O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 58: Poeira e Sangue

Uma enorme explosão aconteceu!

Tércio foi engolido por uma luz ofuscante que destruiu o lugar em que ele estava e mergulhou a área ao seu redor em uma densa camada de poeira. Pedaços de pedras foram arremessados para todos os lados. E o chão se fragmentou, feito gelo fino se quebrando.

― O- o que aconteceu? ― balbuciou Serena, quando as coisas começaram a se acalmar.

Ela abriu os olhos e encarou, preocupada, a densa camada de poeira. Assim que percebeu que a bola de luz tinha atingido o lugar no qual Tércio se achava, não pôde deixar de experimentar pensamentos pessimistas. Poderia ele sobreviver à explosão?

Isaac, que também se protegeu da claridade intensa, olhou para fora da carruagem e disse em um tom de espanto:

― Aquilo... aquilo foi... Magia! ― Ele, como um jovem nobre, passou a infância estudando sobre essa arte tão mística e encantadora. Então, quando viu a bola de luz se aproximando, logo entendeu que não se tratava de um fenômeno misterioso e sim de um Encantamento Mágico.

― Ma- magia? ― gaguejou Iris.

― Os ma-magos da capital vieram ajudar? ― questionou Isis, sentindo uma pitada de esperança.

Mas que logo foi destruída por Serena:

― Não. Não foram os magos da capital ― garantiu enquanto olhava para a nuvem de poeira. ― Afinal, aquele plebeu foi atingido.

Serena não era a única que encarava apreensiva o lugar em que a bola de luz atingiu. Néfi, com uma expressão mortífera, mirava o lugar em questão. Ele não se sentia satisfeito em como as coisas haviam terminado. Aquele garoto deveria ter sido morto por sua espada.

Sua frustração era tão grande que ele resolveu marchar em frente, determinado a pôr um fim nessa questão. Queria pelo menos chutar o corpo destroçado.

Contudo, antes que ele pudesse satisfazer seu desejo sórdido e desumano, de repente, vinda do céu, uma voz grave, que reboou por todo o vilarejo, surgiu:

― O que você pensa que está fazendo? Acabe logo com isso! ― A voz trovejou carregada de tirania.

Todos olharam para o céu, em busca da origem do som misterioso. A quem pertencia? De onde vinha? Com quem estava falando?

Ninguém parecia saber a resposta para isso. Mesmo Katrina e o Canibal se mostraram perdidos.

Porém, Néfi olhou com insatisfação para um lugar distante, que ficava depois da vila, dentro da floresta. E com um “Tsc”, virou-se para a carruagem dourada e voltou a se focar em sua missão.

Vendo o sujeito cruel que passava dos dois metros de altura indo em direção ao veículo, O Canibal, que já estava ao lado dele, olhou para o colega de emboscada com um semblante cauteloso. Mas não fez, nem disse nada. Em contrapartida, Serena sentiu o sangue congelar. “Era o fim!”; pensou. Ela seria sequestrada ou, pior, assassinada.

Arthur, vendo aquilo, se esforçou para se levantar. No começo, pensou que Tércio, o qual se provou bastante resistente, seria capaz de aguentar até os Cavaleiros Reais chegarem. Mas aquela bola de luz apareceu sabe-se lá de onde e agora, o protegido de Eliza, provavelmente, estava morto.

Algo precisava ser feito e só restava ele. Porém, no momento em que tentou se levantar, seus ossos quebrados estalaram e ele caiu de novo no chão, enquanto gemia de dor.

― Fique quieto! Você não pode mais lutar ― disse Katrina, com uma voz pesada e um olhar sério, voltado para Néfi.

Dentro da carruagem, Isaac, que ficou o tempo todo sem saber o fazer ou como agir, enfim criou um pouco de coragem quando bravamente se enfiou na frente de Serena e falou:

― Fique atrás de mim. Eu sei alguns Encantamentos Mágicos. Quando ele abrir a porta, vou distraí-lo e vocês corram ― bradou com um semblante resoluto enquanto se lembrava de tudo o que seu pai e avô havia lhe ensinado.

Serena pareceu hesitante. Ela não queria abandonar o amigo e fugir. Ainda mais com tantas pessoas assustadoras do lado de fora. Mas que outra escolha tinha? Dessa forma, entendendo o que precisava fazer, ela segurou as gêmeas pelas mãos e se preparou para correr quando o momento chegasse.

