O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Catpítulo 50: O homem que imagina

No momento em que os cavaleiros que escoltaria os novos alunos até a academia Elefthería deixaram à capital Selene, sob o comando de Enri, eles entraram em formação.

A disposição dos homens ficou mais ou menos assim: os únicos três Cavaleiros Reais presentes lideravam a equipe, seguidos por outros cinco combatentes. Eles estavam dispostos de uma maneira que se poderia desenhar uma seta, com os mais fortes assumindo as três pontas que desenhavam o triângulo e o restante compondo o corpo. E então vinha à carruagem dourada, que era onde Tércio e os futuros alunos da academia se achavam. Logo em seguida encontravam-se os demais veículos, um atrás do outro, sempre em fila.

Dez homens, cinco de cada lado, flanqueavam a caravana, mantendo um fluxo constante que procurava minimizar as brechas. E, por fim, o restante dos Cavaleiros seguiam na retaguarda.

Apesar de Enri ainda estar ferido, ele se recusou a ficar em uma posição mais confortável, e assim se dispôs a monitorar os arredores. Sendo obrigado, dessa maneira, a ceder seu lugar na ponta da formação, de tempos em tempos, para alguém em melhores condições. Arthur ficou responsável por proteger a carruagem em que Tércio estava. E esse último, tudo o que deveria fazer era não sair do lado de Serena.

O grupo avançou lentamente em direção à Floresta Meia Lua. Por ainda estarem muito perto de Selene, não havia monstros nos arredores, e isso permitiu que o início fosse tranquilo.

Arthur, que não era tão rígido quanto os demais a ponto de manter a mesma posição o tempo todo, em certo momento, decidiu se aproximar pelo lado direito da carruagem dourada e, da janela, deu início a uma conversa com Tércio que durou por algumas horas. E isso foi de fato agradável para o ex-condenado, que teve a oportunidade de se livrar do tédio ou, pelo menos, se distrair.

Embora estivesse na companhia de quatro pessoas, o queridinho de Eliza não teve o menor interesse em dialogar com nenhuma delas, pois mesmo se tentasse, não haveria nenhum assunto para se discutir.

É claro que, depois de muitas bajulações descaradas, Tércio não foi mais capaz de esconder o motivo para continuar papeando com seu líder de esquadrão. E, sem vergonha nenhuma, pediu para que eles trocassem de lugar. Mas Arthur se manteve firme e recusou todas as propostas que recebeu.

Dentro do veículo, Iris e Isis conversavam acaloradamente enquanto Serena era arrastada para a disputa das irmãs. Isaac também participava da discussão, porém seu papel era limitado a dizer algumas piadas.

A viagem continuou por horas, sem nenhum incidente. Estavam todos muito relaxados e até o momento sequer um Tardo havia aparecido. Tudo indicava que seria uma jornada pacífica. Mas quando o grupo começou a se aproximar cada vez mais da Floresta Meia Lua, os cavaleiros logo trataram de levantaram suas guardas e não ousaram se distrair. Afinal, cada um deles sabiam que monstros terríveis habitavam aquele lugar.

Faltando poucas horas para o pôr do sol, o grupo avistou um bosque, não muito longe de onde estavam. No entanto, ainda havia uma longa distância para que eles de fato entrassem na floresta.

Assim sendo, Enri, como o líder, decidiu que passariam a noite por ali, já que aquele era um lugar mais seguro. Dessa forma, poderiam aproveitar o máximo de sol no dia seguinte para avançar pela floresta.

Após procurar por um bom lugar para passar a noite, o grupo decidiu parar em uma clareira cercada por arbustos rasteiros e chão gramado. Quando estacionaram, os cavaleiros se dividiram em grupos e rapidamente começaram a trabalhar. Alguns arranjaram água para os cavalos, outros prepararam as barracas para dormir e os dois melhores cozinheiros cuidaram da comida.

Serena e os demais futuros alunos da academia não se preocuparam em ajudar. Ao invés disso, escolheram a melhor sombra e lá se sentaram e esperaram.

Porém, embora esse comportamento tenha sido normal para a grande maioria, houve uma pessoa que se incomodou com a atitude despreocupada do bando.

― Ei! Vocês... Tércio chamou a atenção dos quatro. ― Vão ficar sentados aí até quando? Ajudem em alguma coisa!

O rapaz que possuía o cabelo “mastigado por vacas”, que estava carregando um saco de batatas, não pôde deixar de se irritar quando viu Serena, Isaac, Iris e Isis sentados, rindo e conversando enquanto o resto trabalhava. Depois de ter sido obrigado a aturá-los por um longo tempo, não os deixaria ficar de bobeira ― ainda mais às gêmeas.

