O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 08: Pacto demoníaco

 

Depois daquela briga dentro do armazém, a punição de nossa chefe foi eu e Liel ficarmos depois do turno para limpar a cafeteria. Ou era isso ou teríamos que pagar pelas coisas que foram quebradas.

Até chegar o momento do estabelecimento fechar — por volta das nove da noite —, nós dois ficamos arrumando a bagunça na área dos fundos, sem olhar pra cara do outro. Quando deu o horário, todos os outros funcionários saíram, ficando somente a gente para cuidar do serviço.

Nunca fiquei depois do expediente, e já deixo o recado que é a pior experiência da minha vida até hoje. Só porque sabiam que ia ter gente pra limpar depois do expediente, é justificativa pra eles deixarem tudo bagunçado? Faça-me o favor. Foi a primeira vez que fiz uma limpeza com tanto ódio.

Eu podia até estar irritada, mas quem não aparentava incômodo algum era o demônio. Quando cheguei na recepção para esvaziar a vitrine, ele estava tirando a sujeira das mesas e passando o pano no chão como se fosse algo rotineiro. É uma surpresa que ele não esteja reclamando.

Assim que terminei de higienizar o balcão, fiquei encostada no caixa observando o garoto. Estava pensando no que dizer, ou melhor, em como pedir desculpas sem ser ignorada mais uma vez.

Para a minha surpresa, só que não, nenhuma ideia veio em mente. O jeito era ir pelo método convencional e torcer pelo melhor.

— Ei, Liel. Queria pedir desculpas pelas coisas que falei. Sei lá, acho que passei do ponto contigo e…

Ele parou por um momento que estava fazendo, mas logo voltou aos seus afazeres. Missão falhada com sucesso.

Não é como se meu pedido tivesse sido convincente. Nem eu acreditaria nas minhas próprias palavra. Detesto quando esse tipo de situação acontece, pois me sinto obrigada me esforçar mais do que o necessário para resolver as merdas que faço.

— Tá, tudo bem. Olha só, eu fui babaca contigo, te julguei sem te conhecer e disse um monte de abobrinha. Não foi minha intenção falar aquelas coisas; estou doente desde antes de ontem e, no calor do momento, acabei fazendo o que fiz. Todo esse tempo realmente tentei ser sua amiga, de verdade. Então, por favor, poderia parar de me ignorar e conversar comigo?

Meu apelo aparentemente funcionou, pois ele logo se virou e me encarou com uma feição irritada.

— Ser minha amiga? — indagou e elevou o tom de voz. — Simplesmente dar um soco na minha cara, me ofender de todas as maneiras possíveis e ainda dizer que não tenho amigos é tentar ser minha amiga?!

— Garoto, eu tava tentando te ajudar, tá legal? Você não conseguia carregar uma caixa e me ofereci a fazer seu trabalho de bom grado. Só queria fazer as pazes contigo, mas nem nessas situação você colabora.

— Acho engraçado que parece que tu tá sempre tentando estabelecer algo comigo. Por qual razão eu deveria confiar em você, pra começo de conversa? Que garantia que eu tenho de que…

Antes mesmo dele terminar seu último questionamento, me aproximei dele e o puxei pela gola e, em seguida, tirei a touca que estava utilizando, que logo descobriu o seu cabelo e seus chifres.

— Cala a porra da boca, moleque. — Segurei o acessório em uma das mãos. — Se eu não tivesse colocado essa merda na sua cabeça, descobririam que você é um demônio e estaria tudo perdido, entendeu?! Não é a primeira vez que tu é um ingrato do caralho que não percebe quando tento te ajudar!

— Pouco me importa se você me ajudou ou não. — Liel apertou meu pulso, tentando se soltar. — Você simplesmente fala mentiras sobre mim e espera que eu fique feliz com isso?

— Mentiras? Que mentiras? Sobre você ser insuportável e não ter nenhum amigo?!

— Exatamente!

— Então fale na minha cara que eu estou errada!

Ele abriu a boca para contestar, mas, por alguma razão, não o fez. Por um momento, achei que fosse fazer outra coisa, talvez me socar ou pensar melhor o que falaria, só que ao ver sua feição, antes raivosa, ficar cabisbaixa, cheguei a conclusão de que não diria nada.