Contudo, neste instante, do meio da névoa de poeira que estava aos poucos se dissipando, uma cobra vermelha, coberta por um brilho cintilante que rastejava furtivamente pelo chão, se aproximou do calcanhar de Néfi.

O homem de pele queimada e coberta por bolhas não reparou na víbora que se aproximava, ziguezagueando, pelas suas costas. Tudo o que ele queria era acabar com isso o quanto antes e ir embora. Mas então, quando estava perto o suficiente, a cobra vermelha deu o bote e se enroscou em seu calcanhar esquerdo.

Sem saber o que agarrou seu pé, Néfi olhou para baixo com uma expressão curiosa. Entretanto, antes que pudesse ver com clareza o que era a coisa vermelha, sua perna foi puxada. E ele, um tanto desajeitado, perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão.

Estirado na terra suja, ergueu a cabeça e olhou para sua perna, só para ver que, o que o prendeu não era uma víbora, na verdade, e sim... bem... afinal, o que raios era aquilo?

A princípio, a impressão era que se tratava de uma corda pegando fogo. Mas não era qualquer fogo, era fogo vermelho. Só que, o mais estranho de tudo era que não estava quente.

Aquele treco vermelho parecia com fogo, tremeluzia como fogo, mas não queimava como tal.

Apesar de estar enroscada em sua perna, Néfi não a sentiu queimar. Não houve nem mesmo a sensação de algo morno. Se não fosse pelo aperto em seu calcanhar, ele sequer notaria o que o derrubou.

E mais. Agora que prestou melhor atenção, percebeu que não era nem mesmo uma corda pegando fogo, pois se podia ver através dela, como se fosse semitransparente.

Mas que infernos era aquela coisa?

Com os olhos, Néfi seguiu o conjunto de fios entrelaçados de fogo vermelho até a nuvem de poeira. Foi então que viu...

No chão, bem no lugar em que, antes, Tércio se achava, havia um rastro profundo de destruição, como se algo pesado tivesse sido arrastado e, no processo, destruído o solo. E no fim dessa marca de devastação, envolto em poeira, uma luz azul cintilava.

À medida que o vento foi levando o pó para longe, a figura de uma pessoa foi ganhando forma. Essa figura estava envolvida por uma chama azul, que bruxuleava de maneira tímida, sem grande ímpeto. E em sua mão direita havia um fogo vermelho que se estendia até o tornozelo de Néfi.

 A pessoa protegida pelas chamas azuis, não era ninguém menos do que Tércio.

Antes, o jovem abusado de olhos escuros estava coberto por sangue, devido aos pequenos cortes que sofreu. Mas agora, uma camada grossa de sujeira tinha grudado em sua pele, deixando-o ainda mais sujo do que a primeira vez que se encontrou com Eliza. A única parte limpa de seu corpo era o branco de seus olhos.

Quando viram Tércio ― apesar de alguns duvidarem que aquela coisa imunda fosse de fato ele ― muitos dos presentes não conseguiram esconder o choque em seus rostos. Como um garoto de quatorze anos conseguiu sair vivo depois de ser atingido por uma magia daquele nível?

Mas a verdade era que ele estava bem. Tirando uma fina linha de sangue vazando de seu nariz, a qual ele rápida e discretamente limpou, não havia ferimentos aparentes causados pela magia de luz.

― Ele... não se machucou... Como isso é possível? ― murmurou Serena com espanto no rosto.

Vendo isso, Isaac soltou um suspiro de alívio. Sua determinação desperdiçada à parte, estava feliz por não ter que servir de escudo.

Néfi, ainda caído no chão, olhou para o fogo azul, depois para o vermelha, e não pôde deixar de se perguntar: “Como isso era possível?”

Se aquelas chamas fossem criadas através de Encantamentos Mágicos, então, isto de mudar de cor e propriedades, não seria assim tão estranho. Afinal, o que não se pode fazer usando Encantamentos Mágicos?

No entanto, depois de sua luta, o agressor esquelético teve certeza de que seu rival adolescente não era um mago que usava tais práticas. Era na verdade um Atroz, alguém nascido com uma habilidade mágica.

No geral, os Atrozes só são capazes de usar a magia com que nasceram. Por exemplo, se uma pessoa nasce com a habilidade de criar bolhas d’águas, ela só poderia criar bolhas para o resto da vida. Mudar isso é algo impossível.

Contudo, Tércio foi capaz de usar magias diferentes. Mesmo que a base ainda fosse o fogo, suas funções eram distintas. E isso não fazia sentido.

