cama, duma vez. Pelo som do despertador, era apenas uma manhã normal como qualquer outra, só que não me lembro de ter deitado ontem antes de adormecer. Na verdade, o que vem na memória é…

“Eu… ainda aguardo sua resposta…”

Até que consigo me recordar do que ocorreu, mas é tudo meio vago. A impressão que dá é a de um sonho, não de um acontecimento real. Sendo sincera, prefiro acreditar que realmente é isso, pois é menos desgastante pra minha cabeça.

Segui a minha rotina normalmente. Fui ao banheiro, desembaracei o cabelo em frente ao espelho e fui lavar o rosto antes de fazer o café. Quando peguei a água que saía da torneira com as mãos, percebi algo estranho. Na parte superior do meu polegar, havia uma marcação no formato de uma pequena rosa, parecida com uma tatuagem. Olhando mais de perto, fiquei em dúvida do que seria isso, mas quando notei a casca de uma cicatriz na região e também uma mancha vermelha na minha bochecha…

Ficou mais claro do que nunca. Isso não foi um simples pesadelo.

— Que porra é essa?!

Tudo foi real. Aquela maldita mordida e aquele olhar hipnotizante… não foram coisas da minha cabeça.

Quando vi aquela tatuagem, a primeira coisa que veio em mente foi esfregar sabão por cima do dedo para arrancar aquele desenho, em um ato de desespero. Depois de um tempo, não só falhei no meu objetivo, mas também a ferida começou a arder, igual no dia anterior. Também tentei tirar a marca de sangue da minha cara, mas apenas consegui deixar um pouco menos aparente o estrago da noite passada.

Me recusei a acreditar, ainda mais após ter escolhido pensar no menos provável. O que me impressiona é como fui levada a essa situação, sem contar na maneira que ele agiu comigo. Ninguém nunca chegou tão perto, ainda mais com tanta malícia nos olhos. Aquele realmente era o Cunningham ou alguma coisa mudou o seu temperamento mais uma vez?

A única maneira de ter alguma resposta seria perguntando pro moleque, por mais merda que fosse essa ideia.

Depois de um banho, me ajeitei e fui para a cozinha preparar algo para comer. Enquanto fritava alguns ovos, um cheiro familiar começou a me incomodar. Não era nada estragado, apenas forte demais para as minhas narinas. Me afastei um pouco do fogão e fui até a cafeteira que estava mesa, que era de onde vinha o odor amargo. Quando funguei o aroma, senti uma dor agoniante no nariz quase que instantaneamente, então me afastei da máquina na mesma hora.

Não entendi o porquê, mas aparentemente meu olfato estava ligeiramente mais sensível. Tentei beber meu café e só fui conseguir depois de muito esforço, pois estava insuportável. Após terminar minha refeição matutina e lavar os pratos e o copo que eu tinha usado, fui até a sala, peguei a minha mochila e saí do apartamento, indo em direção à universidade.

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Quando cheguei nas proximidades do prédio, meu objetivo em mente era encontrar o Liel. Só que, por um momento, quase ia me esquecendo das minhas obrigações. Hoje é terça-feira, então tenho que comparecer ao CA (Centro Acadêmico) e ficar cuidando das reclamações.

Todas as manhãs desse dia da semana meu trabalho era ficar numa salinha e esperar alguém do meu curso fazer um barraco, pois uma das nossas funções — e a menos relevante, digasse de passagem — é pegar essas insatisfações e passar para a coordenação pedagógica resolver. Se isso adiantasse de algo e os caras lá de cima não fossem tão incompetentes, eu acharia um máximo. Já tentaram até pegar verba da merenda.

Para a minha felicidade, é bem incomum vir pessoas aqui durante a manhã. Apesar desse lugar ser, em tese, um tipo de recepção, enquanto ninguém bater na porta, posso fazer o que quiser. Colocar uma música bem alta no computador, desenhar no quadro que fica na parede do cômodo e até armar uma rede pra dormir.

