O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 59: Teorias

Já era noite quando o jovem que foi resgatado por Eliza enfim acordou. Com as pálpebras pesadas, demonstrou certa dificuldade ao abrir os olhos e olhar em volta.

Ele estava dentro de uma tenda fechada. Não havia ninguém por perto, apenas um balde de água suja que se encontrava próximo a sua cabeça, junto a um pano molhado. E, pendurado em um canto, uma lamparina de Clarita cintilava uma luz amarelada.

Quando tentou se levantar, sentiu o corpo pesado e dolorido, como se tivesse sido mastigado por Cães Negros e chutado por ogros.

Necessitando de um grande esforço, ele se sentou. Foi então que reparou: seu corpo não estava mais coberto por sangue e poeira. Suas feridas haviam sido tratadas com uma pomada que exalava um cheiro estranho, meio amargo. E, mesmo sendo difícil de acreditar, as dezenas de pequenos cortes, espalhados por todo o seu corpo, já tinham começado a se fechar. Somente o seu ombro, que foi perfurado, achava-se coberto por ataduras, tornando difícil dizer em que estado se encontrava.

Tércio se levantou e o pano que lhe cobria, caiu no chão. Mas o que não havia percebido até então era que se encontrava nu.

Sem se importar muito com isso, ele se abaixou para pegar o pano. Enrolou-o na cintura. E deixou a tenda.

Do lado de fora, a agitação e o rebuliço tomavam conta do lugar. Por algum motivo, agora havia mais cavaleiros do que antes. O número exato não se sabia, mas com certeza passava dos cem. Alguns usavam armaduras pratas reluzentes, outros uma mistura de prata e dourado, como Enri e os Cavaleiros Reais.

Com tantas pessoas andando para lá e para cá, parecia que a vila Minguante tinha ganhado vida novamente. O brilho das Claritas cintilava pelas ruas antes escuras. O barulho das conversas espantava a solidão da floresta. E o vai e vem das carruagens dava a impressão de que o comércio tinha renascido.

Tércio, sem se alongar muito, passou os olhos pelos muitos cavaleiros. E, enquanto segurava o pano em sua cintura com uma das mãos, caminhou rumo ao lugar em que as conversas pareciam mais animadas e o canto de vozes familiares eram ouvidas.

Bem no meio da rua, uma fogueira queimava, projetando chamas que passavam de um metro de altura, com sons crepitantes se espalhando pelo ar. E ao seu redor, encontravam-se assentos improvisados de madeiras, que na verdade não passavam de troncos encontrados na floresta.

Sentados ali, estavam Serena, Iris, Isis, Isaac, Arthur e, alguém que Tércio não esperava ver tão cedo, o filho do Duque Griffon, Calebe.

Quando viram Tércio se aproximar, a conversa parou e todos olharam para ele um tanto surpresos. As gêmeas, que estavam sentadas, uma de cada lado de Serena, fitaram o corpo descoberto em partes do jovem de cabelos compridos ― mas é claro, sem chamar atenção, mantendo a discrição esperada de alguém da nobreza. Logo em seguida, em uníssono, abaixaram as cabeças ao mesmo tempo em que seus rostos coraram de leve.

Por um breve momento, ninguém falou nada. Até que por fim, Arthur abriu a boca:

― Você deveria ficar deitado ― disse com preocupação.

Arthur teve algumas costelas quebradas e uns poucos machucados leves. Mas Tércio ficou coberto pelo próprio sangue, o que gerou uma preocupação por parte de todos, que temeram por sua vida. Por isso, ele não pôde deixar de ficar preocupado ao vê-lo andando por aí.

Ah, não se preocupe. Isso foi só um arranhão ― respondeu o irresponsável, dando de ombros e desconsiderando o aviso. ― Estou tão bem que poderia sapatear, se soubesse.

― Como é que isso é “estar bem”? ― Calebe, que estava sentado ao lado de Arthur, falou. Ele olhou para o rapaz responsável por invadir a cozinha de sua casa de cima a baixo e continuou. ― Você parece mais um morto-vivo. Um morto-vivo descabelado ― dizendo isso, ele soltou uma gargalhada divertida.