Seu silêncio confirmou minhas hipóteses. A reação lógica seria negar, mas nunca que alguém conciliaria uma inverdade dessas por tanto tempo sem se contradizer. Era uma realidade cruel demais para uma pessoa suportar. No caso dele, deveria ser pior ainda.

Uf. — Suspirei. — Que merda. Passei do ponto de novo.

Após a minha fala, apenas o soltei. Não tinha mais nada a dizer. Se eu insistisse ou reclamasse de suas acusações contra mim, seria capaz piorar tudo.

No final, era como se fossemos água e óleo. Minhas tentativas foram fúteis e esperar uma mudança de comportamento repentina do Liel foi burrice minha. Francamente, já tem tanto tempo que caio nos mesmos erros e nunca aprendo.

Acho que esse é o momento que jogo a toalha. Não quero mais esse estresse pra mim.

Decidi sair de perto. Senti como se uma neblina tivesse se formando na minha cabeça. Planejava me esconder na área dos fundos para aliviar o gosto amargo dessa situação, isso até o garoto terminar suas tarefas. No momento que ia passando pelo balcão, ele segurou meu braço e apertou com um pouco de força, como se não quisesse que eu fosse embora.

— Hm? O que foi? — perguntei, me virando.

— Eu… — Sua expressão indicava raiva, mas o tempo todo, ele evitava me olhar nos olhos, — quero pedir desculpas. Acreditei em algo que me falaram e… te acusei sem provas algumas.

— Então quer dizer que foi isso que a Daisy te contou?!

Para a surpresa de absolutamente ninguém, ele disse que sim. Ele foi me explicar as atrocidades que aquela cobra o contou e a minha vontade foi de quebrar a vitrine do balcão. Ok, era compreensível alguém que não me conhece e me odeia cair nas falácias dela. O que me impressionou, na verdade, foi a maneira descarada que aquela mulher mentiu.

Ele começou a me contar as acusações e já escutei a voz daquela rapariga em minha cabeça. Foi assédio, chantagem, abuso e mais um monte de coisas que eu seria incapaz de fazer. Talvez por conta da maneira violenta que me expressei em boa parte da vida, as pessoas pensem que sou esse tipo de gente.

— Olha, sinceramente — Coloquei a mão sobre a testa, — não sei o que me surpreende mais: se é você ser um tapado e não perceber o nível de sem-vergonhice dela ou ela arcar todo um plano pra te contar tanta asneira sem pé nem cabeça.

Quando o chamei de tapado, imediatamente sua feição reclusa mudou e deu lugar ao estado rancoroso “padrão” dele.

— Ei! Por que tapado?! Não é todo mundo que tem o mesmo raciocínio que você.

— Sim, inferno, eu sei disso. O ponto é que cê podia ter pensado duas vezes antes de soltar essa bomba contra mim. Cê não suspeitou de nada na fala dela? Sei lá, que era uma pessoa mal intencionada?

— Não. Pra mim, ela parecia igual a você.

Já consegui perceber que o moleque não tem senso algum de perigo. Se não foi o suficiente me comparar com uma pessoa diferente de mim, ainda confirmei que ele não é apenas um tapado, ele é burro mesmo.

Gr… Moleque, faça o favor de terminar o que você tem pra fazer. Gosto muito dessa cafeteria, mas se passar mais uma hora discutindo sobre essas coisas, eu vou explodir. Seria pedir muito?

Minha única vontade era chegar em casa, me jogar na minha cama e deitar em posição fetal. Felizmente, acho que nem o garoto estava suportando essa merda de punição, então ele concordou.

Mas antes disso, Liel inclinou a cabeça para o lado e fitou o gorro em minhas mãos. — Só se você me der isso — disse. Fiquei receosa por um momento, pois minha touca sempre foi algo muito pessoal para mim, mas como queria que tudo isso acabasse de uma vez, prometi que daria o objeto pra ele depois do serviço.

Sem muita discussão, o demônio assentiu, então em menos de 40 minutos, finalmente terminamos o que tinha para ser feito, tiramos os aventais e nossos uniformes e fechamos as portas do café, podendo finalmente voltar para casa.

Depois de uma caminhada a passos rápidos, pois já era quase dez da noite, finalmente passamos pela portaria do nosso prédio. Após subirmos as escadas e pararmos em frente a nossa porta, o demônio cutucou o meu braço.

— Ei, você não esqueceu do que prometeu mais cedo, né? — perguntou.