Toc! Toc! Toc!

É, posso curtir por um bom tempo. Mas hoje não parece ser meu dia de sorte.

— Quem é? — Girei a maçaneta. — Alex, Aspen? O que cês tão fazendo aqui?

— A gente saiu mais cedo da aula, então viemos te fazer companhia, oras — afirmou o careca enquanto entrava na sala junto do seu namorado. Após isso, ambos se sentaram no sofá.

— Vocês sempre aparecem quando menos espero, em? — Voltei para trás da mesa da recepção, pegando um pequeno espelho com uma das mãos e usando um paninho pra limpar meu rosto com a outra. — Mas já que estão aqui, qual a fofoca da vez? Me atualizem.

O loiro inclinou a cabeça, olhando para mim enquanto dizia:

— Marcy, o que é essa marca vermelha em seu rosto?

— Só outra briga que me meti. Outro daqueles idiotas que gostam de brincar com facas. Me sujei e esqueci de limpar.

Ele se encostou no sofá. — Cê nunca muda, né? Ensino fundamental, ensino médio, universidade… não importa o momento que você está vivendo, ainda se coloca em brigas. Misericórdia — repreendeu.

— Muita gente me odeia, Alex. Não é como se fossem me deixar em paz até eu sair daqui.

O homem logo se calou. Pelo o que parece, minha mentira foi minimamente convincente, tanto que ele não continuou com o sermão e logo mudou de assunto.

— Mas e aí? Você e o Liel se resolveram ou foi apenas impressão minha?

— Impressão sua? O que você está insinuando? Não entendi.

— É que quando eu e Aspen saímos do laboratório, vimos ele passando para outra sala com um grupinho. Não chegamos a conversar, mas ao que tudo indica, ele não estava estressadinho como de costume. O que você andou aprontando, senhorita?

— Não fiz nada além de resolver aquela briga idiota. — Coloquei o espelho de volta na gaveta da escrivaninha e encostei meus braços sobre a mesa. — Sendo sincera, até eu estou surpresa com essa informação.

É até estranho, pois considerando a maneira que Liel lidou com as coisas que falei até então, não imaginei que ele escutaria minhas sugestões, quem dirá fazer tudo por conta própria. É capaz dele conseguir se virar sozinho, mas do jeito que penso em tudo de maneira pessimista, acho melhor esperar pelo pior.

— Mas e ai? Vocês viraram amigos depois disso? — Aspen se intrometeu.

— Nem sei. Acho que sim? Chegamos a ter uma conversa sobre, mas nada conclusivo.

— Bem, já é um avanço. Afinal, não acho que foi só o baixinho que ficou diferente.

No momento que o careca falou isso, encarei ele com uma expressão de “que?” Poucos segundo depois, o calvo começou a rir, como se tivesse prestes a dar uma de engraçadinho. Me arrisquei a pergunta o motivo.

Hihihi… — Deixou escapar uma risada. — Sabe, é a primeira vez que te vejo tão tranquila. Foi só porque um garoto que age igual um gato raivoso entrou na sua vida que você ficou mansa também?

O tom de zombaria da pergunta me tirou do sério, mas o que me deixou mais puta foi quando Alex também deu um sorriso e entrou na onda. — É que ela gosta de ser controlada por gente surtada. — Se eu não tivesse que arcar com danos materiais dessa sala, teria jogado o monitor na cabeça deles.

Pois é, nem meus amigos me deixam escapar desses tipos de piada.

Após esse papo de… prefiro não comentar, ficamos fazendo vários nadas até dar o nosso horário. Depois que saímos, os outros dois seguiram seu rumo seja lá pra onde teriam que ir; e eu, fui almoçar. Quando deixei o refeitório, andei pelos corredores até perto da sala onde teria minha próxima aula. No meio do caminho, encontrei um baixinho se despedindo de outras duas meninas.