Tércio olhou para Calebe com um sorriso brincalhão e o provocou de volta:

― Acha que pode falar alguma coisa? Olha só para isso aí na sua cabeça. Deve dar para amarrar um boi com isso tudo.

E de fato, não tinha como negar. O cabelo de Calebe era mesmo maior e mais volumoso do que o do jovem, cujos fios desiguais, segundo Mia ― a empregada do castelo ―, pareciam terem sido mastigados por uma vaca.

― Está grande mesmo, não é? ― comentou o herdeiro do duque, que pegou uma mecha púrpura e avaliou as pontas com a testa franzida. ― Perdi um pouco o controle da situação. Acho que já passou da hora de cortar.

Aquilo, para Tércio, foi um tremendo choque, já que ele mesmo não tinha a menor intenção de aparar o ninho de ratos malcuidado que coroava sua cabeça. E embora tenha feito uma brincadeira para provocar o Cavaleiro de Palavras Encantadas, a resposta que recebeu fez o jovem apegado ao próprio cabelo mudar de atitude e tentar convencer o outro lado de que essa seria uma péssima ideia. A partir desse ponto, os dois tiveram uma breve discussão.

E enquanto eles discutiam de forma amigável, como se já existisse uma grande intimidade entre os dois, Serena, usando da mesma discrição das gêmeas, mirou com o canto dos olhos as feridas no peito de Tércio. Sendo mais específico, as cicatrizes antigas.

Havia de todos os tipos e tamanhos: cortes, perfurações e algumas difíceis de dizer sobre como foram feitas. E não era uma ou duas, eram dezenas. Em seu peito, braços, costas, barriga, parecia que elas estavam em cada pedaço de sua pele.

Muitas eram discretas, como aquelas que a pessoa obtém quando corta o dedo com a faca de maneira superficial. E que depois de um tempo, tudo o que sobra é um risco quase inexistente. Entretanto, algumas eram grotescas, tipo a que ficava na lateral esquerda de seu abdômen, sobre as primeiras costelas.

Talvez fosse indelicado de sua parte pensar desse jeito, mas parecia que alguém havia arrancado um pedaço de sua carne e consequentemente, o corpo não foi capaz de se curar por completo. Parecia até mesmo existir um buraco naquela parte.

Quando presenciou a batalha de mais cedo, Serena, mesmo não gostando muito dele, não conseguiu deixar de admirá-lo. E, também, de achá-lo louco. Quem, em sã consciência, iria tão longe em uma luta a ponto de sangrar pelos olhos e ouvidos?

Inicialmente, ela pensou que Tércio, naquele momento, apenas tinha exagerado e ido longe demais. Mas depois de ver todas aquelas cicatrizes, foi obrigada a rever seus pensamentos. E, de certa forma, se sentiu um pouco deprimida.

Será que se fosse obrigada a enfrentar uma situação similar, ela teria a coragem de fazer o mesmo?

Era difícil não duvidar de si própria.

Sentindo-se para baixo, Serena soltou um longo suspiro. Invejava tal determinação.

Sua atenção foi chamada de tal maneira para as marcas de batalha do jovem que a protegeu, que ela acabou abandonando a discrição à medida que olhava com olhos bem abertos para as queimaduras e demais deformidades na pele de seu guarda-costas.

Mas então, voltando a si, percebeu que estava encarando demais Tércio e logo tratou de mudar o foco de sua visão.

Contudo, sua atitude não passou despercebido pelo ex-prisioneiro que, sem vergonha nenhuma, provocou:

― O que foi, princesinha? Gostou do que viu? ― disse com um sorriso atrevido enquanto dava uma piscadela.

― Vulgar. Grosso. Brutamontes! ― praguejou Serena, que apesar de não planejar dizer tais palavras, acabou falando sem pensar para diminuir o constrangimento de ser descoberta. ― Vá vestir uma roupa. Ou por um acaso, um selvagem como você não sabe o que é isso.

Os insultos de Serena não irritaram Tércio. Pelo contrário, o divertiram grandemente. Ele gargalhou conforme ela parecia ficar mais irritada e mais vermelha.

― Do que você está rindo, seu brutamonte? ― esganiçou a garota de expressão suave que, mesmo tentando parecer intimidadora, não conseguia abandonar a delicadeza em suas feições.

Mas Tércio apenas sorriu de volta.