Enquanto Néfi estava perdido em seus pensamentos, Tércio, ao mesmo tempo em que mantinha as outras duas chamas, usando sua mão esquerda, transformou parte do fogo azul em laranja e se preparou para atacar.

Reparando a mudança repentina, Néfi tentou cortar a chama vermelha que prendia a sua perna, mas ela era mais resistente do que aparentava. Mesmo após vários golpes consecutivos, não houve sinais de que se romperia.

Parecia que ele estava fadado a ser queimado. Foi então que, nesse momento, outra vez, uma bola de luz foi atirada de algum lugar da floresta.

Mas, diferente de antes, Tércio estava preparado. E, com um tom de urgência, vociferou:

― Quinto selo, Assimilação de Impacto!

Como se respondesse ao seu comando, as chamas azuis irromperam em um vórtex gigante. E em um instante formaram uma barreira, com mais de três metros de altura ao seu redor.

Em um piscar de olhos, a bola de luz atravessou o céu e colidiu com a barreira de fogo. Um clarão capaz de ofuscar a vista obrigou os espectadores a desviarem o olhar enquanto se preparavam para a explosão. Mas nada aconteceu.

Logo após a colisão, sangue começou a pingar do nariz de Tércio e um gosto de ferro se espalhou por sua boca, enquanto uma dor excruciante assolou seus órgãos internos, obrigando-o a segurar a barriga, ao mesmo tempo em que soltava um gemido.

Nesse momento, o fogo vermelho, em forma de corda, que prendia o pé de Néfi, tremeluziu e, então, se extinguiu. E Néfi, muito esperto, não tardou a se levantar.

Quando se libertou, seu primeiro instinto foi o de atacar o maldito responsável por lhe causar tanta dor. Mas depois de estudar o fogo azul cercando o corpo do jovem por um segundo, pensou duas vezes e decidiu mudar de alvo ― ou melhor, voltou a se concentrar em seu objetivo inicial.

Ao lado da carruagem, encontrava-se o canibal. Ele estava tentando abrir a porta à força, puxando, socando e chutando o veículo. Mas mesmo tendo todo aquele tamanho e força, sua falha foi notável. Em certo ponto, quando tentou arrancar a porta, uma sensação de entorpecimento se espalhou por seu corpo e, após um estampido, foi arremessado longe, deixando-o sem entender nada.

E enquanto ele tentava pensar um jeito mais eficiente de arrombar a carruagem, Néfi gritou:

― Saia da frente! ― Com a espada fina em mãos, o combatente de expressão desumana investiu contra o veículo.

Mas antes que o inimigo pudesse atingi-la, Tércio balançou suas mãos e as chamas azuis dançaram. E, igual a um manto cálido e místico, envolveu a estrutura abrigando os jovens nobres.

A espada de Néfi se chocou contra o fogo azul. Porém, não houve barulho de impacto, nem ricochete. Era como se as chamas tivessem absorvido o ataque.

Néfi não desistiu e lançou uma série de golpes. No horizonte, uma bola de luz surgiu. Mas desta vez, seu alvo era a carruagem.

Em apenas um instante, a situação da batalha se inverteu completamente. Uma chuva de ataques caiu sobre o veículo. Até mesmo O Canibal se juntou a festa, balançando seu machado ao mesmo tempo em que dava gargalhadas profanas.

Dentro do luxuoso meio de transporte, as gêmeas berravam de maneira histérica, de forma que a única coisa que se ouvira eram os seus gritos. Era como se o fim do mundo estivesse se aproximando. Serena e Isaac tentaram manter a calma, mas a palidez em seus rostos mostravam os verdadeiros sentimentos de ambos.

As chamas azuis resistiram com enorme coragem aos ataques, sem tremeluzir ou enfraquecer, provando ser uma fortaleza impenetrável. Por outro lado, do nariz de Tércio, sangue começou a gotejar. E dos ouvidos, uma fina linha vermelha escorreu ao longo de seu rosto.

Tércio queria atacar, mas tudo o que conseguia fazer era resistir à dor que perfurava suas entranhas. Embora estivesse tentando resistir, ele sabia, melhor do que ninguém, que não aguentaria por muito tempo.

Verdade seja dita: ter suportado até esse ponto, em seu atual estado de fraqueza, estava além do esperado. Afinal, ele era só um garoto. Quem poderia dizer que não se esforçou?