— Mas cê já tá praticamente em casa. Nem vai precisar disso.

Quando saímos da cafeteria, Liel havia escondido seus chifres. Mas, logo após a minha afirmação, ele os expôs no meio do corredor do prédio. Minha única reação, com medo de alguém vê-lo, foi pegar o gorro e tacar em cima de sua cabeça. — Moleque, pare de ser engraçadinho. E se alguém passa aqui?! — alertei, mas sua única reação foi rir e ajeitar o seu cabelo por baixo do tecido de lã. Ele claramente fez isso de propósito.

Estava tão exausta que só não perdi meu tempo discutindo, então logo destranquei a fechadura e passei para o lado de dentro. Assim que cheguei na sala, não pude resistir e despenquei no sofá, quase adormecendo no processo.

Na verdade, eu só não cai no sono pois logo notei o moleque fuçando a cozinha. Quando fui ver, metade das coisas que estavam na geladeira foram colocadas no lado de fora; o desgraçado revirou tudo até encontrar algo que fosse do seu interesse. Depois que ele fez isso, o moleque se jogou na poltrona ao lado e se espreguiçou no pequeno espaço que tinha, como um gato.

— Pode pelo menos deixar as coisas arrumadas? — reclamei em tom tedioso. — Não precisa de tudo isso só pra pegar um chocolate.

Nem adiantou expressar incômodo. O moleque ficou obcecado com a barrinha de cacau em suas mãos e não me deu atenção até terminar de comer e se lambuzar inteiro. Pra variar, ele esqueceu o que eu perguntei e rapidamente mudou de assunto.

— Marcy, posso te perguntar uma coisa?

Uf.. — Suspirei, torcendo para que alguém me dar um tiro. — Você acabou de perguntar, mas tudo bem. Qual a próxima pergunta?

— Como que vamos ficar agora? O que nós somos?

É estranho ele perguntar isso. Sim, brigamos feio a uma hora e meia atrás mas estamos… de boas? Liel parece ter esquecido o que eu disse, bem como só levei as coisas que ele falou numa boa. Se bem que essa tranquilidade não me dá garantia de nada, pois é provável que esse infeliz esteja com o temperamento alterado no outro dia e todo o inferno comece de novo.

— Não sei se deixei claro, mas… eu meio que desisti da nossa amizade — afirmei. — E por que você quer saber disso? Pensei que nem se importasse. Mais cedo cê não falou que nunca seria meu amigo?

— Se eu tivesse escolha.

— Então quer dizer que sou a sua última opção? — Mantive a fala morosa. — Muita consideração por quem se esforça por você, né? Babaca.

— Na verdade, ninguém nunca foi tão longe por mim.

Lógico, uma pessoa que exala ódio e rancor vai distanciar qualquer um que tente se aproximar. Quem dera fosse só isso o que impede ele de ter amigos; já notei tantas coisas que fica difícil de contar. Sua agressividade, sua ingratidão e por aí vai.

Poderia até avisar pra ele sobre essas coisas, mas sendo bem sincera, é mais provável que ele dê outro chilique e apenas ache que é o “jeito dele”. Como realmente não tenho saco pra desenvolver por conta do sono, achei melhor levar a conversa por outro rumo.

— Sei lá, acho que seus maus modos colaboram um pouco pra isso. Exemplo, você se sujou inteiro enquanto comia agora pouco. Humanos não gostam disso.

— Sério? Então como é que faz?

— Espera… Você não sabe? — Franzi as sobrancelhas. — Como tu arranjou um emprego numa cafeteria, então?

Liel coçou o lado do rosto com o dedo e desviou o olhar; acho que nem ele sabia como conseguiu esse feito.

Uf… Mas como te falei, você tem certa atitudes que dificultam as pessoas gostarem de ti.

— Você… poderia me ensinar a me comportar como os humanos, não?

Virei o rosto como se fosse dizer “como é a história?” A gente já não aguentou passar três dias sem querer se esganar, e agora ele propõe isso. Esse garoto tá bem ou ele esqueceu sua própria personalidade? Independentemente do motivo, não toparia isso mas nem fodendo. Já tenho coisas demais para lidar e, além disso, não quero ter a responsabilidade de ensinar um demônio birrento.

Terminou que, depois de recusar a primeira vez, o garoto começou a insistir no seu pedido. Primeiro foi apenas ensiná-lo, mas depois as coisas escalaram pra uma negociação do tipo: em troca de ser seu tutor, ganho algo em troca.

