Volume 1
Capítulo 10: Encontro estranho
Desde que aquele pacto aconteceu, os dias se passaram a passos de tartaruga. Não que isso nunca tivesse acontecido antes, apenas fazia muito tempo que senti esse tédio e essa sensação de calmaria em minha vida. No primeiro dia, achei que eram coisas da minha cabeça, mas não demorou muito para eu me contradizer.
Os efeitos do sangue foram um pouco além do que ocorreu na terça. Comecei a sentir leves alterações de humor; nesse caso, estava mais calma que o normal. Não somente isso, as minhas alucinações se restringiram a quase que somente ocorrerem em meus sonhos; mesmo quando tento forçá-las, nada acontece, a não ser que surja uma situação de muito estresse ou…
Eu faça algo que infrinja os malditos termos daquele contrato.
Não sei o quão literal é o pacto que fiz com o demônio, só que na maioria das vezes que eu pareço fugir dos bons modos, o efeito alucinógeno me derruba. O grau da alucinação varia de acordo com a infração, mas, para a minha sorte, até agora um tapa na cara resolveu a maioria dos casos. Espero que continue desse jeito. Seria um grande problema se essas ilusões voltassem a ser como naquele tempo.
Ou talvez isso já esteja acontecendo.
Slam!
Era uma sexta-feira. Após fazer uma prova que haviam marcado hoje pela manhã, vim direto pro banheiro e abri a porta o mais rápido possível. Depois de parar em frente à pia e começar a lavar o rosto, dei de cara com meu próprio reflexo no espelho.
Por um momento, me perguntei o que estava vendo. “Essa é você, Marcy” é o que outra pessoa diria para mim, sem sombra de dúvidas. Mas sabendo de tudo que tem acontecido comigo, duvido muito dessa resposta.
A única parte que não me causava estranheza era a minha cara de sono. Tirando isso, todo o restante me incomodava: a sensação de ardência um pouco abaixo dos meus olhos, o leve rosado das minhas bochechas e, saindo um pouco da disforia visual, a minha mente.
Nos últimos dois dias, todas as vezes que adormeci por um milésimo de segundo, vislumbrei o que aconteceu entre eu e o Liel. Inicialmente, foram só lembranças, como um flashback, só que nos dias seguintes, deixou de ser apenas memórias. Comecei a sentir um frio na barriga, que eventualmente escalou para uma tensão que deixava minha respiração pesada enquanto dormia e que logo terminou com meu corpo ficando quente.
Bastava pensar sobre aquela noite e eu voltava a sentir tudo. Se já não fosse o suficiente, toda vez que revivia o ocorrido, minha visão sobre ele mudava. Em primeiro momento, foi só um sonho um pouco malicioso, mas agora, acho que tem algo a mais nisso. Será mesmo que ele não lembra de nada ou só…?
É, acho que é melhor não pensar sobre.
Terminei de tirar a sujeira dos olhos e fechei a torneira, logo saindo do banheiro. Quando passei pela porta, a única coisa que vi no térreo do meu prédio foram vastos corredores. Ao percorrer eles por alguns minutos, cheguei na área externa em frente a universidade.
Era um lugar bem arborizado. No meio, havia uma grande fonte com o letreiro de onde estudo; e ao redor do chafariz, um enorme gramado era dividido por caminhos de pedras bem rústicas que guiavam para cada área campus e criavam uma atmosfera atrativa pros estudantes. Percorrendo um desses caminhos, fui até um banco embaixo de uma árvore e me sentei.
Depois de me acomodar naquele ambiente vazio, fui olhar o celular e, de repente, surgiram 50 notificações. Quem quer que tenha morrido, ficou muito bem falado. Mas, apesar de ser uma fofoqueira de plantão, não queria dizer que tantas coisas na barra de tarefas me atraiam, pelo contrário, isso me irritava.
Fui ler com mais calma e me deparei com um grupo. Ao ver o tópico da discussão, a primeira coisa que passou pelos meus olhos foi “ensaio na casa do loiro”. A pessoa que colocou esse nome havia deixado bem claro que era algum conhecido meu. Logo após descer pelas mensagens e ver do que se tratava a conversa, tive certeza do que pensei ao ver que estavam tentando me arrastar juntos para…
— Reviver a banda? Nem fodendo!