No entanto, o único considerado indelicado de verdade foi o próprio resmungão, que teve sua atenção chamada.

― Não seja rude! ― bronqueou Enri que estava passando por perto. ― Eles são membros da nobreza. Não há trabalhos para eles aqui.

― Você está certo ―disse Tércio, parecendo ter concordado. Mas foi que então sua boca se curvou em um sorriso maldoso e ele falou em um tom de deboche. ― Esse povo mimado não deve saber nem descascar uma batata.

Ouvindo o desdenho descarado do garoto, as gêmeas fizeram uma expressão carrancuda e cruzaram os braços em um sorriso perfeito. Isaac deu um sorriso envergonhado e coçou a cabeça de maneira constrangida, dado que isso de fato era verdade. Mas de todos, Serena foi a que ficou mais revoltada. Seu olhar fervoroso fitou Tércio com ardor e, para demonstrar seu descontentamento, bufou algumas vezes pelo nariz.

― Não foi isso que eu quis dizer! ― Apressou-se Enri em se justificar. ― O que eu falei foi que, eles são nobres, os futuros pilares deste país, e não precisam fazer um trabalho tão... ― Mas antes que pudesse terminar de falar, ele foi interrompido.

Com uma expressão colérica no rosto, Serena se levantou à medida que mantinha um olhar capaz de gelar a alma fixo no rapaz coberto por cicatrizes. Seu orgulho havia sido ferido. Como poderia ficar calada?

― Eu vou ajudar a preparar o jantar! ― afirmou. E assim, sem dizer mais nenhuma palavra, ela caminhou em direção a fogueira que havia sido feita pelos cavaleiros.

Logo em seguida foi a vez das gêmeas, que seguiram a amiga conforme faziam caretas feias e infantis para a pessoa que havia perturbado seu descanso.

No entanto, Tércio ainda não estava satisfeito. Seu olhar voltou-se para Isaac que continuava sentado.

― Eu... Eu vou ajudar a arrumar as barracas ― balbuciou o neto do conde, levantando-se.

Vendo todos se afastarem, o ex-condenado fez um som triunfante de: “hunf”. Depois de ter sido obrigado a ficar na carruagem e de ter aturado discussões sem sentido por tanto tempo, é claro que não os deixaria ficar sem fazer nada.

― Está vendo? É só falar com jeitinho ― disse Tércio à Enri que, com o saco de batata pendurado sobre o ombro, exibiu um meio sorriso satisfeito e saiu.

Sua atitude provocou estranhamento no Cavaleiro Real. Como poderia um garoto ser tão abusado assim? O novo integrante da Equipe de Subjugação era um verdadeiro encrenqueiro que não respeitava autoridades!

Ainda no castelo do duque, Tércio, a todo o momento, causou problemas, com seus desafios a uma das maiores autoridades do reino e sua busca por aventuras que o levou a entrar em lugares que não devia. E agora ele colocou os jovens nobres para trabalhar? Um verdadeiro encrenqueiro!

O sol aos poucos foi se escondendo e à medida que o tempo passava o acampamento foi sendo montado. Devido ao seu grande orgulho, Serena ajudou a preparar o jantar do início ao fim. Ela não queria ser julgada por aquele menino outra vez. Mas, para ser sincera, ela mais atrapalhou do que ajudou. Várias vezes derrubou os ingredientes que deveriam ser lavados, no chão. Em certo momento confundiu o sal com uma coisa estranha, de gosto amargo e que ninguém sabia o que era. E quando pegou a faca... bem, digamos que: quase perdeu um dedo.

As gêmeas não se arriscaram a tentar cozinhar. Ao invés disso, decidiram deixar a amiga sozinha e ajudaram Isaac a arrumar as barracas. Mas o resultado foi o mesmo: um desastre.

Após o jantar, que graças a Tércio se tornou intragável ― mas é claro, ninguém o culpava ― Enri mais uma vez despachou um grupo de busca, para ter certeza de que não havia nenhum monstro problemático por perto.

E como Tércio estava entediado de ficar parado, ele pegou o cavalo de Arthur e partiu mata adentro junto a cinco combatentes.

Quando ele partiu, Serena o acompanhou com uma expressão feia, que demonstrava descontentamento e frustração. Não sabia ao certo o que pensar, mas suas conclusões sobre o rapaz não eram das melhores.

― Eu não gosto dele! ― comentou Iris.

― Eu também não! ― concordou Isis.

― Ele é meio rude, mas não parece ser uma pessoa ruim. ― Quem defendeu Tércio foi Isaac.

Entretanto, apesar da tentativa do neto do conde de amenizar a situação do colega de viagem, as garotas pareciam já ter chegado a um veredito.