― A Serena está certa. Você deveria ir se vestir ― disse Calebe, tentando socorrer sua sobrinha.

― Se eu soubesse onde estão minhas coisas, já teria feito isso ― respondeu o rapaz que se mostrava bastante à vontade.

― Sua bolsa está logo ali. Naquela carruagem. ― Arthur apontou para um veículo que se encontrava estacionado logo ao lado.

E com isso, Tércio foi procurar por suas coisas. Chegando à carruagem, ele revirou as muitas malas que ali se encontravam ― jogando-as para os lados ― e não demorou muito para encontrar sua bolsa. De lá, tirou uma camisa azul e uma calça cinza.

Após terminar de escolher a roupa que iria vestir, Tércio, agindo de maneira casual, começou a desenrolar o pano que estava preso em sua cintura. Notava-se que ele pretendia se trocar ali mesmo, na frente de todos.

Mas, neste momento, uma voz estridente soou:

― O que você está fazendo, seu vulgar!? Desavergonhado! ― Quando percebeu o que o menino pretendia fazer, em um salto, Serena se levantou e começou a berrar com os olhos fechados e o rosto corado.

Tércio olhou para ela por um instante e, sem se importar com seus berros estridulantes, falou:

― Eu vou trocar de roupa, não percebe? ― abriu os braços. ― Se não quiser ver, então não olha ― dizendo isso, ele a ignorou e voltou a se preparar

― Seu desprezível! Como ousa fazer algo tão obsceno na frente de uma dama? ― protestou Serena com os punhos cerrados. ― Se você quer se trocar, faça isso em uma tenda ou na floresta, para que os monstros te devorem.

― Tércio, tenha modos! ― Calebe chamou-lhe a atenção.

Com o rubor espalhado pelo rosto, as gêmeas abaixaram a cabeça, se olharam e deram risadinhas. Em contrapartida, Arthur soltou um suspiro. Por algum motivo, não parecia tão surpreso com a atitude do colega.

Vendo que não conseguiria se vestir em paz, Tércio se virou e caminhou em direção a uma tenda. Mas não deixou de soltar alguns resmungos enquanto andava:

Como ousa fazer algo tão obsceno na frente de uma dama?” ― Ele usou de uma voz fina para imitar Serena. ― Hunf! Dama. Não passa de uma princesinha mimada.

Não demorou muito tempo para ele voltar, mas agora, vestido como uma pessoa decente. E sem perder tempo, foi logo se juntando aos demais que esperavam pelo seu retorno.

Quando se apoiou no ombro de Arthur para se sentar ao seu lado, o mesmo soltou um gemido e gritou um doloroso: “Ai!”; ao mesmo tempo em que se curvou de lado e apoiou as costelas quebradas com a mão.

― Foi mal! ―desculpou-se Tércio, pouco arrependido. Tinha esquecido que não foi o único a ficar ferido da batalha.

― Não se preocupe. Eu vou ficar bem ― disse Arthur, mordendo os lábios para controlar a dor. Em seguida, ele olhou o colega de cima a baixo e continuou. ― Mas eu tenho que perguntar: como foi que você arrumou todas essas cicatrizes? Até parece que um gigante te mastigou e depois cuspiu.

O jovem, líder de um esquadrão da equipe de subjugação, não era o único curioso para conhecer a resposta. Pois no instante em que ele fez a pergunta, todos se viraram para encarar o responsável por frear o bandido esquelético.

Hm... ― Tércio olhou para o colega e depois para o céu noturno. Por fim, cruzou os braços antes de dizer: ― São tantas que, se eu for falar de cada uma, ficaremos aqui a noite toda.

Não é que ele quisesse evitar tal assunto, era só que, de fato existiam tantas cobrindo o seu corpo que falar de cada uma levaria uma eternidade.

― Bem, isso não é da nossa conta ―  disse Calebe. Como o único adulto presente, era sua responsabilidade controlar as coisas. Dessa forma, o herdeiro do duque logo mudou de assunto. ― A respeito do homem de manto que você enfrentou, poderia me falar sobre ele?

O pedido fez Tércio estreitar os olhos. Não era estranho que lhe perguntassem sobre o seu confronto, ainda mais levando em consideração as circunstâncias que o levaram a acontecer. Mas ser forçado a se recordar de Néfi não era uma coisa muito agradável no momento.