Sugestões e mais sugestões dos meus antigos amigos de escola de retomar com essa ideia era no que se baseavam as mensagens. Não me importava eles fazerem isso, mas nunca que eu iria participar. Se o desgraçado do Aspen caísse da árvore que está acima de mim, eu poderia recogitar — só que não. Seria muito difícil isso acontecer.
Triim! Triim! Triim!
Ok, agora estou com medo. Foi só pensar nele que recebi uma ligação sua.
— O que cê quer, barbudo? — perguntei ao atender o telefone. — Já te falei que odeio que me adicionem em grupos.
— Qualé, minha filha, essa é uma ocasião importante. Onde é que você está? Preciso falar sobre isso pessoalmente.
Não queria revelar minha localização, muito menos abandonar a paz que é estar sozinha. Só que, conhecendo o careca, ele iria encher meu saco até que eu falasse a verdade.
— Que saco… — falei comigo mesma antes de voltar minha atenção para ele. — Eu estou perto do portão, onde ficam os banquinhos.
Bastou eu dizer isso que, em menos de alguns segundos, escutei um barulho de galho caindo. Quando olhei pra trás, adivinha quem estava deslizando pelo tronco? Exatamente. Se já não bastasse esse filha da puta ser imprevisível por si só, ele ainda parece ler a minha mente e surgir nas situações mais inusitadas. Eu vou matar esse corno.
— Mermão, dá pra você parar de ser estranho? O que você estava fazendo lá em cima pra começo de conversa? — questionei.
— Maçã que vem direto da árvore sempre é melhor — comentou de boca cheia e com a fruta em mãos. O homem logo se aproximou e se sentou ao meu lado, cruzando as pernas e continuando o papo que começou. — Mas e aí, Marcy? Você chegou a ver as mensagens no grupo? A parada sobre tocar novamente com a galera e tudo mais.
— Sim, sim. E eu suponho que se você precisava vir até mim, é porque quer dizer algo que não falaram lá, certo?
Ele levantou as sobrancelhas, aparentemente surpreso com minha hipótese.
— É, você está certa. Já digo que o que vou falar agora não foi ideia minha e não concordei, ok? — Respirou fundo. — O papo é o seguinte. O pessoal estava discutindo sobre sua presença. Quando disseram no grupo que queriam que você participasse, não era como apenas como uma apoiadora, e sim como…
— Como a guitarrista deles? Sem chance.
Aspen ficou surpreso com a minha fala repentina. Depois disso, ele apenas se calou, confirmando o que eu imaginava que iriam querer de mim.
Pelo nível da sugestão, não acho que tenha sido o Alex que proferiu essa ideia, pois assim como seu namorado, ele sabe que não toco mais. Não parei por odiar música ou o gênero rock em específico, tanto que ainda hoje vejo concertos disso; meus motivos estão relacionados às minhas memórias de dias que não quero lembrar.
Posso até sentir falta do som daquelas cordas e dos solos graves que eu fazia, mas prometi a mim mesma que não reviveria esse hábito. Pois não sei o que acontecerá comigo caso o faça.
Após ter negado a oferta do homem, ele se levantou do banco e, antes de sair, pediu desculpas pelo incômodo. Já tinha noção que isso não era sua culpa, falei que estava tudo bem. Enquanto se distanciava, por um momento, ele parou e voltou até mim, como se tivesse esquecido algo. Quando se aproximou, disse:
— Aliás, esqueci de te perguntar. Tem algum problema se o Liel ver o nosso ensaio? O pessoal gostou bastante dele.
Gostou, hm? Com certeza isso foi ideia dos três patetas, pois depois de tanto fofocar com o garoto, não duvido que não fosse querer o moleque por perto de novo.
— Por que cê tá me perguntando isso? — questionei. — Não sou mãe dele, oras.
Antes do outro responder, pus a mão sobre meu peito, sentindo uma leve pontada. Deve ter sido o contrato de merda.