Nos segundos seguintes, a situação de Tércio piorou ainda mais. Após aguentar tantos ataques consecutivos de Néfi e do Canibal (sem falar das bolas de luzes), suas as pernas começaram a perder a força quando tremeram de maneira involuntária, denunciando sua debilidade crescente. Tanto era sua agonia que lágrimas de sangue escorreram de seus olhos. E para piorar, as chamas azuis que protegiam o seu corpo aos poucos foram perdendo brilho.

Ele não aguentaria por mais tempo e quando caísse, não haveria ninguém para impedir os bandidos.

A situação não poderia ser pior!

― Parem! Vocês vão matá-lo! ― De repente, um grito cheio de urgência foi ouvido.

Néfi olhou de lado e percebeu que Katrina, em uma virada não tão inesperada, estava pronta para atacá-lo. Foi então que algo lhe ocorreu. Ele se virou para o irritante oponente que cismava em ficar em seu caminho e viu algo que lhe encheu de alegria. Então é assim que funciona...

Exibindo um sorriso vitorioso, parecendo ter descoberto algo sobre a habilidade de Tércio, o perverso malfeitor bateu com toda a força que tinha nas chamas azuis. Quando a lâmina se chocou contra o fogo, de novo, não houve barulho de impacto. Parecia que a espada havia batido em algo macio.

Mas do outro lado, Tércio caiu de joelhos e começou a vomitar sangue. Ambos os seus olhos ganharam um tom vermelho à medida que as lágrimas vermelhas se misturavam à poeira.

E naquele instante, Néfi gargalhou com satisfação ao perceber que estava certo. E, assim sendo, continuou a atacar as chamas azuis vez após vez.

A consciência de Tércio balançou. Suas pálpebras caíram e seus ossos passaram a pesar uma tonelada cada. Esse era seu fim.

Mas então, quando tudo parecia perdido, gritos animados surgiram juntos ao som de cavalos correndo:

― Eles estão aqui!

― Protejam a carruagem! Capturem os bandidos!

― Rápido! Não deixem nenhum escapar!

Aqueles que apareceram no último momento foram Enri, Darlan e Bernardo, juntos a outros sete cavaleiros.

Liderados por Enri, Darlan e os demais marcharam em frente enquanto empunhavam suas espadas bravamente e vociferavam. Eles estavam prontos para se sacrificar pelos seus jovens nobres.

Vendo a cavalaria chegar, a expressão de Néfi escureceu, ao passo que O Canibal deu um passo para trás. Mesmo Katrina, ficou atenta.

Enquanto Néfi parecia estar na dúvida sobre o que fazer, a voz vinda do céu, mais uma vez, apareceu:

― Recue! ― ordenou em um tom grave.

Sem qualquer hesitação, o esguio bandido cujas costelas ficavam marcadas através da pele se virou e começou a correr. O Canibal fez o mesmo, mas a diferença na velocidade dos dois era notável.

― Atrás deles. Não deixem que escapem ― rugiu Enri ao mesmo tempo em que forçava sua montaria a correr mais rápido. De forma alguma ele deixaria os malfeitores escaparem.

Com os perseguidores a cavalo, fugir seria uma tarefa difícil para os bandidos, mesmo Néfi, com suas pernas compridas, não teria vantagem ao disputar velocidade contra animais tão velozes. No entanto, assim que os atacantes iniciaram sua fuga, outra bola de luz foi atirada.

― Parem!

Tomados pelo sentimento de urgência, os cavaleiros rapidamente puxaram as rédeas de seus cavalos, fazendo os animais relincharem enquanto freavam de maneira abrupta.

E Tércio, sem pensar duas vezes, usando suas últimas forças, cobriu a tropa com suas chamas azuis.

Os cavalos perderam o controle quando o clarão de luz surgiu de repente, deixando-os cegos por alguns instantes. Eles berraram e levantaram as patas frontais, quase derrubando aqueles que os montavam. Naquele momento, o caos se espalhou. E desorientados, os soldados não tiveram escolha a não ser deixar que Néfi e os outros se distanciassem.

Após defender o ataque mágico, Tércio já não tinha mais condições de sequer permanecer de pé. A chama que o cobria, apagou-se. Seu corpo fraquejou e ele desabou de peito no chão, com os braços estirados.

Juntando suas últimas forças, ergueu a cabeça e olhou para a tatuagem de cobra no braço direito do distante Néfi. Queria ir atrás dele, mas...

Sua visão se tornou embaçada e os pensamentos pesados. E então, Tércio desmaiou...



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