― Ele escapou? ― questionou em tom sério.

― Sim! ― afirmou Calebe, acenando com a cabeça. ― Infelizmente, quando chegamos, tanto o sujeito de manto, quanto a Dama de Rosa já haviam fugido. Meus homens procuraram pela floresta em volta da vila, mas não encontraram nem mesmo um único rastro deles.

― E aquele outro cara? ― lembrou-se do bárbaro que usava machado.

Ah, você está falando do Canibal? Bem, ele e seus capangas foram capturados por Darlan e os outros cavaleiros. E já foram levados para a capital. ― informou Calebe. ― Além disso, eu já recolhi o depoimento de todos sobre o ocorrido, mas não há muitas coisas sobre o homem de manto. E em minha opinião, há algo de errado com ele. Talvez, e isso é pura especulação minha, não seja só um saqueador qualquer.

― Pensou em algo diferente? ― perguntou Tércio, intrigado.

― Bem... a situação no geral é muito estranha ― Calebe fez uma pausa e com um semblante profundo explicou suas suspeitas: ― Para começar, tem o fato de que O Canibal e a Dama de Rosa estavam juntos.

― E que diferença isso faz? ― Tércio franziu a testa. ― São tudo bandidos, não são?

― Até podem ser ― Calebe hesitou por um segundo ―, mas o jeito dos dois agirem é diferente. Não é novidade que O Canibal é um homem perverso e sórdido, que faz uso de métodos condenáveis para atingir seus objetivos. Por outro lado, a Dama de Rosa, apesar de estar entre os dez mais procurados do Reino, ela nunca feriu ou permitiu que crianças se ferissem, independentemente de suas origens, durante suas emboscadas. Mas dessa vez, ela ajudou na tentativa de sequestro de quatro jovens.

― Mesmo que nunca tenha feito isso antes, ela ainda é uma criminosa. ― O sempre calado Isaac interrompeu a conversa e apresentou seus pensamentos. ― Talvez... ― pensou por um instante ― ela tenha decidido que seria mais fácil ganhar dinheiro nos sequestrando. Então, mudou o jeito de agir.

― Eu não acho que seja esse o caso. Afinal, a única coisa que ela fez foi ficar me vigiando. Acredito que se aquela mulher quisesse, poderia ter me matado sem nenhum problema e sequestrado vocês. ― Arthur a defendeu. Era estranho, mas depois de ficar sob seu domínio, sentia que a conhecia um pouco melhor do que os demais e não a achava uma grande vilã.

― O que você falou faz sentido ― disse Calebe à Isaac. ― Mas Arthur tem razão. Como eu falei, a Dama de Rosa é uma das dez pessoas mais procuradas do reino. Sua força está acima dos Cavaleiros Reais normais, de modo que, tratando-se de Artes Marciais, ela se equipara aos Cavaleiros de Palavras Encantadas. Se fosse o seu desejo sequestrá-los, isso não seria tão difícil. Além do mais, dos homens que foram presos, todos pertenciam ao grupo do Canibal. Nenhum fazia parte do bando dela.

― E o homem com quem lutei. Era de algum desses grupos? ― questionou Tércio.

― Eu não tenho certeza, mas acredito que não. ― O herdeiro de uma das maiores famílias do reino voltou a falar. ― Nunca ouvi sobre um criminoso que batesse com a descrição dele. Sem falar na tal voz misteriosa que veio do céu e nas bolas de luz que foram atiradas contra vocês. Ambos são Encantamentos Mágicos muito comuns. Por isso Isaac foi capaz de reconhecê-los. Se houvesse um mago entre um desses grupos, nós definitivamente saberíamos disso. Minha teoria é que esses dois, de alguma forma, contrataram ou coagiram O Canibal e a Dama de Rosa. Mas a verdadeira questão é: por quê?

Percebendo o que Calebe queria dizer, Tércio ficou reflexivo. De fato, ninguém além do homem com quem lutou possuía uma tatuagem de cobra no braço. E ele também não parecia muito interessado em sequestrar Serena, e sim, matá-la. Além disso, se havia um mago entre eles, então por que não o usar desde o começo.