— Bem, é porque esses dias vi vocês dois andando juntos. Se fosse só isso, tudo bem, só que sempre que alguém que já implicou contigo falava com ele, você parecia… proteger ele. Tem algo que você não contou pra mim ou isso é ciúmes e medo de perdê-lo pra alguém?
Em primeiro momento, fiquei bem desatenta com o papo, mas quando fez a última pergunta, virei para ele e mandei um “oi?” Me tira do sério o fato do careca estar me stalkeando, mas caralho, ciúmes daquele capeta rebaixado? As coisas melhoraram como ele e o Alex tanto queriam e a impressão que ficou foi essa? Ok, eles não sabem que vendi minha alma pro diabo e sou tutora dele, só que irei ignorar esse detalhe pois não posso falar disso com ninguém.
— Vá pra merda. — Peguei meu telefone no bolso e coloquei o contato na tela. — Aqui está o número dele.
— “Demônio desgraçado”? Que porra é essa, Marcy? — indagou.
— O que? Como assim?
Comecei a suar frio de repente. Tentei disfarçar com a pergunta, mas tava estampado na minha cara a mentira. O mais estranho é ter lido isso antes de entregar o celular e não ter reparado nesse detalhe. Por sorte, ele logo desviou a atenção ao fuçar a lista de números adicionados e ver o nome “careca” lá. O barbudo ficou puto, mas pelo menos isso o fez me deixar em paz e logo sair daqui.
No breve momento que fiquei sozinha, meu telefone vibrou mais uma vez. Agora, diferente de antes, quem me mandou mensagem foi o Liel, perguntando se eu ia almoçar no refeitório. Como já estava aqui, falei que sim e logo falei onde estava para nos encontrarmos. Assim que ele chegou, jogamos conversa fora até chegar o horário do restaurante abrir. Dada a hora, fomos para lá, passamos pela fila e finalmente nos sentamos para comer.
— Uaaahh! — O garoto bocejou ao ajeitar o prato na mesa. — Não dormi direito essa noite. Que merda.
— Achava que a única com problema de sono era eu. Já te falei pra você cuidar da sua rotina ou isso vai te prejudicar, moleque.
O demônio logo me encarou com desprezo e ficou de cara emburrada.
— Mas e aí? — Dei uma colherada na salada e engoli antes de continuar. — Como ficou aquela situação com o pessoal da sua turma? Pararam de te encher o saco?
— É, mais ou menos. — Ele logo colocou um pedaço de bife na boca e sua voz ficou abafada. — A maioria começou a me ignorar para evitar problemas, mas algumas garotas se sentaram perto de mim hoje e tive uma conversa legal com elas. Talvez não sejam tão ruins igual os outros.
— Não é porque não parecem que não vão ser. Não esqueça do que eu te falei dessa galera.
— Marcy, já te falei que não preciso da sua ajuda o tempo todo — afirmou em tom raivoso. — Eu sei me virar quando é preciso.
Preferi não discutir, mesmo que eu não concordasse. Não demorou muito para o tópico da conversa mudar.
— Aliás, você vai pro trabalho hoje? — perguntou.
— Sim, só que no turno da tarde. Todos os meus professores cancelaram aula, então tenho tempo de sobra. Por que?
— Ah, é que o Aspen me chamou para outro rolê deles, dessa vez na casa do Alex. Pelo o que me falaram, vai ser o reencontro da banda deles… irado! — Animou-se com a ideia. — Você vai, não é?
— Não pretendo. Creio que não saiba, mas eu parei de tocar tem muito tempo. E, sendo sincera, não tenho intenções de voltar.
Voltei a comer em paz depois de ter dito que não iria. Pouco tempo depois, o moleque, aparentemente decepcionado com a minha resposta, começou a fazer inúmeros questionamentos. “Por que você não vai? Qual o problema?” Eu poderia explicar uma porrada de vezes, mas já conhecendo a mentalidade pseudoinfantil do demônio, acharia difícil ele entender minhas motivações.
