O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Capítulo 57: Luz no horizonte

Em sua frente, O Canibal se levantou e, ao seu lado, Néfi se aproximou. Serena não sabia como reagir. Qualquer um dos dois, se assim desejassem, poderiam matá-la sem dificuldade e não haveria nada que pudesse fazer, pois estava sem meios de se defender.

Incapaz de manter a calma e com os pensamentos nebulosos, Serena deu um passo para trás. Nesse momento, ela sem querer tropeçou em uma pedra. Não caiu, mas o outro cristal em sua mão, aquele que parecia um pedaço de espelho quebrado, deslizou entre seus dedos e se despedaçou no chão.

Serena se assustou com o barulho que se assemelhava a vidro se quebrando, mas quando viu os cacos espalhados pelo chão, seu rosto mostrou um largo sorriso repentino ao perceber que ainda havia esperança. Como ela pôde se esquecer?

Por outro lado, os rostos dos dois bandidos se tornaram sombrios. Ambos sabiam muito bem o que era aquilo.

― Um Cristal Gêmeo! ― murmurou Néfi em tom grave.

O reino de Aurora é um lugar famoso por suas pedras preciosas. Minérios raros, cristais mágicos, esses tipos de coisas existem em abundância por seus territórios. O que o torna uma terra cobiçada por muitos.

Entre os diversos tipos de minérios existentes no reino, há aqueles bastante raros como os Cristais dos Cantos da Sereia ou a Gema das Lágrimas Estrelar. E há também os que, apesar da dificuldade de serem encontrados, são bem úteis durante situações de emergências. Em especial para as pessoas que não sabem usar Encantamentos Mágicos. E um desses é o Cristal Gêmeo.

Essa estranha pedra, que mais se parece um pedaço de espelho quebrado, quando encontrada, sempre vem em duas. Um par igual em cada aspecto. Por isso o nome.

Mas o que caracterizava esse mineral é a sua particular habilidade. Não importa o quão distante o par esteja um do outro, eles sempre estarão, de certa forma, conectados.

Por exemplo, se um for arranhado, não importa o quão distante estejam, o outro sofrerá um arranhão igual.

Por isso, quando viu o Cristal Gêmeo na mão de Serena quebrar, Néfi teve um sentimento de urgência. Pois, se um estava aqui, então onde o outro estaria?

Não querendo esperar para descobrir a resposta, o sujeito esguio e de costelas salientes balançou sua espada e correu em direção a sua presa. Seu ataque estava cheio de hostilidade. Parecia que ele não tinha a intenção de sequestrá-la e sim matá-la. Tanto que, Katrina, mesmo estando um pouco longe, percebeu isso. Em resposta, ela, com seus olhos afiados, apertou a lança e se preparou para interceptá-lo. Mas então...

Quando Néfi estava a poucos passos de Serena, uma pedra do tamanho de um punho, de repente, passou em frente ao seu rosto, forçando-o a parar seus passos.

Com uma expressão soturna, ele voltou seu olhar para o lugar no qual Tércio havia sido chutado. Porém, quando fez isso, uma segunda pedra voou direto para o seu peito.

No mesmo instante, o combatente usuário de uma esgrima peculiar usou sua espada para defletir o ataque. Entretanto, antes que percebesse, Tércio surgiu em sua frente com os braços incandescentes, prontos para incendiar tudo o que estivesse em seu caminho.

Não houve tempo para se defender. O ex-prisioneiro de quatorze anos atacou sem demonstrar piedade.  E em um instante a parte superior do corpo de Néfi foi envolvida por um mar de chamas.

O chiado e o cheiro de queimado se espalharam pelo ar. Parecia que o fogo queimaria eternamente, transformando o que tocasse em cinzas. Era como se não existisse nada capaz de escapar daquele calor.

Dessa forma, aproveitando a brecha que criou, Tércio contornou o homem em chamas e se colocou em frente à Serena. E então, ele se curvou e começou a tossir enquanto decidia se apoiava a barriga ou o ombro perfurado. O chute que recebeu tinha de fato o machado, ao contrário dos pequenos cortes que apenas serviram para deixá-lo sujo de sangue.