― É claro que isso é só uma teoria. Mas eu saberei mais quando voltar para a capital e interrogar os prisioneiros. Porém, antes disso, eu gostaria de saber o máximo possível. ― Nesse ponto, o respeitado segundo filho do Duque Griffon fitou o rapaz coberto por cicatrizes com o canto dos olhos.

Tércio ponderou por um momento, avaliando o que poderia dizer, e então abriu a boca:

Hm... Eu não sei qual era o objetivo dele, mas acho era matá-la ― apontou um dedo para Serena, que ficou de boca aberta quando ouviu aquilo. ― E também, ele usava uma espada fina e flexível. Parecia até um chicote. Eu nunca tinha visto uma daquelas. Ah! E a pele dele era muito resistente. Eu o atingi um monte de vezes com a minha magia, mas quase não fez efeito.

― Espere! ― De repente Serena o interrompeu. ― Como assim ele queria me matar? Eu nunca vi aquela pessoa na minha inteira. Porque alguém iria atentar contra minha? ― Seu rosto estava pálido. Ela não entendia por que alguém iria querer feri-la. Sempre teve a certeza de tratar todos da melhor maneira possível. Então por qual motivo aquele homem esquisito a considerava uma inimiga?

Ela queria continuar se justificando. Mostrar a Tércio que isso era simplesmente impossível e que ele tinha se enganado. Mas foi parada por seu tio.

― Por que você acha isso? ― perguntou Calebe com um tom sério.

― É só que, ele foi muito agressivo em seus ataques, quando tentou arrombar a carruagem ― respondeu Tércio com uma expressão pensativa. ― Se ele pretendesse sequestrá-la, deveria ter sido mais cuidadoso. Sem falar que... eu já vi muito aquele tipo de olhar.

― Não! Isso é impossível. ― Serena se recusava a acreditar no que tinha escutado. Para ela não havia como alguém querer feri-la.

Mas Calebe pensava diferente.

― Isso de fato é possível ― afirmou, assentindo com a cabeça enquanto assumia um semblante profundo. ― A família Griffon possui muitos inimigos, que fariam de tudo para atingi-la. É triste dizer isso, mas essa é a verdade.

Quando ouviu seu tio dizer essas coisas, Serena ficou ainda mais pálida. Só agora percebeu que a ideia de sair da carruagem foi estúpida. Os outros olharam para ela com expressões preocupadas, demonstrando simpatia para o medo que sentia. Tércio foi o único que não pareceu tão surpreso ao ouvir sobre possíveis inimigos. Eles eram duques e duquesas, quantos outros não cobiçavam essa posição?

― Você se lembra de mais alguma coisa? ― insistiu Calebe, buscando entender o máximo possível.

E assim, Tércio falou de todas as coisas importantes que conseguiu se lembrar. Menos, é claro, sobre a tatuagem. Guardaria isso para quando voltasse à academia. Tinha a impressão de que aquele mordomo poderia lhe dar algumas respostas satisfatórias.

Quando terminou de ouvir o relato, o sujeito de olhar calmo e aparência jovial ficou em silêncio por um momento, refletindo sobre as informações que tinha recebido. E então, depois de algum tempo pensando, enfim voltou a abrir a boca:

― A espada fina, acredito que seja um Florete. É uma arma típica de uma nação aliada e é muito rara de se ver por aqui. Isso é tudo? ― questionou uma última vez.

― Na verdade, há mais uma coisa ― disse Tércio, com sinceridade. ― Mas está relacionado à morte de minha família. Por isso eu não vou te falar. Não é que eu não confie em você, só que vou guardar isso para mim. Além do mais, o fato de seu pai ter me oferecido um emprego melhor, não significa que eu tenha de te contar tudo.

Suas palavras carregavam um tom definitivo, de quem não abriria mão da decisão que tomou. Mas para o astuto filho do Duque Griffon, aquilo tinha sido o bastante.

Por outro lado, Arthur, Serena e os demais estavam com rostos surpresos. E um mesmo pensamento passou por suas cabeças: “então sua família está morta”. Era o tipo de informação que nenhum deles pediu para saber e que descobrir deixou todos bastante desconfortáveis.

Após esse tema desagradável e desconcertante, um silêncio mortal caiu sobre o grupo. Ninguém sabia o que dizer. Alguns queriam dar seus pêsames e outros consolar. Só não sabiam se era o momento adequado.