― Não seja ingênuo, Isaac ― manifestou-se Serena. ― Aquele garoto é um egoísta, arrogante, convencido, petulante, desrespeitoso, grosseiro, mal-educado... – A lista de ofensas da jovem esguia continuou por alguns instantes. Foram tantos que até mesmo as gêmeas acharam um pouco exagerado.

Enquanto isso, não muito longe dali, Enri estava sentado em uma pedra, cuidando de seu braço ferido. Ele recebeu tratamentos durante sua estadia na mansão do duque, mas a única coisa que isso fez foi aliviar a dor. Ainda levaria vários dias para seu braço esquerdo ficar completamente curado. Arthur, que se encontrava sentado ao seu lado, agora de barriga cheia, começou a mostrar os primeiros sinais de sono através de um bocejo preguiçoso. Mesmo que tenha acabado de anoitecer, ele já estava pronto para dormir.

― Parece que eles não gostam muito do Tércio ― comentou o líder de esquadrão cujos olhos lacrimejavam.

― Eu não posso culpá-los. Para ser sincero, também não gosto muito dele. Ele não tem nenhum respeito por autoridade ― disse Enri, terminando de enfaixar o braço.

― É verdade! Ele não parece ser do tipo que se dá muito bem com o pessoal da nobreza. Quero dizer, ele até se recusou a se ajoelhar perante o Duque Griffon. ― Apesar de estar dizendo isso, Arthur não parecia de fato se importar com a insolência do colega, pois no canto de seus lábios era possível ver um sorriso discreto.

― Francamente! Eu não entendo por que a diretora Eliza o colocou na Equipe de Subjugação ― resmungou Enri.

― Bem, de acordo com o que a diretora me disse, ele é muito forte.

Nesse meio tempo, na mata, ao redor do acampamento. Tércio estava cavalgando na frente, sem se importar com os outros cavaleiros. Nesse dia horrível, essa era sua única diversão.

Enquanto cavalgava, olhava para os lados, em busca de monstros, mas não viu nenhum. Insatisfeito, o encrenqueiro se preparou para galopar outra vez e, assim, abrir mais distância entre ele e os combatentes, quando uma voz grossa o chamou:

― Espere um pouco, jovem apressado.

Tércio se virou e viu um sujeito que vestia uma armadura prateada, com linhas douradas, se aproximando a galopes.

Aquele homem era o Cavaleiro Real de cabelo grisalho e corpo robusto que fora emprestado ao grupo de escolta, pelo Duque. O ex-prisioneiro lembrou que mais cedo Arthur havia lhe contado sobre aquele senhor que, além de possuir uma força física extraordinário e músculos de dar inveja em muitas pessoas, era um grande aliado de Magus Griffon.

― Vá com calma, jovem ― pediu Darlan quando se aproximou. – Esse velho aqui já não aguenta ir tão rápido.

– Eu posso ir sozinho. – Disse Tércio.

AH! AH! AH! ― Darlan soltou uma grandiosa gargalhada, rouca e pausada, de modo que causava certo impacto ao ser proferida. ― Quando se está em grupo, o melhor é ir todos juntos. Venha. Vamos nos juntar aos outros ― dizendo isso, o sujeito de voz grave controlou seu cavalo para que desse meia volta e retornasse para onde os demais se encontravam. Mas ele não partiu sem ter certeza de estar sendo seguido.

E embora estivesse ansioso para cavalgar com mais liberdade, o apressado não viu problema em diminuir a marcha e acompanhar os retardatários.

― Garoto, eu posso estar enganado, mas esse velho aqui tem algum conhecimento em magia e eu posso sentir uma poderosa Energia Mágica vinda de você. Por um acaso, você é um mago? ― questionou Darlan que, montado em seu cavalo com a coluna ereta, olhou sobre o ombro, mirando o jovem aventureiro que vinha logo atrás.

― Quer saber se eu sei usar magia, é? Sim, eu sei ― disse Tércio com sinceridade. ― Por quê?

AH! AH! AH! ― Darlan sorriu grandiosamente. ― Foi o que imaginei. Mas, você não me parece um nobre.

― E não sou.

― Eu também imaginei isso.

― Velhote, você imagina muitas coisas, hein! ― observou Tércio que olhou para o Cavaleiro Real com estranheza.

AH! AH! AH! Que garoto sincero. ― Darlan se divertiu com a honestidade do rapaz. ― Mas eu também imaginei isso.

Com uma cara esquisita, Tércio olhou para o homem de confiança do duque. Pois a despeito da postura rígida e voz grave que chamava a atenção, ele aparentava ser do tipo alegre, o tipo de pessoa que é fácil conversar.

― Garoto, devo dizer isso para o seu próprio bem: ― Antes de continuar, com um tom sombrio, Darlan assumiu um semblante sério ― independentemente do tipo de magia que você use, tome cuidado! A realeza e os aristocratas não gostam muito de plebeus que possam desafiá-los.