As chamas envolvendo o corpo de Néfi aos poucos começaram a apagar ao passo que ele se debatia. E nesse momento, Tércio não pôde deixar de amaldiçoá-lo. Tirando sua pele, que estava vermelha como se tivesse ficado tempo demais debaixo do sol, não havia nenhum ferimento grave em seu corpo, além de algumas pequenas bolhas.

― Mas qual é o problema desse cara? ― balbuciou o temível Atroz, pasmo.

Ele nunca viu alguém com uma pele tão resistente. Mesmo os monstros com o qual já se encontrou não possuíam tamanha resistência ao fogo.

Tércio deu um passo para trás e fez um gesto com a mão, enquanto dizia:

― Volte para dentro! ― ordenou à Serena, que estava parada no mesmo lugar, como se fosse uma estátua. ― Agora! ― repetiu com um tom mais autoritário.

A neta do Duque Griffon não ousou desobedecer e, como um coelho assustado, pulou para dentro da carruagem.

Ainda parado no mesmo lugar, com a pele tostada, Néfi abriu os olhos, mostrando que o branco havia se tornado vermelho. Seu rosto, antes assustador, se contorceu em uma expressão medonha. Raiva não era o suficiente para descrever o que estava sentindo.

Ele deu um passo à frente à medida que rangia os dentes e apertava os lábios finos. Parecia um cão raivoso, pronto para abocanhar o dono e prestes a começar a espumar. Foi nesse ponto que o estalo de algo rachando soou.

Além de sua própria pele, as únicas outras coisas que resistiram as chamas de Tércio foram sua espada fina, sua calça, que parecia ser feita do couro de algum monstro ou animal, e uma única luva, do mesmo material da calça, e que estava em sua mão direita, a qual ele usava para segurar a espada.

Contudo, depois de ser exposta tantas vezes ao calor, a luva, que cobria até o cotovelo, começou a rachar como se fosse feita de barro e não de couro.

Pedaço por pedaço o artefato se despedaçou, revelando assim uma tatuagem de cobra que se enrolava em torno da mão de Néfi, dando a impressão de que estava a prendendo em um “abraço” apertado.

A tatuagem era negra como breu e serpenteava traiçoeiramente pelo braço do agressor esquelético, contornando os seus dedos e parando em frente ao seu pulso com a mandíbula aberta e veneno pingando de suas presas, afiadas feito agulha.

No momento em que viu o desenho de cobra, Tércio sentiu o coração parar de bater e seus olhos só conseguiram focar naquele ponto.

Como ele poderia se esquecer desse desenho que lhe causou tantos pesadelos? Ou do homem que roubou a vida de sua família?

Vendo aquela tatuagem, as lembranças de Tércio, daquele dia, voltaram feito uma tempestade, cercada de raios e trovões. Sua respiração ficou pesada e seus olhos se alargaram, tomados pela surpresa e o espanto.

Ele nunca buscou vingança! Bom... talvez, no começo. Mas depois de um tempo, quando sua raiva e ressentimento começaram a passar e conheceu novas pessoas, sua sede por vingança foi diminuindo. Quanto mais pensava nisso, mais chegava à conclusão de que se vingar não o levaria a lugar nenhum. Talvez ele se sentisse melhor se fizesse isso ou talvez mergulhasse em um abismo do qual não poderia voltar.

Seja como for, vingança não era mais o seu objetivo. Depois de muito remoer essa lembrança amarga e de ser falsamente acusado por tantos, Tércio decidiu que viveria sua vida como bem entendesse e que não se deixaria ser influenciado por seu passado. Sem dúvidas, era isso que sua família desejaria.

Contudo, depois de ver a cobra no braço de Néfi, como poderia se controlar?