A quietude durou por alguns segundos, já que o bando se sentia embaraçado, quase como se tivessem feito algo de errado e levado uma bronca. Mas quem deu fim ao constrangimento foi o próprio Tércio, que agiu com naturalidade.

― A propósito, cadê o Enri? ― perguntou olhando ao redor.

― Voltou para a capital. Ele vai nos ajudar nas investigações, como alguém que esteve presente durante o ataque. ― informou Calebe, que logo em seguida voltou a ficar quieto. E só depois de algum tempo voltou a falar, com uma voz carregada de gratidão: ― Eu gostaria de agradecer a você e ao Arthur, por proteger minha sobrinha e seus amigos. Estarei eternamente em dívida. ― Aquelas não eram palavras ditas ao acaso, apenas por mera formalidade. Ele estava sério e isso se fazia notável em seu semblante resoluto.

Vendo a atitude respeitável de seu tio, Serena ficou admirada. Ele era o principal herdeiro de uma família de duques. Não precisava agir assim na frente de ninguém, que não fosse o rei. Mas apesar disso, ele humildemente abaixava sua cabeça e dava sua palavra. E para a sobrinha, isso era louvável.

Porém, os dois a quem ele estava agradecendo não davam a mínima para essas coisas de status. Se fossem outros plebeus em seus lugares, já teriam se ajoelhado e falado sobre o quão indigno eram para receber tais palavras. Mas Arthur continuou sentado de uma maneira relaxada e enquanto esfregava as mãos e dava um sorriso ganancioso, falou:

― Bem, eu só estava fazendo o meu trabalho. Mas se você quer tanto assim me agradecer, eu adoraria umas facas novas, feitas de Grafenato. As minhas estão muito gastas, entende? Pobrezinhas! Já trabalharam tanto ― disse descaradamente.

Mas Tércio foi ainda mais ousado, quando resolveu provocar o irmão de Eliza:

― Se está tão agradecido, então se ajoelhe e jure ser o meu servo. Talvez eu te ensine uma ou duas coisinhas. Ah! Ah! Ah! Ah!

― O que foi que você falou seu pirralho abusado? ― protestou Calebe, dando um cascudo na cabeça do atrevido que gargalhava de uma maneira vilanesca. A gratidão desapareceu e no lugar surgiu o sentimento de arrependimento por pensar que aqueles dois podiam ser sérios.

Dessa forma, uma discussão acalorada se iniciou. Quem via de longe achava engraçado. Ele, um homem com seus trinta anos, nobre e herdeiro de uma família de duques, sendo provocado por dois plebeus que sequer haviam acabado de passar pela puberdade, não era algo que se via todo dia.

Enquanto isso, em uma parte escondida da Floresta Meia Lua, longe da Vila Minguante, dois homens estavam sentados embaixo de uma árvore, no meio da escuridão. Eles não ousavam acender uma fogueira, com medo de serem vistos.

Aqueles dois eram Néfi e Zarco.

Néfi estava sentado sobre uma raiz que saltou para fora do solo enquanto estourava algumas das bolhas de queimaduras espalhadas por todo o corpo, usando a ponta de uma faca.

Após estourar a quinta bolha seguida e deixar o líquido escorrer, ele olhou para Zarco e perguntou:

― O que faremos agora?

― Não faremos nada ― respondeu o outro lado em um tom irritado. ― O filho do Duque chegou e trouxe junto mais dois Cavaleiros de Palavras Encantadas. Lidar com Cavaleiros Reais já era um problema, agora não temos a menor chance. ― Sua voz se encontrava carregada de desprezo e frustração.

― Mas aquele garoto viu a marca em meu braço. Se ele contar ao Duque Griffon, então... ― Embora a expressão seca em seu rosto não deixava suas emoções transparecerem com facilidade, Néfi parecia preocupado. Naquela hora, devido à raiva, não se importou em deixar sua tatuagem à vista. Mas agora que acalmou os nervos, não podia deixar de pensar que cometeu um erro.

Hunf! Você foi muito descuidado. Não acredito que se deixou ser intimidado por um garoto ― repreendeu Zarco, bufando com uma voz fria. E sem se importar com seu tom agressivo, continuou: ― Além do mais, mesmo que o garoto diga ao duque sobre a marca, apenas sua palavra não é prova o bastante.