Ao me aproximar, pude notar quem chamava a minha atenção. O cabelo preto das pontas vermelhas, a larga camisa de mangas longas da mesma cor e o short curto com uma calça arrastão não davam indícios de ser outra pessoa. Bastou cutucar seu ombro e o pirralho me encarou com o mesmo desprezo de sempre.

— Hm? O que foi? Perdeu alguma coisa em mim? — questionou Liel.

— Sim, perdi a explicação sobre isso aqui, moleque. — Levantei a minha mão e afastei os dedos, evidenciando aquele desenho. Mantive o tom sério na fala. — Isso tem haver com o pacto?

— Acho que a resposta é bem óbvia, Marcy. Não faça perguntas idiotas.

— Já te falei que nem tudo é tão claro do jeito que você pensa. Não sei sobre o seu mundo mágico, então pelo menos explique como as coisas funcionam.

Depois dessa minha fala, o silêncio pairou sobre o corredor a qual estávamos. Não havia ninguém nas redondezas pois quase todo mundo estava esperando o horário das aulas em suas salas, então poderíamos conversar sem problemas.

— Bem, tanto faz. — Suspirei. — Realmente precisava de… tudo aquilo só pra fazer um contrato?

— “Tudo aquilo” você quer dizer a parte do sangue? É o que precisa ser feito para firmar um pacto. Não entendi qual seu incômodo nisso.

Como pensei, não estamos falando a mesma língua. Pela maneira que ele só deu ênfase na parte do sangue, das duas ou uma: ou ele não se lembra da putaria que rolou ontem, ou ele simplesmente acha aquilo normal. Acho melhor não perguntar detalhes, porque eu tenho quase certeza que o moleque faria um barraco se soubesse o que aprontou.

— Esquece. Pelo menos me diga por qual razão sinto que estou sensível a tudo. Desde que acordei hoje de manhã, qualquer cheiro tem feito meu nariz gritar de dor. Isso tem haver com…?

— Sim, tem — interrompeu. — É um efeito colateral por seu corpo não ter resistência mágica alguma.

De novo, ele esperando que eu entenda o mundinho que ele vive. A parte sobre vender minha alma e ela servir de porra nenhuma pra um filhote de satanás eu já compreendi a séculos. O que custa elaborar?

Pelo menos, depois de muita insistência, o garoto decidiu explicar. Em resumo, pactos foram criados para serem feitos exclusivamente por demônios. De acordo com Liel, o que implica essas minhas alterações ocorrem devido às propriedades do seu sangue. Como não sou um deles, meu corpo não tem “propriedades especiais”, estou propensa a sofrer de algumas anomalias no meu corpo baseado no portador do meu contrato e na quantidade de sangue envolvido.

No caso do capetinha aqui, até agora, apenas deixou parte dos meus sentidos mais sensíveis. Que continue apenas sendo isso, pois seria horrível se algum dia eu acordasse com um par de chifres e um rabinho vermelho ou com um dedo a mais em minha mão. Acho improvável, mas quem sabe.

Aaahhh, entendi. Nossa, que merda. Vai ser difícil me acostumar. — Cocei o nariz, ainda sentindo incômodo. — Aliás, mudando um pouco de assunto, Alex e Aspen me disseram que te viram hoje com um grupinho. Decidiu seguir meus conselhos e tentou aprender a se enturmar?

— Não, pelo contrário. Aqueles idiotas só me viram quieto demais e acabaram me arrastando. Queria que todos queimasse no inferno.

Pensei que era cabeça dura com algumas coisas, mas ele também parece não ser alguém que gosta de mudanças. Digo, só o fato dele ter se controlado é um avanço, mas ele continua agressivo como sempre.

— Tive a impressão de conhecer aquelas garotas que você estava junto agora pouco. Deixa eu adivinhar, essa galera fala só sobre festas e bebidas?

— É, algo assim. Ficaram falando do meu nome, das minhas roupas e uma porrada de outras coisas. Eles falaram que iam me levar pra uma tal de “calourada”, mas nem sei o que é.