Fiquei tão de saco cheio que deitei a cabeça sobre o braço do sofá e fechei os olhos, ignorando completamente o capetinha. Por um breve momento, Liel calou a boca e grunhiu, mas não demorou muito perturbar minha paz novamente.

— Eu tenho uma última proposta. — Ele voou da poltrona onde estava e ficou flutuando na minha frente. — Se você não aceitar, não irei insistir…

Parei pra escutar com atenção. Com certeza vai ser outra oferta idiota que eu vou recusar e ele vai sumir de vez da minha vida.

— Em troca de aprender a ter bons modos e agir como vocês, eu serei o seu amigo e prometo não fazer nada que te incomode ou te deixe mal. O que diz?

— Quê? — respondi. — Cê acha que eu sou boba por acaso? Nunca que alguém aceitaria essa merda. Nem tenho certeza de que você vai fazer o que está dizendo.

A minha fala fez a feição do menino ficar séria. Momentos depois, o garoto levantou o seu polegar esquerdo e mordeu a região da sua digital com suas afiadas presas. Em alguns segundos, sangue começou a escorrer pela região.

— Mas que porra é essa, cara?! — Despertei no susto e me afastei, voltando a ficar sentada.

— Vamos fazer um pacto. Para nós, demônios, essa é a maneira que temos certeza de que alguém não irá descumprir sua parte em um contrato.

— O quê?! Não, isso é nojento! Por que diabos eu faria isso?! 

— Você não quer ter certeza de que vou fazer exatamente o que falei? É simples. Faça seu dedão sangrar e o encoste no meu.

— Meu senhor… — Bati com ambas as mãos sobre meu rosto. — Garoto, como que isso vai me dar cert…?

Repetir o questionamento foi o suficiente para ele se irritar. Num instante, um arrepio percorreu toda a minha espinha e, quando olhei para o demônio, o sentimento que tive foi o mesmo de quando nos encontramos pela primeira vez.

“Ele vai me matar.”

Em meio a aura densa, seus olhos vermelhos escuros me encaravam no fundo da alma. Vozes começaram a ecoar coisas que eu não entendia, meu fôlego começou a se esvair e meu peito começou a doer. Sentia meus olhos tontos, sem rumo; a vontade de desmaiar e o enjoo repentino me deixavam com uma súbita vontade de vomitar. Quanto mais tempo ficávamos nisso, mais eu sentia que seria esmagada pela sua presença.

Mas, de repente…

— E aí? Você aceita? — questionou.

Tudo se foi. Observei o ambiente em volta e tudo parecia normal. Isso foi só na minha cabeça ou… de fato aconteceu? Não tenho certeza, mas acho que foi apenas uma ilusão. Se bem que, por algum motivo, sinto que estou perdendo meus sentidos.

— Eu sou obrigada a isso ou…?

Liel se aproximou, ficando por cima de mim com seu rosto próximo do meu. — Não faça eu ter que repetir — disse. Após a sua fala, ele colocou seu polegar do lado da minha bochecha, esse que manchou minha pele em vermelho. Pensei em tirar, mas algo cessou os meus esforços. Quando reparei, ele me olhava nos olhos, como se quisesse me hipnotizar.

Em seguida, ele segurou minha mão e a levantou, permitindo que eu a visse. Aos poucos, o garoto começou a tocar cada dedo meu com os seus. Lentamente, ele foi indo desde o mindinho até chegar no dedão, o alvo que buscava para efetivar o contrato.

— Eu… ainda aguardo uma resposta, Marcy.

Me senti tentada a continuar recusando, mas já não queria discutir com minha própria mente. Em um pequeno gesto com a cabeça, falei que “sim”, que aceitava o contrato. Dada a minha permissão, ele puxou minha mão para perto e, após um sorriso maléfico, mordeu a minha digital que logo começou a sangrar. Após isso, nossas mãos se entrelaçaram e algo começou a brilhar em nossas feridas.

De repente, a luz vermelha começou a sumir e, junto com ela, a minha visão também estava me abandonando. Tudo começou a escurecer mais e mais; estava sonolenta e meu corpo pesava como uma bigorna. Depois que sobrou apenas o breu diante dos meus olhos, a única coisa que fui capaz de sentir dentro da minha mente…

Foi uma inquietação.

 



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