― Assim espero ― disse Néfi, após um momento de silêncio. ― Do contrário, não poderemos manter nossas cabaças.

― Nós falhamos em nossa missão. Não há mais nada o que fazer por aqui. Vamos voltar para o Pico da Serpente ― ordenou Zarco. E apesar de estar ferido, Néfi não ousou desobedecer e logo se levantou. ― Quando retornarmos, teremos que descobrir quem era aquele garoto.

O companheiro esquelético acenou com a cabeça em concordância. E então, sem fazer qualquer ruído, os dois desapareceram no meio das sombras.

Na manhã seguinte, o dia amanheceu animado e pacífico. Nem parecia que ontem mesmo uma batalha sangrenta tinha acontecido naquele lugar.

Logo que o sol apareceu, o grupo já estava pronto para partir. Mas desta vez, sem sombras de dúvidas, a viagem seria tranquila. Afinal, quem iria liderar era Calebe Griffon, um poderoso mago e cavaleiro. E sob o seu comando havia nada mais do que dois Cavaleiros de Palavras Encantadas e algumas dezenas de Cavaleiros Reais.

Tércio, Arthur e alguns outros feridos foram colocados em carruagens confortáveis. Para esses, tudo o que precisavam fazer pelo resto da viagem era relaxar e apreciar a paisagem. Bem... isso é, se estiverem em condições, claro.

No entanto, como era de se esperar, Tércio já estava enjoado de ficar preso dentro de uma caixa, chacoalhando sempre que passava por um buraco, por menor que fosse. Mesmo estando ferido, ele queria de todo jeito um cavalo para montar. Mas Calebe, negou tal pedido com veemência. Já que de todos, o jovem de cabelo negro, da altura do ombro e mascado nas pontas, foi o que mais se feriu.

Por outro lado, Arthur não ousou discutir. E mesmo tendo acabado de amanhecer, ele se escorou em um assento confortável e, em um instante, cochilou. Os ferimentos que recebeu roubaram toda a sua energia.

Não poder andar a cavalo, irritou Tércio. Mas o lado bom era que ele não precisaria mais aturar Serena e os demais. Pois, os jovens nobres agora possuíam sua própria carona e novos guarda-costas.

E falando neles, Serena tinha um semblante pensativo e parecia até mesmo um pouco depressiva. Era óbvio que algo estava roubando sua paz. As gêmeas, Iris e Isis, permaneciam com os corações abalados. O que aconteceu no dia anterior, havia as deixado apavoradas. Mas, apesar disso, elas ainda continuavam com energia de sobra para discutir uma com a outra. E Isaac, bem... a emoção das batalhas despertou novas aspirações e sonhos em sua mente.

Na vanguarda do grupo de soldados, montado em seu alazão branco e marrom, Calebe olhou para um lugar distante e murmurou baixinho:

― Já faz algum tempo que eu não vejo minha irmã. ― Embora estivesse tentando esconder, um suspiro animado que surgiu acompanhado de um olhar nostálgico denunciava certa empolgação.

E assim, Tércio, Arthur, Serena, Iris, Isis e Isaac, partiram rumo à academia Elefthería...

 


Nota do Autor

Enfim chegamos ao último capítulo de O Condenado. Pelo menos, do primeiro volume.

E aqui eu tenho alguns recados importantes para dar.

Primeiro, vamos ter um pequeno hiato de tempo indeterminado, mas que eu espero não durar tanto assim. O motivo é que eu preciso terminar outro projeto que está engavetado.

Acredito que isso não me tomará tanto tempo assim, e quando ele acabar, irei voltar com tudo para o volume dois que, já adianto, será imperdível!!

Para acompanhar qualquer novidade, sugiro que entrem no Discord, já que irei sempre atualizar primeiro por lá; E também pelo Instagram.

Vocês podem achar que não, mas isso ajuda muito. Principalmente em me manter motivado e sabendo que meu trabalho está sendo relevante.

No mais, espero que tenham gostado dessa jornada introdutória até aqui e aguardem ansiosos, pois os próximos volumes irão mostrar o verdadeiro potencial que essa história e Tércio têm!



Comentários