Notava-se pela sua maneira de falar, que esse era um conselho sincero, que buscava alertar o próximo de um perigo muito conhecido.

Entretanto, a despeito da reação que era de se esperar, Tércio não pareceu muito impressionado.

Hunf! E daí? Se o rei quiser, que venha ele e seus bajuladores. Acabo com a raça de todo mundo.

AH! AH! AH! Foi o que imaginei...

Com as risadas escandalosas e grandiosas de Darlan espantando o silêncio do bosque, Tércio e os cavaleiros continuaram a procurar por monstros nas redondezas.

Passado algum tempo, a equipe de busca voltou e, de acordo com o que o ex-condenado disse, nem um monstro perigoso foi encontrado. Mas eles avistaram um grupo de Goblins rondando a área.

A notícia de que a área estava segura e não havia motivo para maiores preocupações deixou a tropa e os novos estudantes aliviados. Seria cansativo passar as próximas horas pensando em quando algo saltaria sobre suas gargantas.

E por isso, o pessoal se sentiu mais seguro para se retirar e dormir.

Quanto aos Goblins, Tércio até avisou para tomarem cuidado com coisas estranhas se arrastando pelo chão durante a madrugada. Mas foi inútil, pois na manhã seguinte, metade dos mantimentos e algumas malas contendo roupas haviam desaparecido.

Ah, como isso é possível? Como eles passaram por nós? ― Queixava-se um dos soldados que ficara responsável de vigiar o acampamento.

― Minha mala! Minha mala sumiu! ― Iris gritava histericamente enquanto revirava a carruagem em que tinha deixado todas as suas coisas.

Ahaha! Bem feito! ― Gargalhou Isis, apontando o dedo para a irmã.

― Está tudo bem! Nós vamos encontrar suas coisas ― consolou Serena, sabendo que não poderia deixar a amiga seguir viagem só com as roupas do corpo. Do contrário, ninguém naquela caravana teria um único segundo de paz.

E os cavaleiros pareciam concordar quanto a isso, já que todos estavam andando ao redor do acampamento, revirando arbustos e seguindo trilhas suspeitas que não levavam a lugar algum. Mesmo Arthur decidiu participar das buscas. Apenas uma pessoa se manteve alheia ao acontecimento.

― Eu avisei ― disse Tércio que estava comendo um pedaço de pão, com sua bolsa protegida em suas costas.

E, como era de se esperar, tal comentário provocou uma reação instantânea nas garotas que franziram o cenho.

Enri rapidamente organizou alguns homens para procurar pela mala de Iris e apenas ela, mas que se mostrou um desperdício de tempo, pois Goblins não eram apenas bons em roubar coisas. Sua especialidade real era fugir.

E então, após um longo período desperdiçado, procurando pelos itens perdidos, o grupo enfim decidiu partir de mãos vazias.

Iris fez pirraça por alguns minutos. Berrou e chorou. Mas no fim, Serena conseguiu convencê-la a deixar a mala para trás. E ela só conseguiu isso porque disse que, quando chegassem à academia, a amiga poderia comprar roupas ainda mais bonitas do que as da sua irmã.

Assim, o grupo iniciou o seu segundo dia de viagem...

Enquanto percorriam o bosque, Tércio, que estava grudado na janela da carruagem, pôde jurar ter visto uma criaturinha de pele verde usando um extravagante vestido rosa entre as árvores. Essa cena o fez sorrir... Ou melhor, gargalhar, deixando todos dentro do veículo confusos, pensando que ele havia enlouquecido.

O grupo continuou andando por um longo tempo. Na hora do almoço, Serena mais uma vez insistiu em ajudar, e mais uma vez, comer se tornou uma tarefa dolorosa. Mas como ela era a neta do mais poderoso duque de Aurora, ninguém ousou dizer uma única palavra e preferiram abafar o choro e os resmungos a cada colherada ― com exceção de Tércio, que disse que a comida da prisão é melhor. No entanto, ainda assim, ele comeu tudo.

Após o almoço, a jornada recomeçou. E agora eles estavam oficialmente dentro da Floresta Meia Lua. E como esperado, a floresta mais perigosa do reino logo mostrou suas presas, quando um Ogro solitário atacou o grupo.

Mas o monstro foi derrotado com facilidade por Bernardo, um dos Cavaleiros Reais que fora emprestado pelo Duque Griffon.

Depois de entrarem na floresta, não demorou muito tempo para o bando chegar à abandonada vila Minguante. A vila em que Tércio e os demais passaram a noite quando estava indo para a capital.

No entanto, ao contrário daquele dia, essa não seria uma estadia tranquila...

 


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