Tentei desviar o rumo da conversa, mas isso só piorou minha situação. Por algum motivo que desconheço, Liel queria mais do que tudo me ver tocando guitarra, então começou a insistir igual a uma criança. Terminou que fiquei tão de saco cheio que para calar a boca do pirralho, concordei em acompanhá-lo. Felizmente, isso funcionou, mas agora tenho a merda de um compromisso em plena sexta-feira.
E bem, depois de todo essa zona, nós dois saímos da universidade e fomos até a cafeteria. Como o ensaio seria durante a noite, bater no horário da tarde era o ideal. Durante todo o turno, assim como nos outros dias, torrei parte dos meus neurônios e acompanhei o garoto em todas suas tarefas e o ensinei a se portar da maneira mais adequada.
Quando o relógio bateu às 17:00 em ponto, nos trocamos no vestiário e voltamos para casa. Assim que passamos pela porta, a primeira coisa que fiz foi me jogar na poltrona para aliviar um pouco do cansaço.
— Finalmente! — Me espreguicei no pequeno sofá. — Certo. Você pode ir banhar primeiro, beleza? Temos bastante tempo até o pessoal vir buscar a gente.
— Mesmo? Pensei que você estivesse apressada pra ir — comentou enquanto revelava seus chifres e colocava sua mochila na cadeira da cozinha. — Esse papo de encontrar a galera te incomodou, pelo visto.
— Não, não — menti. — Estou tranquilíssima. Enfim, deixe de enrolação. Passa pro banheiro.
Após ter escutado minha ordem, mesmo que com um rosto confuso, ele obedeceu. Depois de passar pelo cômodo ao lado, não demorou muito para ouvir o barulho do chuveiro ligando, então logo tive a garantia de que o moleque não me veria entrando dentro do quarto.
Ao passar pela porta, fui direto no meu guarda-roupa. Abri as porta e lá estavam todas as minhas coisas como as deixei: os meus tênis todos organizados em suas respectivas caixas, as roupas nos seus respectivos cabides e, mais ao fundo, todos os meus livros enfileirados na ordem do maior para o menor.
Olhando com mais calma cada um dos romances que já tinha lido, tinha um que ficava mais no canto do armário. Esse, por ser o meu favorito, deixava tudo que ninguém podia ver atrás dele. Bastou puxar o livrório e, no espaço pendente, havia um pequeno estojo marrom.
O que tinha ali era meu passado musical. Muitas coisas estavam guardadas, mas o que me interessava era a minha palheta de cor vermelha e a correia de pintura xadrez, ambos acessórios de um instrumento de corda.
Fazia muito tempo desde que tinha visto esses carinhas, tanto que estavam empoeirados. Na verdade, eles nem deveriam estar aqui, assim como a minha guitarra. Já tentei tacar fogo e até destruir, mas nunca o fiz de fato. Por conta disso, sempre deixei que outras pessoas ficassem com essas coisas, e esses dois objetos foram algumas das coisas que sobraram de todo meu passado amargo que ainda estou tentando me livrar.
E eu poderia fazer isso hoje. Acho que alguém do grupo iria gostar de um presente… Esquece, é mais provável que me odeiem, pois todo mundo sabe que essas coisas são minhas. Que ideia idiota, Marcy. Tentando jogar suas próprias responsabilidades para os outros.
— Acho melhor eu voltar.
Depois de sussurrar comigo mesma, fui para a sala com o estojo em mão e logo o guardei na minha mochila. Após isso, me sentei no sofá como se nada tivesse acontecido e esperei o Liel sair do quarto. Quando Liel finalmente deu as caras, já totalmente vestido em seu jeitinho alternativo, passei para o banheiro e assim que terminei de me aprontar, voltei para pegar minha bolsa.
— E aí, vamos? — perguntei.
— Claro. Vamos.
Descemos as escadas e, poucos minutos após parar em frente a entrada do nosso prédio, um carro estacionou ao nosso lado. Quando o vidro abriu, lá estava Aspen e Alex, respectivamente, no banco do motorista e do passageiro. Sem muita enrolação, fomos nos assentos de trás e seguimos até a casa do loiro, que era a 20 minutos de onde moramos.