Com os olhos semicerrados, bufou, exprimindo uma frieza psicótica:

― Esta sua tatuagem... onde você fez? ― Mesmo não buscando vingança pela morte de sua família, Tércio nunca se esqueceu de como era o homem que os matou, do seu jeito de andar, do seu tom de voz. Por isso, sabia que a pessoa à sua frente não era aquele homem. Foi então que se lembrou do que Kay lhe falou: que a tatuagem de cobra era o símbolo de uma certa organização. ― Responda! ― questionou com autoridade.

Porém, Néfi não disse nada. Julgando pela expressão medonha em seu rosto, parecia que ele havia se perdido em sua raiva. Era como se a única coisa em seu campo de visão fosse o garoto responsável por lhe causar tamanha dor e vergonha. Seus ouvidos estavam surdos pelo ódio.

Sua instabilidade era tanta que, enquanto soltava um leve rosnado e as mãos tremiam de ansiedade, ele atacou sem qualquer aviso.

Mas Tércio não recuou.

― Responda! ― rugiu o ex-prisioneiro. Seus braços se inflamaram e ele saltou no ar enquanto balançava as mãos para frente.

Porém, nesse momento, Néfi fez algo impensável. Sem se importar com o calor, agarrou a mão de Tércio e o jogou para longe da carruagem.

Enquanto voava no ar, o jovem acolhido por Eliza habilmente girou o corpo e recuperou o equilíbrio, caindo, dessa forma, no chão sem enfrentar grandes problemas.

Agora, que Tércio estava fora de seu caminho, Néfi poderia atacar a carruagem como bem entendesse. Afinal, o veículo se encontrava ao alcance de sua espada e a proteção que o blindava já não possuía a mesma robustez de antes. Mas, contrariando as expectativas de quem assistia o desenrolar dos eventos, ele sequer se deu ao trabalho de encarar Serena e os demais nobres.

Com um olhar ensandecido, o sujeito esquelético com mais de dois metros encarou o garoto que foi arremessado. Para Néfi, nesse momento, o seu objetivo já não mais importava. Tudo o que queria era destroçar o pivete diante de seus olhos.

Então, com suas pernas compridas começou a correr enquanto mirava o alvo de maneira fixa. Seus passos desengonçados eram de causar arrepios. Parecia uma aranha magricela de duas pernas correndo, balançando uma vareta.

Foi nesse ponto que um evento que chamou a atenção de todos que estavam na Vila Minguante, aconteceu.

Do lado direito, em meio às árvores da Floresta Meia Lua que cercava a pequena vila, uma luz com um brilho amarelado surgiu. Tinha o formato de uma esfera e parecia ser do tamanho de uma roda de carruagem.

O clarão que apareceu de repente iluminou as árvores da floresta, tingindo o verde de amarelo. Seu brilho era como uma gigante Clarita, só que mais intenso e ameaçador.

E enquanto todos olhavam para aquela direção, a bola de luz começou a se mover.

No momento em que o fenômeno misterioso rumou em direção à vila, todos ficaram bastante agitados, pois ninguém sabia ao certo o que era aquilo.

Mas Néfi, que estava no meio de seu ataque de raiva, estalou a língua, demonstrando descontentamento, e, em um salto, se afastou de seu odioso oponente.

A bola de luz ganhou velocidade, conforme deixava a floresta e atravessava o céu. De início, seu destino era incerto. Poderia muito bem ser algo misterioso que, por coincidência, estava passando por ali. Esse tipo de coisa não era tão incomum assim. Mas à medida que se aproximava do grupo de jovens, ela começou a cair numa velocidade surpreendente, feito uma estrela despencando do espaço.

Serena, que estava espiando através da janela da carruagem, cobriu o rosto com as mãos e virou a cabeça para o lado. A luz era intensa demais para poder olhá-la sem proteção. Mesmo a durona Katrina foi obrigada a tapar os olhos.

Nesse momento, todos que estavam naquela parte da vila tinham seus olhos fechados. Todos exceto Tércio.

Quando a bola de luz começou a cair, Tércio percebeu que seu alvo não era outro, senão ele próprio. Por isso, esforçou-se para manter os olhos bem abertos ao mesmo tempo em que as chamas alaranjadas em seus braços se transformaram em azuis.

E então...

“BOOM!”



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