O tom na voz do Liel era predominantemente tedioso. Só que isso mudou quando disse que comentaram sobre coisas dele, o que, na teoria, deveria ser incômodo, ele continuou apático. Talvez por nunca ter feito parte desse tipo de vida, onde todo mundo com mais experiência só quer te foder, ele não saiba como reagir. É fácil de perceber que é muito mais vulnerável a tudo, pois ele não é apenas uma pessoa que acabou de chegar no campus, mas também veio de outro mundo.

Por mais que sua mentalidade, sem sombra de dúvidas, aparenta ser muito desenvolvida — já que ele conseguiu arrumar um emprego e sobreviver em condições tão adversas, ele ainda age como uma criança que não tem noção do perigo. Se ninguém ajudá-lo, não dá nem pra imaginar o que aquela gente mal intencionada vai fazer. É melhor não arriscar.

— Acho que você deveria se afastar dessa galera — comentei. — Não é flor que se cheire.

— Mas se eu fizer isso, não terei mais ninguém para conversar na minha turma — afirmou meio frustrado.

— Moleque, acho que você não precisa se relacionar com pessoas que apenas vão te difamar e querer o seu pior. Se você se veste desse jeito é porque, no mínimo, te faz bem. Sei lá, também acho brega essas roupas, mas… gr, cê me entendeu. Por exemplo, eu posso até te odiar com todas as minhas forças, mas nunca que faria algo como eles.

Dava pra ver em sua expressão que, aos poucos, se tornou cabisbaixa, que não conseguia entender a complexidade do que falei. Mesmo que vá se machucar, parece que ele prefere isso a estar sozinho. Quem consegue viver desse jeito? Sei lá, é difícil para mim ver outra pessoa passando por isso, mesmo que seja alguém que detesto. Não acho que seja minha obrigação ajudar, mas acho que não vou conseguir apenas assistir alguém sofrer.

— Ei. Você vai pro trabalho hoje? — perguntei.

— É, sim… — Seu tom de voz era baixo e ele pausava constantemente. — Só que apenas no turno da noite. Tenho algumas coisas para fazer. Por que?

— Tava pensando no que você disse, e ia sugerir da gente se ajudar hoje no trabalho. Sei que você não vai com a minha cara e nem gosta disso, mas nossa chefe me ameaçou mais cedo por telefone nos expulsar caso não fizéssemos um bom trabalho. E aí?

Liel suspirou, não dando uma resposta direta. Ele virou o rosto com uma feição de desaprovação, como imaginei que faria. Não me restou outra opção a não ser apelar.

Hmph. Ok, olha aqui. — Tirei da bolsa uma pequena barrinha de chocolate que peguei na cozinha mais cedo. — Você disse que seria meu amigo se eu te ajudasse, certo? Se você colaborar hoje e fizermos um bom trabalho, deixo você comer isso. O que diz?

O demônio esboçou um sorriso de um canto ao o outro da boca com a proposta e tirou o doce de minhas mãos num piscar de olhos. De repente, ele ficou animado com a ideia e não parecia tão estressado como antes.

— Não esqueça de cumprir sua parte. Não quero ser demitida no meu segundo turno.

Depois do meu alerta, me virei e comecei a andar em direção à sala que, em alguns minutos, teria aula. Antes de dar muitos passos, o menino parou na minha frente, interrompendo o que eu iria fazer. Perguntei o que ele queria, e a única coisa que ele disse foi “obrigado pelo chocolate!” em um tom muito alegre e saiu correndo.

Quando ele se distanciou, fiquei observando o garoto de longe e tive a impressão de ter visto um vislumbre de outra pessoa. Era como se o seu sorriso genuíno fosse familiar para mim, só que ao mesmo tempo desconhecido. Não sabia como me sentir a respeito; se deveria procurar a memória estranha que vi ou apenas ignorar. No final, ele não estava sendo o mesmo insuportável de sempre, então não poderia reclamar de nada.



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